A Idéia de Criação

na Filosofia Cristã

Por Georges Florovsky

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior

 

Eis que nas palmas das minhas mãos te tenho gravado. — Isaias 49: 16.

I

A idéia da Criação é uma das marcas mais distintivas da mente Cristã. Foi estrangeira e estranha para a mente grega. Talvez, o verdadeiro ponto de discriminação entre os dois sistemas tenha sido exatamente esta idéia de Criação. Ela foi muito mais do que a resposta para os problemas de origem. Nesta resposta o todo do desenvolvimento posterior já estava implicado. Charles Renouvier, o grande filósofo francês do século XIX, esteve indubitavelmente certo ao sugerir uma classificação dicotômica dos sistemas filosóficos ("une division binaire"). Sistemas filosóficos, ele afirmou, não poderiam ser arranjados de forma linear, como se eles não fossem mais do que passos na formação de uma definitiva síntese toda-inclusiva. Não existia, em sua opinião, nenhum progresso linear em filosofia, nem mesmo dialético. Existia uma oposição radical e um conflito irreconciliável entre as duas visões do mundo, uma definitiva oposição de sic e non, um definitivo um ou outro. Uma das principais antíteses era para Renouvier precisamente esta: evolução ou criação. Renouvier não era, ele próprio, um filósofo Cristão, ele era decididamente anti-Cristão. Mas, paradoxalmente, em questões quentes principais de metafísica ele inesperadamente esteve mais perto da verdade da Revelação do que muitos que clamavam para si o título honorífico de pensadores Cristãos. E sua monumental obra, Esquisse d'une classification systematique des doctrines philosophiques (1866, 2 vols.) é um excelente guia através do labirinto das controvérsias metafísicas. Agora, as duas visões do mundo das quais Renouvier esteve falando, são precisamente, em última instância, precisamente a grega e a Cristã. A idéia de Criação foi, de fato, uma impressionante inovação Cristã na filosofia. Não é surpresa que ainda seja uma pedra-de-tropeço para filósofos. Pois, como regra, os filósofos, até os dias presentes, ainda pensam em categorias gregas. Vez por outra, tentativas estão sendo feitas de domesticar ou reduzir esta idéia assustadora, de esterilizá-la, como se fosse, de tirara o ferrão dela, ou então de explicá-la fora de contexto. Porém, uma idéia adequada sobre a Criação é um teste distintivo da integridade da mente e da fé Cristã. Uma concepção inadequada da Criação, ao contrário, é inevitavelmente subversiva para o todo do conjunto de crenças Cristãs.

II

Dizer: o mundo é criado é, antes de tudo, enfatizar sua radical contingência e precisamente — uma contingência na ordem da existência. Ou, em outras palavras, um mundo criado é um mundo que poderia não ter existido de todo. Talvez seja esta a melhor definição de Criação. De um lado, isto quer dizer que o Universo não tem em si razão suficiente para existência — cur potius sit quam non sit. Isto quer dizer que o mundo é, completa e inteiramente, ab alio, e de modo nenhum a se. É uma existência derivada e dependente, e não é auto-explanatória. A própria existência do mundo aponta para Outro, para a existência de Deus. "Vê, existe o céu e a terra. Eles gritam que foram feitos... Eles gritam também que eles não se fizeram: nós somos porque nós fomos feitos; nós não éramos antes de sermos, para sermos capazes de nos fazermos." — Ecce sunt coelum et terra, clamant quod facta sunt… Clamant etiam quod se ipsa non fecerint: ideo sumus quia facta sumus; non ergo eramus, antequam essemus, ut fieri possemus a nobis. Et vox clamantium est ipsa evidentia (Bem aventurado Agostinho, Conf. xi, 4 ). De outro lado, é dizer que Deus, como se fosse, poderia não ter criado nenhum mundo de todo. O mundo foi trazido à existência, do nada, por um ato livre de Deus, e não por qualquer "necessidade" inerente em Seu próprio ser. Foi uma libertas contradictionis. Deus estava definitiva e absolutamente livre para criar ou para não criar, sem nenhum prejuízo ou em detrimento de Sua suprema perfeição e plenitude. Citemos Etienne Gilson: "Deus não acrescentou nada a Si pela Criação do mundo, nem nada seria tomado Dele pela aniquilação do mundo — eventos que seriam de importância capital para os seres criados, mas nulos para Ele Que, de modo nenhum Se preocuparia qua ser." Assim, a contingência é dupla: de parte do Criado e de parte do próprio Criador. Não deve ser negligenciada nem subestimada. A verdadeira realidade do Universo está assegurada, de maneira surpreendente, exatamente por ela ser desnecessária para o próprio Deus. De outro forma ele teria sido somente uma sombra. A existência do mundo é o milagre da Divina Liberdade.

III

A idéia da Criação implica, portanto, em uma definitiva dualidade da existência. Deus e a Criatura. Este e é um "e" de liberdade absoluta. Deus é para o mundo exatamente "o Outro," e o mundo é para Deus um externo. A Criação é precisamente a Criação deste misterioso externo. Existe uma distância absoluta e definitiva entre Deus e o mundo criado, um total e definitivo hiato — e é uma distância na natureza, na frase de São João Damasceno: πανδα απεχει Θεου ου τοπω, αλλα φυση (de fide orth. i, 13). Esta dualidade de Deus e o mundo não é uma antítese lógica do Absoluto e do relativo, do Infinito e finito; em tal antítese os termos são correlativos e mutuamente complementares — eles só são possíveis juntos. Não mais esta dualidade é de princípios; a Criatura não é um principio autônomo, só existe um verdadeiro "principio" — o próprio Deus. Mas existem duas naturezas — esta terminologia foi autorizada e consagrada pelo seu uso na definição cristológica de Calcedônia. Devemos dizer: existe uma segunda natureza, e ela está (ou existe) perto ou fora de Deus. A existência desta "segunda" natureza constitui o próprio mistério da Criação. De novo, este "fora" é, no estrito senso, um definitivo e contingente "excedente" de existência. Estes dois adjetivos: "definitivo" e "contingente" podem parecer bastante contraditórios e incompatíveis. Seguramente eles são antinômicos. Porém esta antinomia é exatamente a base da existência criada. O mistério da Criação consiste precisamente em que ela poderia não ter existido de todo — pela suprema e inescrutável Vontade de Deus — e, no entanto, ela prática e realmente existe. A idéia da Criação em si mesma já é basicamente antinômica. E esta é uma antinomia de liberdade. Liberdade é sempre essencialmente antinômica. O criativo fiat de Deus é um ato livre, mas definitivo de Deus. Deus criou o mundo simplesmente para existência: εκτισε γαρ εις το είναι τα παντα (Sabedoria 1:14). Nγo existe previsão para cancelamento neste decreto criativo. "Jurou o Senhor e não se arrependerá" (Sl. 109:4[Sl. 110:4]). "o mundo também está firmado e não poderá vacilar. (Sl. 92:1[Sl. 93:1]). O ponto central da antinomia está exatamente aqui: o mundo tem um inicio contingente, mas não tem fim. Aqui está a completa novidade da concepção Cristã. Para os gregos "inícios" e "fins" estavam intrinsecamente ligados: um "fim" estava implicado em qualquer "inicio" e "sem fim" poderia significar automaticamente "sem inicio." Ou de novo, na concepção grega, somente aquilo que era "necessário" podia pleitear uma verdadeira e permanente "existência." Isto era inevitável no sistema monístico da metafísica. Agora, a perspectiva total havia mudado à luz da Revelação.

IV

Contingência implica num "inicio." O mundo foi iniciado. Ele teve um inicio cronológico. Certamente o mundo foi criado não no tempo, mas sim com o tempo. "O inicio do tempo não é ainda tempo e nem mesmo a mais ínfima partícula dele," diz São Basílio — assim como o inicio da estrada não é ainda a própria estrada, e de novo "o inicio, com efeito, é indivisível e instantâneo (αμερες τι και αδιαστατον, em Hexaemeron, hom. 1, 6). O Bem-aventurado Agostinho também foi enfático neste ponto: procul dubio non est mundus factus in tempore, sed cum tempore; quis non videat quod tempora not fuissent, nisi creatura fieret? (Civ. Dei, i i; 6). O mundo criado sozinho existe no tempo, como numa sucessão ou duração real. Por isso, a criação do mundo é também a criação do tempo. Porém, o mundo criado pode existir também de outra maneira, uma vez que ele foi criado. Este modo de existência ainda é, agora, inconcebível para nós. Mas, depois da Ressurreição Geral, sugeriu São João Damasceno, não haverá mais qualquer sucessão de momentos, de dias e noites, mesmo para as criaturas, mas para os justos haverá somente um dia eterno, e para os maldosos e condenados—uma noite sem fim (de fide orth. 2; 1). A seqüência de momentos, as séries temporais em si, terão seu último termo. Mas lembremo-nos, o final do tempo não será o final da existência das criaturas. De novo, esta é uma inovação Cristã. As séries temporais têm seu primeiro termo. Nós podemos imaginar este inicio do tempo somente de maneira retrospectiva, remontando as séries de sucessões — foi este precisamente o método de São Basílio (Hexaem. 1; 6 — "ascendendo no passado"). E então, nós chegamos definitivamente ao ponto em que nós simplesmente temos que parar, ou melhor, nós postulamos a parada. Este é o absoluto primeiro termo das séries temporais, ou o último de nossa regressão mental. Antes dele, ou além dele, não existem termos, de todo, isto é, nenhum termo ou momento das séries temporais, porque não havia tempo antes do tempo começar. Pois tempo é precisamente "o número de movimentos, estimados de acordo com seu antes e depois" (Aristóteles, Phys. 4: 3). Nós não podemos visualizar este primeiro inicio diretamente. Porém nós podemos visualizá-lo pelo contrário, descobrindo e postulando a impossibilidade de regressão infinita. Importa pouco se realmente medimos o tempo decorrido desde este inicio exatamente em séculos ou dias. O que realmente conta é justamente este postulado de parada. Este postulado significa também que o "número" de tempos passados é um número finito. Certamente, o tempo não começou no tempo, pois não havia nada que precedesse o tempo no tempo. Um "tempo vazio" é somente uma ficção. É altamente não-exato dizer que Deus era antes que o tempo tivesse começado. A palavra antes implica justamente na seqüência de instantes, ela é uma expressão completamente temporal. Mas Deus não precede o mundo criado no tempo. "Nem Tu precedes o tempo pelo tempo; do contrário Tu não precederia todos os tempos. Mas Tu precedes todas as coisas passadas pela sublimidade de uma sempre presente eternidade — celsitudine semper presentis aeternitatis... Teus anos são um dia; e Teu dia não é diário, mas Hoje... Teu Hoje é eternidade " (Bem-avent. Augustine, Conf. 11; 16). Nós não podemos compreender a transição da Divina Eternidade para a duração ou sucessão de tempos — precisamente porque não há transição homogênea, mas um definitivo hiato ou ruptura. "Eternidade" e "tempo" são dois modos diferentes de existência. Elas diferem essencialmente — em qualidade, não simplesmente em medida ou comprimento. E Omne tempus não é o verdadeiro Semper, para citar o Bem-aventurado Agostinho mais uma vez (Civ. Dei 12; 15). Mas o tempo começou. Este inicio de tempo, com o mundo criado, é um inicio absoluto — o inicio de todos os inícios, que começou. Tempo e eternidade não podem ser postos juntos: eles não têm medida comum, eles são, como que, dimensões diferentes de existência. "Nós estamos tratando de duas ordens de seres que não podem ser somados nem subtraídos; eles são, com todo rigor, incomensuráveis, e eis porque eles são também de existência compatível uns com os outros"

V

Os Padres do século quarto, na sua luta contra a heresia ariana, estiveram especialmente preocupados com uma clara definição da Criação. Como coloca Santo Atanásio, as coisas criadas não têm nada em comum com Deus κατ’ουσιαν, e sγo constituídas fora Dele (εξωσεν), sendo criadas por Sua graηa e vontade (χαριτι και βουλησει), assim ela poderiam atι cessar sua existência se Ele assim o quisesse (c. arian. 1; 20). A Criação, antes de tudo, exclui toda "consubstancialidade" ou "coessencialidade" da Causa produtiva com as coisas produzidas. A Criação deve ser distinguida estritamente de outro modo de auto-produção que teria por origem a sua própria natureza. O Verbo de Deus é nascido eternamente εκ της μακαριας εκεινης και αει ουσης ουσιασ, mas o mundo ι criado εκ βουλησεος (c. Arian. 2; 2; cf. 3; 60-6). Encontramos a mesma distinção em São Cirilo de Alexandria: ετερον γαρ τι εστιν παρα το κτισμα το γεννυμα, το μεν γαρ εκ της ουσιας του γεννωντυς προεισι φυσικος, το δε εξωθεν εστιν, ως αλλοτριον (Thes. ass. 15, M.G. 75, 276; cf. ass. A, 313; το με γαρ ποιειν ενεργειας εστιν φυσεως, δε το γενναν, φυσις δε και ενεργτια ου ταυοτν). Finalmente, São João Damasceno resume a tradição patristica estabelecida nas seguintes afirmações concisas: "Pois nós mantemos que é Dele, isto é, da Natureza do Pai, que o Filho é gerado... E a Criação, apesar de originada depois, é, no entanto, não derivada da essência de Deus (ουκ εκ της του Θεου ουσιας); mas ι trazida para a existência do nada por Sua vontade e poder (βουλησει και δυναμει). Pois geraηão significa que o gerador produz de sua essência rebento similar em essência (το εκ της ουσιας του γεννωντος προαγεσθαι το γεννωμενον ομοιον κατ’ουσιαν); mas criaηão e fazer significam que o Criador e fazedor produz do que lhe é externo, e não de sua própria essência, uma criação de natureza absolutamente dissimilar (ουκ εκ της ουσιας του κτιζοντος και ποιουντος γενεσθαι το κτιζομενον και ποιουμενον ονομοιον παντελως)… Mas geraηão Nele é sem inicio e eterna, sendo o trabalho de natureza e produzido de Sua própria essência (αναρχος και αιδιος, φυσεως εργον ουσα και εκ της ουσιας αυτου προαγουσα)… Enquanto criaηão em Deus (επι Θεου), sendo o trabalho da vontade (θελησεως εργον ουσα), nγo é coeterna com Deus." (de fide orth. 1; 8). Por virtude de Sua fecundidade natural (της φυσικης γονιμοτητος) o Pai gerou Seu Filho eterno. “Fecundidade natural” ι precisamente a capacidade de gerar de Si próprio, de Sua própria substância ou natureza — para gerar consubstanciais ou coessenciais. Existe, como se fosse, algo de "natural" ou necessidade essencial. A Geração e Processão eternas são geradas dentro da Divina natureza (ou "essência"). Mas Criação é um ato de vontade, um ato e ação inteira e essencialmente livres. E por este ato criativo Deus traz para ser coisas completamente dissimilares à Ele próprio. Como um trabalho da vontade, não da essência de Deus, a criatura não é de todo coessencial, ou mesmo similar ao Criador. "Na criatura não há nada pertencente à Trindade, salvo que a Trindade a formou," diz o Bem-aventurado Agostinho: non de Dei natura sed a Deo sit facta de nihilo, nibilque in ea esse quod ad Trinitatem pertineat, nisi quod Trinitas condidit (de Gen. ad litt. lib. imp., c. I, M.L. 34: 221).

VI

O mundo é criado—isto significa: é trazido para a existência por liberdade pura e absoluta ex mera libertate, ou liberrimo consilio. Duns Scotus, doutor sutil, formulou este pensamento com uma clareza muito sutil. Deus criou as coisas, não por uma necessidade seja de essência ou de pré-ciência ou de vontade, mas por uma pura liberalidade, que nada externo a Ele constrangeu-O a fazer o que Ele criou. Procedit autem rerum creatio a Deo non aliqua necessitate vel essentiae, vel scientiae, vel voluntatis, sed ex mera libertate, quae non movetur et multo minus necessitatur ab aliquo extra se ad causandum (Duns Scotus, Quaest. disp. de rerum principio, qu. 4, art. I, n. 3). Mas, não é suficiente excluir todo constrangimento externo. Obviamente, tal constrangimento externo não era possível antes que o próprio "exterior" houvesse sido criado. Antes da Criação nada existia além de Deus. Como já tem sido mencionado, a Criação é precisamente a primeira apresentação de um "exterior" em relação a Deus — logicamente, não como qualquer limite ou restrição do ser Divino ou de Sua natureza, mas no sentido de que outra natureza é trazida para a existência além de Deus, que um novo modo de existência, de uma existência derivada, é iniciada. Sem dúvida, no ato da Criação Deus é determinado somente por Ele próprio. Agora, temos que dar mais um passo: Ele não é determinado ou movido a criar nem mesmo por qualquer necessidade interna. Ou, em outras palavras Deus qua Deus não é inevitavelmente Criador. Ele poderia não ter criado nada, sem nenhuma diminuição de Sua suprema plenitude ou de sua superabundante perfeição. Ou novamente, na frase de E. Gilson, "é bem verdade que um Criador é eminentemente um Deus Cristão, mas um Deus Cuja própria essência é ser um Criador não é, de todo, um Deus Cristão." Mas precisamente neste ponto nós temos que enfrentar a maior antinomia de todas — nodus totius teologiae intricatissimus, como Billuart a caracterizou. Isto já havia sido plenamente por Orígenes, mas, infelizmente, sua solução para o problema foi errada e desorientadora. Orígenes começa com a análise do nome Todo Poderoso, e prossegue como se segue: "Como ninguém pode ser um pai sem ter um filho, nem um mestre sem possuir um servo, assim Deus também não pode ser chamado de Onipotente, a menos que existam aqueles sobre quem Ele possa exercer o Seu poder; e, portanto, para que Deus seja mostrado ser Todo Poderoso, é necessário que todas as coisas existam. Pois se alguém tiver alguns séculos ou porções de tempos, ou seja, como for que queira chamar, enquanto aquelas coisas que foram feitas depois ainda não existiam, ele sem dúvida mostraria que durante estes séculos ou períodos Deus não seria onipotente, mas Se tornaria isto depois, isto é, no tempo em que Ele começasse a ter pessoas sobre quem exercer poder, e deste modo pareceria ter Ele recebido um certo acréscimo, e ter sido elevado de uma condição inferior para uma superior; já que não há dúvida que para Ele é melhor ser onipotente do que não ser. E agora, só pode parecer absurdo, que quando Deus não possuía nenhuma das coisas que seria adequado para Ele possuir, depois, por uma espécie de progresso, Ele entraria na possessão delas. Mas se nunca existiu um tempo em que Ele não foi onipotente, por necessidade aquelas coisas pelas quais Ele recebeu este título também deviam existir. E Ele sempre deve ter tido aqueles sobre quem exercer poder, e que foram governados por Ele ou como rei ou príncipe" (de princ. 1:2-10). Deus é imutável. Agora, Ele é o Senhor da Criação. É então concebível, pergunta Orígenes, admitir que Ele começou a ser Senhor? De novo, alguém é o Senhor de algum outro. Não é inevitável que este alguém deva existir por toda a eternidade, se Deus deve ser o Senhor de todos? Não é inevitável para Deus ter companheiro eterno, se Ele, de todo, deve ter um? Mas existe um companheiro, o Universo criado. Podemos escapar da conclusão de que o Universo sempre existiu? Orígenes retorna mais uma vez para a mesma questão. Ele teve que enfrentar a objeção seguinte: "Se o mundo teve seu inicio no tempo, o que Deus estava fazendo antes do mundo começar? Pois é ao mesmo tempo ímpio e absurdo dizer que a natureza de Deus é inativa e imóvel, ou supor que a Divindade, em algum tempo, não faça o bem, e que a onipotência em algum tempo não exerça o seu poder." Orígenes não tinha nada a oferecer exceto uma evasiva sugestão que existiriam "outros mundos" antes que o mundo presente começasse. "Nós podemos dar uma resposta lógica de acordo com os padrões da religião, quando nós dizemos que não então pela primeira vez Deus começou a trabalhar quando Ele fez este mundo visível; mas como, depois da sua destruição haverá um outro mundo, assim também acreditamos que outros existiram antes que o presente viesse a ser (de princ. 3; 5, 3). A dificuldade de Orígenes era real. O Bem-aventurado Agostinho enfrentou o mesmo problema. Cum cogito cujus rei Dominus semper fuit, si semper creatura non fuit, affirmare aliquid pertimesco (Augustine, Civ. Dei, 12: 15). Orígenes complicou o problema por sua concepção inadequada de tempo eterno, isto é, de uma seqüência infinita de instantes ou duração. Mas o fulcro do problema não estava ali. Ele havia admitido muito mais do que poderia ser imposto sobre ele por esta concepção errada de tempo. Ele insistiu na intrínseca necessidade de Deus ser revelado ad extra, e na intrínseca inevitabilidade de ter realizado desde toda a eternidade, pelo menos implicitamente, completamente, tudo que poderia ser realizado. Se o mundo tinha que existir de fato, ele tinha que ser criado eternamente. A principal razão de Orígenes foi precisamente a Divina imutabilidade. Ele teve que chegar à conclusão que algum co-eterno não-ego era necessário para Deus, como uma condição da Divina plenitude e perfeição. Neste ponto ele foi incapaz de superar a limitação da mente grega e compreender a novidade da Revelação Cristã em sua total e misteriosa profundidade. Ele falhou em compreender o ponto em si da doutrina da Criação. Porém, mesmo que rejeitemos a concepção de Orígenes de um termo eterno e infinito, permanece questionável, se ao menos a idéia do mundo não pertence definitivamente à plenitude incondicional do Ser Divino. Consideremos garantido, que o real, ou "mundo visível’, como Orígenes costumava dizer, tenha tido realmente um verdadeiro inicio no tempo, e se pode pretender que não havia nada antes que ele existisse. mesmo assim, nós temos que encarar o desafio mais profundo: não esteve a idéia do mundo sempre presente na mente Divina, não pertence ela à plenitude imutável do Divino auto-conhecimento e auto-determinação? É na verdade, uma questão sutil e delicada. Mas nós dificilmente podemos evitá-la. A verdadeira antinomia pode ser colocada desta forma: "Ser criador" não é um atributo "essencial" ou constitutivo de Deus, do Ser Divino — Deus cria em perfeita e ilimitada liberdade. A onipotência de Deus deve ser definida não somente como o supremo poder de criar, mas também como o poder absoluto de, de todo, não criar. Deus poderia ter tolerado que nada existisse fora Dele ( nós já enfatizamos este ponto). Criar ou não criar são para Deus, como que, coisas iguais, e seria inútil procurar "razões suficientes" para a escolha Divina, porque o ato criativo não foi imposto sobre Deus de forma alguma, nem mesmo por Sua própria bondade ou por Sua superabundante perfeição. Em Sua beatitude plena e infinita Deus não tem necessidade de nada. Daí, foi um milagre e mistério o fato de Deus ter tido razões (próprias) para criar. Não há ligação imperativa ou necessária entre a Divina Natureza (ou Essência) e o decreto criativo. Mas, se Deus não é necessariamente Criador por sua natureza ou essência, teria Ele começado a criar? Na verdade, uma suposição absurda e ímpia, porque Deus é acima de toda mudança, e não há Nele "sombra de variação" (Tiago 1: 17). Mas, de novo, se Ele não começou a ser Criador, se Sua vontade criativa é eterna, como obviamente ela é, então Ele criou ab aeterno e a criatura é coeterna com Deus? Uma afirmação ainda mais absurda, já que a característica distintiva da criatura como tal, para começar, é ter vindo para a existência do nada. "Nulla fiebat creatura, antequam fieret ulla creatura,," diz o Bem-aventurado Agostinho (Conf. 11: 12). O mundo começou — com o próprio tempo. E Deus não começou a criar. Há aqui uma suficientemente aguda antinomia. É muito mais do que um "quebra-cabeças sagrado," aenigma sacrum. E não pode ser resolvido ou simplesmente dispensado por uma distinção entre a eterna vontade e a sua realização temporal. Obviamente, não há nenhuma dificuldade em conceber uma disposição eterna de efeitos a serem produzidos no tempo, isto é, em ordem e seqüência temporal. Mas o verdadeiro nó do problema não está aí. O problema real é precisamente este: qual é a relação entre a essência eterna de Deus e Sua eterna Vontade. Ou, em outras palavras, a antinomia definitiva está implicada na concepção de liberdade eterna. Ou de novo, como podemos reconciliar a perfeita Imutabilidade de Deus com Sua Liberdade criativa? Quero dizer, como poderemos escapar de atribuir ao Deus imutável algum inevitável plano de Criação? Ainda que seja somente um plano de possível criação. Mesmo em tal suposição alguma necessidade estaria implicada.

VII

O pensamento criativo Divino é eterno. "Deus," diz São João Damasceno, "contempla tudo antes da criação, pensando fora do tempo (αχρονως εννοησας); e tudo vem a acontecer em seu tempo de acordo com Seu pensamento de vontade fora do tempo, que é predeterminação, e imagem e padrão — κατά την θελητικην ουτου αχρονον εννοιαν, ηυις εστι προορισμος, και εικων, και παραδειγμα (de fide orth. 1; 9). Estas "imagens" e "padrões" constituem o eterno e imutável conselho de Deus, no qual tudo que é preordenado por Deus e está sendo realizado infalivelmente é eternamente prefigurado, εχαρακτηριξετο η βουλη αυτου η προαιωνιος και αει ωσαυτως εχουσα (St. John Damasc. de imagin. 1, 10). Este conselho de Deus é eterno e não teve inicio (αναρχος), porque tudo ι imutável em Deus. É "a imagem de Deus," o segundo tipo de imagens Divinas, orientadas ad extra (de imag. 3:10 — δευτερος τροπος εικονος, η εν τω Θεω των υπ’αυτου εσωμενων εννοια τουτεστιν η προαιωνιος αυτου βουλησις, η αει ωσαυτως εχουσα, ατρεπτον γαρ το Θειον, και η βουλησις αυτου αυτουαναργος). Sγo João cita o Pseudo-Dinis. "E nós damos o nome de "Exemplares" para aquelas leis que, preexistentes em Deus como uma unidade, produzem a essência das coisas; leis que são chamadas em teologia de "Preordenações" ou Divinas e benevolentes Volições, leis pelas quais o Supra-Essencial preordenou e trouxe para ser o Universo todo" (de div. nomin. 5; 8 παραδειγματα δε φαμεν είναι τους εν Θεω των οντων ουσιοποιους και ενιαιως προυφεστωτας λογους, ους η θεολογια προορισμους καλει, και θεια και αγαθα θεληματα των οντων αφοριστικα και ποειτικα, καθ’ ους ο Υπερουσιος τα οντα παντα και προωρισε και παρηγαγεν). Estas "idéias" e "preordenações" são, na frase de São Máximo o Confessor, perfeitas e eternas noções do Deus Eterno, νοησεις αυτοτελεις αιδιοι του αιδιου Θεου (schol. in div. nom. 5; 5, M.G. 4: 317 C). temos agora que perguntar e responder a duas questões, e é altamente importante não confundi-las, pois elas pertencem definitivamente à diferentes níveis ou contextos teológicos. Primeira: qual é a relação entre estes padrões "pré-eternos" do mundo e o mundo temporal realmente em existência? Segunda: qual é a relação deles com a própria Essência e Ser de Deus. A primeira pertence à esfera da Divina economia, e a segunda à própria teologia, Comecemos com a primeira.

VIII

Deus constituiu a criatura em Sua idéia — desde toda a eternidade. Mas ainda não era a própria criatura. Era somente uma imagem, um rascunho, um plano, uma proposição da criatura. As criaturas antes de serem criadas — com o tempo—existiam, porém não existiam, como o Bem-aventurado Agostinho sugeriu admiravelmente: elas existiam na pré-ciência de Deus, mas não existiam em sua própria natureza. — Haec igitur antequem fierent, utique non erant. Quomodo ergo Deo nota erant quae non erant ? Proinde, antequam fierent, et erant et non erant; erant in Dei scientia;.non erant in sua natura (Bem-aventurado Agostinho, de Gen. ad. litt., 5; 18). O termo "existir" é ambíguo e desorientador neste ponto. Falando propriamente, as criaturas simplesmente não existiram antes que viessem para a existência em sua natureza própria e temporal. A idéia do mundo não é ainda o mundo em si. E há um hiato absoluto e qualitativo, uma verdadeira distância de natureza — não há uma passagem contínua ou inevitável entre os dois. Transição da "noção" ou "padrão" (a Divina εννοημα) para o "ato" e realização (εργον) não é um processo na idéia Divina, mas exatamente a emergência, criação e primeira apresentação da nova realidade, que, no mais estrito sentido, simplesmente não existia de todo ou, como se tivesse sido precedida em seu próprio nível e em seu próprio tipo, por "nada" ("do que" ela primeiro emerge), isto é, precisamente do nada completo. Como já afirmamos, é um inicio absoluto na ordem da existência, ou o inicio da nova ordem da existência em si. A Divina idéia permanece fora do mundo, que é criado de acordo com ela. A idéia em si não entra no processo temporal, no processo des Werdens. Deus criou de acordo com Sua idéia ou idéias e não fora de Sua idéia. A Divina idéia é um protótipo eterno na própria mente de Deus, de acordo com o qual tudo que é produzido é produzido e formado. Isto é um plano transcendente de criação. Esta foi precisamente a concepção do Bem-aventurado Agostinho, Sant namque ideae principales formae quaedam, vel rationes rerum stabiles atque incommutabiles, quae ipsae formatae non sunt, ac per boc aeternae ac semper eodem modo se habentes, quia in Divina mente continentur. Et cum ipsae neque oriantur, neque intereant; secundum eas tamen formari dicitur omne quod oriri et interire potest, et omne quod oritur et interit (Bem-aventurado Agostinho,de div. quaest. 83, qu. 46; 2, M.L. 40: 30)., de div. quaest. 83, qu. 46; 2, M.L. 40: 30). A idéia do mundo está em Deus, e o mundo em si está fora de Deus. O erro fundamental dos panteístas em sua identificação da idéia com a existência em si: então seria a Divina idéia como tal que seria desenvolvida no tempo e que seria sujeita ao processo temporal; então, de novo, a "substancia" das coisas seria uma revelação "substancial" do próprio ser e existência de Deus; então o próprio Deus estaria envolvido no processo do mundo. Ao contrário, nós temos que insistir no fato básico de que a idéia não é, de todo, o germe das coisas. O "germe" das coisas vem precisamente do nada, isto é, é criado. A idéia das coisas é a sua imagem ou exemplar transcendente, e sua norma — não imanente. Criação consiste na chamada de Deus, "do nada" (εξ ουκ οντων) para a existência de uma nova realidade, que se torna a portadora ou carregadora de Sua idéia, sem ser, nem mesmo existencialmente, identificada com ela — que deve e pode realizar a idéia, na ordem de criatura da existência, pelo seu próprio se tornar no que foi intencionado e preordenado a se tornar. O mundo criado é um objeto "exterior" do Divino pensamento, e não este pensamento em si. Ele participa na idéia, contanto que se conforme com ela. Mas mesmo nesta participação não há confusão das ordens de existências. Assim, a própria realidade do mundo criado é inteiramente assegurada.

 

IX

E agora nós chegamos no ponto crucial. Temos que nos voltar para a nossa segunda questão. A idéia da Criação, de um Divino "exterior," um Divino "não-ego," obviamente não pertence à plenitude intrínseca do ser Divino — não é produzido em virtude da "natural fecundidade" de Deus, pois neste caso seria uma espécie de "quarta hipóstase," — uma suposição ímpia e sacrílega. Ela foi produzida, desde toda a eternidade, mas em uma suprema liberdade, por um ato de vontade. Nós podemos ousar dizer que esta idéia pode não ter sido produzida também. Certamente ela é para nós um casus irrealis, uma possibilidade totalmente formal. Mas ela nos ajuda a compreender o total significado da idéia da Criação. Nós podemos também dizer que o ser Trinitário é uma revelação intrínseca da Divina essência, que é eminentemente necessária — e talvez, não haja nada necessário, no sentido estrito e definitivo, exceto a Santíssima Trindade, consubstancial e indivisível. Deus é Trindade. E Ele tem Sua idéia de Criação —desde toda eternidade. Ainda, há uma diferença definitiva entre o "é" e o "tem." De outra forma seria negar Sua liberdade criativa, que não é somente uma libertas specificationis, mas acima de tudo e definitivamente, uma libertas contradictionis. Deus inventou Sua idéia do mundo — desde toda a eternidade. Isto é para dizer, ao mesmo tempo, que Ele teve supremas razões para apresentá-la e que Ele não estava constrangido em Seus ato eterno, nem mesmo pela Sua Bondade e Amor. Nós não podemos dizer que Deus criou o mundo com a mesma "necessidade" com que Ele ama a Si próprio. O Amor de Deu, Sua abençoada bondade, não pode ser aumentado pela contemplação de todas as existências finitas que podem ser trazidas do nada para participar na Sua Divina graça. Nem a superabundante beatitude de Deus pode ser limitada pela ausência destas existências, nem mesmo pela ausência da idéia da essência delas. Deus é supremamente αυταρκης. Ele nγo tem necessidade de nenhum não-ego, mesmo imaginado, ainda que em idéia. Deus não pensa em antíteses. Ele não tem que Se opor a outro, Se elevar sobre outro, Deus é supremamente livre em relação a possíveis criaturas. Não há causa sobrecarregando Sua vontade. Deus é eminentemente livre em relação, até mesmo, à possibilidade de criaturas. Há então uma clara distinção entre a necessidade da Divina Natureza e a absoluta liberdade da Sua beneficente vontade. Ou então, há uma distinção entre Seu ser e Sua vontade. Deus não é, falando-se estritamente, causa sui — Ele é Quem é. Mas Ele é causa mundi — precisamente na ordem da existência. Esta distinção não é, por certo, uma divisão—não há divisão, nem intervalo na Vida Divina. Além disto, a Divina Vontade revela a Divina Natureza. Citemos neste ponto, São Gregório de Nazianzo. "Deus inventou (ou imaginou) os poderes angélicos e celestes, e Sua imaginação se tornou obra," και το εννοημα εργον ην (orat. 45, em S. Páscoa, 5). Imaginou — é a palavra certa. "Desde toda a eternidade, "antes" da criação," diz São Gregório em outra ocasião, "o pensamento de Deus "contemplou o esplendor ardentemente desejado de Sua Bondade, o igual e igualmente perfeito esplendor de Sua tri-hipostática Divindade, Que é conhecida para Ele próprio e para quem Ele Se digna manifestá-la. A Inteligência que deu origem ao mundo mapeou também em sua sublime concepção as formas deste mundo." (carm. 4, de mundo, vv. 60-9). Estas formas não pertencem ao esplendor da tri-hipostática Divindade. A iniciativa criativa é seguramente eterna, mas ela vem a ser, como se fosse, a segunda. Devemos admitir alguma misteriosa gradação na vida eterna de Deus. Com uma ousada, mas com uma tolerável inexatidão devemos dizer, talvez, que a intenção criativa é eterna, porém não co-eterna com Deus. Isto não para dizer que ela é acidental, mas para enfatizar que ela é livre. Por certo, há um limite para nosso entendimento lógico: aqui toda palavra se torna tola e inexata — todas palavras têm aqui um caráter bastante apofático, proibitivo ou exclusivo, e não positivo ou catafático. Porém, a teologia catafática sempre necessita de uma correção apofática. O mundo, mesmo que na Divina idéia dele, é sempre um absoluto excedente, uma realidade supra acrescentada, ou melhor um dom supra acrescentado, livre e generoso, da toda poderoso liberdade e super abundante Amor de Deus. Isto significa exatamente que o mundo é criado. Isto pode parecer enigmático, paradoxal, antinômico. Agora, a criação é, de fato, paradoxal, miraculosa, misteriosa e enigmática. A razão natural do homem procura sempre razões, necessárias e suficientes, que se imponham inevitavelmente. Não há tal razão para a Criação. Seguramente, a criatura não pode existir sem o Criador, mas o Criador é livre para não criar—isto significa exatamente que Ele é o Criador. Isto não significa somente a possibilidade de não executar o plano eterno no tempo, mas também de não ter o plano, ou não o ter preparado de todo. Este plano é obviamente eterno, como todos os projetos da Divina Vontade. Porém, e justo para escapar da perigosa confusão, nós temos que distinguir, como que, dois modos de eternidade: a eternidade essencial na qual só a Trindade vive, e a eternidade contingente dos atos livres da Divina graça.

X

Tudo que nós afirmamos positivamente sobre Deus não revela Sua própria natureza, mas somente "o que tem referência com ela," τα παρι την φυσιν (Sγo João Damasceno de fide orth. 1:3). São João resume aqui os motivos típicos da teologia grega (o Bem-aventurado Agostinho diverge radicalmente da teologia grega justo neste ponto). É de acordo com Santo Atanásio que Deus Se apresenta em todas as coisas por Seu poder e bondade, mas permanece fora de tudo em Sua própria natureza εξω δε των παντων --- κατά την ιδιαν φυσιν (de decr. 2). É de acordo com São Basílio e com São Gregório de Nissa que no mundo somente as Divinas energias, as forças ativas da Divina bondade, são manifestadas e operam; e são somente estas energias que são acessíveis e compreensíveis em nossas relações com Deus (São Basílio, adv. Eun. 1:32 δυναμεως γαρ, και σοφιας, και τεχνυς, ουχι δε της ουσιας αυτης ενδεικτικα εστιν ποιηματα, cf. bom. inillu Vol. etc., M.G. xxxi, 216 A; εκ των ενεργειων γωωριζεται μονον, São Gregório de Nissa, em Cant. cant. II, M.G. xlix, 1013 B: την θειαν φυσιν ακαταληπτον ουσαν παντελως και ανεικαστον, δια μονης ενεργειας γινωψκεσθαι). Porém, estas energias são o próprio Deus. As profundezas da essência de Deus, habitando na luz inaproximável, são fechadas para nós para sempre. Mas o que é compreensível Dele, Deus revelou por Suas operações no mundo. Por elas nós podemos contemplar Sua eterna Divindade e poder (Rom. 1; 19-20). Mas a Natureza de Deus é inefável e inacessível — e é acessível somente para o próprio Deus, como diz São Basílio (adv. Eun. 1:14). Nós só conhecemos as Divinas ações — "algo que segue Sua natureza," de acordo com São João Damasceno (τι των παρεπουμενων τη φυσει, de fide orth. I; 9) — τα περι αυτον, como diz São Gregório de Nazianzo (orat. 38:7). Nós somente podemos tocar a Sua graça, mas Ele próprio está lá; Ele desce até nós por Suas energias, mas nós nunca podemos nos aproximar da Sua natureza, diz São Basílio (ep. 234, ad Amphil., M.G. xxxii, c. 869 A-B: αι μεγαρ ενεργεια αυτου προς ημας καταβαινουσιν, η δε ουσια αυτου μενει απροσιτος). Foi a opinião comum dos Padres Gregos (São João Crisóstomo incluso; cf. seu de incompr. Dei natura 3; 3, M.G. xlviii, 722). — a graça não é de modo algum separada de Deus, é Ele próprio. Mas talvez nós devamos dizer: é a face de Deus virada para fora — ad extra, para a criatura, ou simplesmente a Mão Direita de Deus que cria e preserva. Estas não são metáforas vãs e antropomórficas. Não há melhor meio de enfatizar diferença distintiva entre o que é estritamente essencial (e neste sentido "necessário") e o que é eminentemente livre em Deus. Esta diferença é por certo não uma divisão. A Divina Natureza e a Divina graça são completamente indivisíveis, na unidade do Divino ser. Porém, nós temos que distinguí-las. Esta distinção já está implicada na tradicional distinção da Teologia (no sentido próprio) e da Economia, θεολιγια e οικονομια, distinηão esta que nós podemos rastrear até os primeiros tempos. Os Santos Padres e Doutores da Igreja, desde os primeiros tempos, distinguiram com cuidado o que é para ser dito sobre o próprio Deus, e o que é dito (e deve ser dito) sobre Sua voluntária condescendência (começando precisamente com a própria Criação). Uma dificuldade básica foi inerente nesta distinção. Nós conhecemos Deus somente através de Sua revelação, isto é, precisamente enquanto Ele estivesse, como que, virado para nós ou para o mundo criado em geral. Nós somente O conhecemos em Sua relação conosco. Além disso, Ele só é reconhecível em Sua "economia." Nosso vocabulário teológico é inevitavelmente "relativo," isto é, pressupõe nossa própria existência. Portanto, "teologia" no estrito senso é inevitavelmente apofática e analógica. Todos os termos teológicos são antropomórficos, e nós podemos transcender esta limitação antropomórfica somente por um uso combinado de negação e sublimação, por um duplo caminho de negationis e eminentiae. No período anti-Niceno nunca foi levada em total claridade. A Doutrina da Santíssima Trindade ainda não estava liberada de motivos cosmológicos, e o Verbo de Deus era descrito usualmente no contexto da Revelação Divina, exatamente como o Deus da Revelação. Havia um inerente perigo de subordinação implicado nesta aproximação.Havia alguma definitiva ambigüidade na doutrina toda do Logos, como se ela tivesse sido desenvolvida pelos Apologistas e Alexandrinos. Esta ambigüidade foi finalmente superada somente na teologia do século quarto. Nós podemos compreender adequadamente a distinção Capadocia entre as Divinas ουσια e ενεργεια somente nesta perspectiva e contexto histσrico. A doutrina Patristica toda sobre este assunto foi resumida mais tarde por São Gregório Palamas. A Doutrina das Divinas "energias" foi elaborada e formulada nos Concílios de Constantinopla no século quatorze (1341, 1347, 1351, 1352). Não há necessidade, para nosso propósito imediato, de se entrar em detalhes desta doutrina. É suficiente lembrar os principais itens. A Divina ουσια ι absolutamente incomunicável para as criaturas, absolutamente inacessível para elas, αμεθεκτη. Porιm, Deus ainda é acessível para Sua criação — em Suas "energias." As criaturas nunca participam na própria "essência" de Deus, mas somente nas Divinas "energias" — porém, esta participação na graça significa precisamente sua íntima e verdadeira comunhão com Deus. A energia de Deus é a própria fonte e supremo principio da "deificação" (θεωσις) da criaηão (São Gregório Palamas, Capita, 75, M.G. CL, 1173; 78, 1176; 92 — 3, 1188; também Theoph. c. 912). Esta distinção já tinha sido sugerida por São Máximo o Confessor (apud Euthym. Zygaben., Panoplia dogmatica, tit. 3, M.G. cxxx, 132; μεθεκτος μεν ο Θεος κατά τας μεταδοσεις αυτου, αμεθεκτος δε κατά το μιδεν μετεχειν της ουσιας αυτου). A Divina Energia difere da essência intrínseca de Deus, mas de modo nenhum é separada dela; ela é exatamente uma "natural e indivisível energia" de Deus (Concilio de 1352, em Triodion, ed. Veneza 182, p. 170 φυσικη και αχωριστος ενεργεια και δυναμις του Θεου). Nem é a Energia meramente "um acidente" (ουτε συμβεβηκος — Cap. 127, c. 1209), pois ela é absolutamente imutável e eterna (αμεταρλγτον), sem inicio nem fim, co-eterna e prι-eterna (Cap. 140, c. 1220: η δε του Θου ενεργεια ακτιστος εστι και συναιδιος Θεω; cf. The Tbeoph. c. 953 ακτιστος και αιδιος ως δυναμις θεοπρεπη περι τον Θεον ουσα και προ της του κοσμου συστασεως; Concilio de 1351, M.G. cli, c. 736). É uma revelação eterna da vontade criativa de Deus, ou o poder eterno de Deus (Theoph, C. 956 η προνοια φυσικη και ουσικοδης ενεργεια; Cap. 135, c. 1216). É de novo o eterno προοδος de Deus, Seu eterno “apresentar-Se” (Theoph. c. 937). Mas a idéia e o termo são tradicionais e podem ser rastreados até o Pseudo-Dinis e seus primeiros comentadores (cf. especialmente Scholia em De div. nom. 1: 5 e 5; 1, M.G. iv, 205-8 e 309; προοδον δε την θειαν ενεργειαν λεγει, ητις πασαν ουσιαν παρηγαγε; cf. também São João Damasceno, de fide orth. 1:14 εν γαρ εξαλμα και μια κινησις, η θεια ελλαμψισκαι ενεργεια). "Essência" e "energia" diferem, mas sem nenhum prejuízo para a "Divina simplicidade." Não devemos dar pouca atenção ao fato de que Deus é o Deus Vivo, a Santíssima Trindade, e não simplesmente um Absoluto — Ele Que é, e não meramente o Ser. O propósito definitivo da distinção Palamita entre "essência" e "energia" em Deus foi exatamente para salvaguardar a Divina liberdade. A negação desta diferença parece implicar que a "economia" toda de Deus é simplesmente Seu ato "natural," isto é, "necessário," ou constitutivo de Seu próprio ser, como se fosse, imposto sobre Ele. A diferença entre "Geração" e "Criação" seria então obscurecida, uma e outra sendo então igualmente atos da essência ou natureza. De novo, a diferença entre a ουσια e a θελυσις tambιm seria obscurecida. Não haveria clara distinção entre a Divina Pré-ciência e a criação real: a própria criação real não se tornaria então, eterna ou sempiterna? Resumidamente, a Liberdade de Deus estaria perigosamente comprometida (Capita, 96 sgs., c. 1181 e sgs.; cap. 135, c. 1216; cf. também Marco de Éfeso, Capita syllog. 13 sgs., ed. W. Casz, Die Mystik des Nicolas Cabasilas, Greiszwald, 1849, Appendix II, s. 217 sgs.; São Gregório Palamas, se refere ele mesmo, à autoridade de São Cirilo de Alexandria Thesaur. ass. 18, M.G. lxxv, 313; το μεν ποιειν ενεργειας εστιν, φυσεως δε το γενναν, φυσις δε και ενεργεια ου ταυτον). O único meio de escapar das ou evitar estas perigosas implicações e conseqüências foi precisamente marcar clara distinção entre a "natureza" ou "essência" e a "energia." Este foi também o passo seguinte da adaptação radical da filosofia grega aos novos requerimentos da mente Cristã.

XI

Temos que manter em mente a distinção básica entre "teologia" e "economia." Deus é eminentemente livre em Suas operações criativas. Portanto, todos os motivos cosmológicos devem ser, o mais cuidadosamente possível, evitados na doutrina teológica da Santíssima Trindade. A menor sombra de cosmologia introduziria contingência de vontade nas relações mútuas das Divinas Hipóstases, e então, a perfeita "coessencialidade" da Santíssima Trindade estaria comprometida. Expressões claras devem ser encontradas para a formulação do mistério da Trindade como uma lei sempiterna e constitutiva da Divina Essência, feita a abstração de todos os motivos ou aspectos econômicos, sejam cosmológicos ou soteriológicos. Como já mencionamos, os professores do Inicio da Igreja encontraram expressão clássica que marca esta diferença e exclui toda "economia" do dogma Trinitário. Para compreender direito e confessar em termos adequados a verdadeira Divindade do Filho Unigênito, nós devemos eliminar não somente os motivos de Plotino e Philos da doutrina do Divino Logos, mas até mesmo todos os motivos "cristológicos" também. No correr da reflexão teológica, é exatamente a Pessoa do Verbo Encarnado que é o ponto-de-partida. Mas para formular a Fé Triadológica, devemos fazer abstração também da Cristologia. As relações das Três Hipóstases Divinas devem ser definidas sem nenhuma relação com a criatura, preconcebida, realizada, caída no pecado, salva ou santificada. O papel demiúrgico do Verbo Divino é certo, é certificado por São João (1: 3-4), é confessado no Credo: por Quem todas as coisas foram feitas — seguramente, não só porque Ele é Deus, mas também porque Ele é o Verbo e o Filho, a Sabedoria hipostática de Deus. Porém, este momento demiúrgico em si deve ser eliminado na explicação da Geração eterna do Filho. Se o mundo não tivesse sido criado, o Filho não teria deixado de existir, porque Ele é o Filho por natureza, κατά φυσιν. Ι um dos principais pensamentos de Santo Atanásio. "O Verbo Divino não recebeu existência por nossa causa; ao contrário nós recebemos a nossa por causa Dele. Não por nossa enfermidade Ele, o Poderoso, recebeu existência do Pai sozinho, para que Ele como um instrumento do Pai pudesse nos criar. Deus proíbe. Não é assim. Pois mesmo que parecesse bom a Deus não fazer as criaturas, ainda assim o Verbo estaria com Deus, e o Pai estaria Nele." Apesar de "para as criaturas ser impossível receber existência sem o Verbo" — ou "impossível receber existência de outra forma que não por Ele" — Sua existência hipostática própria não depende nada da vontade criativa do Pai a respeito da Criação do mundo. E é ímpio pensar, como fazem os arianos, que o Filho recebeu existência por nossa causa" e que o Pai "nos desejando, criou Ele por nossa causa" (Santo Atanásio, c. arian. 30 e 31). A criação é somente realizada pelo Verbo, mas o Verbo não é gerado para que as criaturas pudessem ser criadas. A distinção e propriedades hipostáticas do Verbo devem ser encaradas em sua relação com a vida íntima do Ser Divino, fazendo-se abstração dos destinos do mundo (criado ou a ser criado). A teologia de Nicéia insiste que a Trindade seria mesmo que não houvesse nenhuma criatura mas já que o mundo foi criado, nós observamos manifestações da Santíssima Trindade por toda parte, vestigia Trinitatis, e certas operações Divinas deveriam ser apropriadas para Pessoas particulares da Trindade. De novo, da mesma maneira todos os motivos soteriológicos devem ser eliminados. Por certo, o Plano Divino de Redenção e de Encarnação é um propósito eterno. (κατά προθεσιν των αιωνων, Efιs. 3;11), uma economia do mistério Escondido desde o começo dos tempos (v. 9), um decreto da Divina Presciência (Atos 2: 23). O Filho de Deus foi eternamente predestinado para a Encarnação, ou até mesmo para o Calvário, e em virtude desta predestinação eterna Ele é "o Cordeiro morto desde a fundação do mundo" (Apocal. 13: 8) e o eterno Sumo Sacerdote (São Policarpo, Philipp. 12; και αυτος ο αιωνιος αρχιερευς), “o Sacerdote para sempre” segundo a ordem de Melquisedeque. Porιm, esta predestinação "econômica" não pertence à vida íntima da Santíssima Trindade, no que concerne ao Seu intrínseco Ser — esta predestinação, προθεσις, ι uma ato livre da misericórdia e graça de Deus, não um aspecto de Seu Ser essencial. O ato da Encarnação não é, como que, pressionado sobre a Vontade Divina — ou seja, a Encarnação não é necessária para Deus ser o verdadeiro Deus, a Bendita Trindade. Ela é um trabalho da condescendência "econômica," não da natureza, como coloca São João Damasceno (c. Jacobitas, 52, M.G. xciv, 1464: ου φυσεως εργον η σαρκωσις, αλλα τροπος οικονομικης συνκαταβασεως). E alιm disso, o Verbo só é Sacerdote em virtude da Encarnação — antes de Se tornar Encarnado, Ele não era Sacerdote. Para resumir, toda Revelação, toda "Economia," é uma manifestação da suprema e absoluta liberdade de Deus. Ela não é absolutamente "necessária." Deus não necessita de revelação exterior. É o que nós podemos ousar chamar de Divina Contingência. Mas é contingência modo Divino. E como, em Sua misteriosa liberdade, Deus escolheu e decretou criação, tudo é realizado de acordo com os Seus desígnios e Sua presciência, e toda criação manifesta a Glória de seu Criador. O decreto contingente, mas eterno é um decreto inalterável, porque o Divino não muda ou altera. Porém, esta inalterabilidade não deve ser identificada com necessidade natural. Ao contrário, a inalterabilidade da Vontade de Deus é baseada exatamente em Sua suprema liberdade —porque, em Sua soberana liberdade, Ele decidiu inalteravelmente — desde toda eternidade. Esta eterna inalterabilidade não anula a liberdade. Nós podemos chamar, neste ponto, a distinção escolástica entre poder absoluto e poder ordenado — potentia absoluta e potentia ordinata.

 

XII

Desde toda eternidade Deus "imaginou" ou "inventou" a idéia da criatura. E com o tempo a criatura foi trazida do nada para a existência, ou melhor, a nova existência foi apresentada. A corrente do tempo começou. No processo histórico a criatura, ou melhor, as criaturas tiveram que ser realizadas conforme o Plano Divino e com os protótipos Divinos. Mas estes protótipos não são inescapáveis "leis da natureza." Eles são projetos e chamadas. Eles têm que ser realizados em liberdade, em obediência e submissão, mas definitivamente por livres esforços dos seres criados. Existe um problema a resolver, e não simplesmente um germe para ser desenvolvido. Arrisquemos o termo não-usual: um intelecto transcendente. Esta é a razão pela qual o processo histórico é, como se fosse, uma criação imitativa. Por certo, existem criaturas inferiores que são simplesmente desenvolvidas, que têm somente que se desenvolver, isto é, realizar as potencialidades escondidas em suas próprias naturezas, isto é precisamente Natureza, a existência Cósmica. Mas, o homem é mais do que somente um "ser natural," e é nele que a idéia geral de criação é plenamente revelada ou aberta — o homem é um "pequeno mundo," um microcosmo. E um homem não pode se realizar somente pela evolução de suas potencialidades inatas. Seu objetivo é exatamente se ultrapassar e se elevar para Deus, e ainda mais do que isso — participar na Vida Divina. É somente por esta participação que o homem se torna plenamente ele próprio. Nesta elevação ele se realiza, e como se fosse, ele se cria. No entanto, para a total realização o esforço livre do homem deve ser corroborado pela condescendência da graça. De novo, pelo livre esforço do homem, não somente os germes inatos são desenvolvidos, mas também novas realidades são produzidas. O livre esforço e a graça não são separáveis nesta ascensão ontológica ou crescimento dos "seres racionais" — porém, não há confusão nem composição — e portanto, não há, como se fosse, uma "transubstanciação" da criatura. A "deificação" θεωσις, ι precisamente, por assim dizer, uma impregnação com graça, εκ χαριτος (os termos sγo de São Máximo; cf. Santo Anastásio o Sinaíta, Hodegos, M.G. lxxxix, c. 77: η επι το κρειττον υψωσις … η μεταστασις, ου μεν της οικειας φυσεος αλαωθεν). Neste nível de ascensão o homem assume verdadeiramente a forma destes protótipos incriados, com a idéia que Deus tem dele desde a eternidade — com a forma, mas nunca idêntico. Com a Encarnação hipostática do Verbo o caminho de ascensão foi reaberto para a humanidade redimida. É dado para os homens (de novo) "o poder de serem feitos filhos de Deus" (Jo. 1: 12), a possibilidade de se tornarem membros de Cristo, isto é, membros de Seu Corpo Místico. No curso da história da Igreja, a natureza humana é formada, constituída e realizada — e ela vai sendo realizada pela total conformidade com sua predestinação eterna, para se tornar o vaso da graça Divina. E aqui nós temos que, mais uma vez, enfrentar uma antinomia, ou melhor, o aspecto escatológico da mesma antinomia básica da criação. O decreto e projeto inadulteravel de Deus não é simplesmente forçado sobre a existência criada, o decreto em si é, ao mesmo tempo, um poderoso e efetivo fiat, e um chamado e apelo para a liberdade criada. O processo histórico é definitivamente dialético, e a Vontade de Deus é mediada através da vontade do homem. A verdadeira existência e a própria subsistência da criação são certificadas, em primeiro lugar, precisamente por esta liberdade. Por certo, a liberdade é mais do que o livre arbítrio da indiferença ou simplesmente a possibilidade de escolha—porém, a escolha também pertence, de alguma forma, à própria essência da liberdade criada, isto é, a liberdade dos seres criados. Na verdade, há dois caminhos abertos diante da criatura: se aproximar ou se afastar de Deus — o caminho de União (ou Participação) e o caminho de separação (ou estranhamento). Em obediência e desobediência, em aquisição ou espoliação, a mesma liberdade é manifestada e realizada. Seguramente, os dois casos não são exatamente paralelos. Somente na União com Deus é a liberdade da criatura verdadeiramente realizada, e uma completa auto-renuncia é o único caminho de acesso; porém, a própria renuncia deve ser livre, para ser em liberdade e produtiva. De outro lado, o abuso da liberdade que conduz o homem a se afastar de Deus, culmina definitivamente em uma escravidão ao pecado e às paixões, e mata completamente a liberdade. Mas de novo, o abuso em si é uma livre aventura, e um pecador é responsável por sua queda. Finalmente, a Queda é uma falha na liberdade em fazer a escolha correta ou a responder a tempo ao apelo criativo. O homem tem capacidade e poder não só para a escolha, mas para a perseverança na escolha uma vez feita. A dualidade de caminhos não é somente uma possibilidade formal ou lógica, é, em primeiro lugar, uma possibilidade real. Sem dúvida, a ascensão para Deus só é realizável na condição de recíproca condescendência Divina, com a ajuda da Graça. Mas mesmo esta Divina ajuda deixa o homem em sua liberdade, e Deus não produz nada no homem sem consentimento ( e até mesmo cooperação) da vontade humana. "A antiga lei da liberdade humana," como diz Santo Irineu, "exclui todo constrangimento ou violência da graça. De novo, o caminho de separação é, definitivamente, um caminho de perdição e morte. Suficientemente estranho, o homem tem esta capacidade paradoxal para o suicídio ontológico e poder para cometê-lo. A liberdade no homem é sempre ambígua e ambivalente. Porém, é nesta liberdade que é manifestada a realidade definitiva da "natureza" criada. Sem dúvida, a criatura é produzida e pré-ordenada para uma união com Deus, para uma participação nas Divinas Vida e Glória. No entanto, esta participação não é uma necessidade da natureza criada. É uma perfeição sobrenatural. É mais uma norma, sem o cumprimento da qual as criaturas não podem se realizar, já que a realização das criaturas consiste precisamente em se ultrapassarem, porém, o menosprezo desta norma não implica automaticamente na aniquilação da criatura caída. Há um chamado — para a perfeição, um apelo à liberdade. Existe liberdade no muno precisamente porque o mundo é criado e conseqüentemente — contingente. Não há espaço para liberdade no mundo fechado e estático da filosofia grega. Não há liberdade no mundo da emanação. O homem é livre porque ele não é divino por natureza, e seu objetivo de perfeição está acima de sua natureza, e ele tem que crescer muito e se ultrapassar. O homem só pode se realizar sobrepujando seus próprios limites "naturais," ou melhor, ele só pode se tornar verdadeiramente ele mesmo se elevando acima de sua própria natureza, isto é, em comunhão com Deus. Mas, se uma criatura não realiza este fim, se ela se desvia, se ela resiste, se ela contradiz ou negligencia o chamado Divino — e, por esta obstinação e resistência, num certo sentido, ela cessa em viver — porém ela nunca cessa em existir. Pois como diz o Bem-aventurado Agostinho, para a criatura "ser não é a mesma coisa que viver" — non hoe est ei esse quod vivere (Bem-av. Agostinho, de Gen. ad litt. 1: 5). As criaturas têm liberdade para o suicídio ontológico, isto é, para uma definitiva frustração de suas existências, mas não têm o poder de se aniquilarem a si próprias, de se livrarem da existência. Não podem, precisamente porque não existem por si próprias, tendo sido sua existência dada a elas, como se fosse, "de fora," isto é, pelo Outro. Pelo criativo fiat de Deus o mundo está inalteravelmente destinado à existência. O mundo criado não será aniquilado, apesar de que ele será finalmente reformado pelo seu Autor. Se as criaturas falham em se elevar para Deus — se elas se afastam Dele — elas permanecem em seus estreitos limites, mas nunca descem abaixo da misteriosa linha que separa a existência da não-existência. A morte eterna em si não é uma aniquilação, ou um cessar de existir, mas sim um modo depravado de existência, nas trevas exteriores do definitivo estranhamento de Deus. Não há, como se fosse, saída ou da existência, já que o decreto Divino da criação foi dado de uma vez por todas. É perfeitamente verdade, num certo sentido, que o mal é somente a privação ou falta do ser, ele não tem essência ou natureza própria, ele é completamente "sem-essência," ανουσιος, na frase de Sγo João Damasceno (c. Manich. 14, M.G. xciv, 1597). Porém, ele é real como uma força ativa, e é real em seus resultados —destrutivos, mas definitivos. O mal tem um caráter negativo ou privativo, mas ainda é real em seu terrificante vazio. Ele tem o enigmático poder de imitar a criação, e esta perversa imitação é produtiva em suas destruições. O mal devasta e distorce as coisas, mas, em caso de persistência no mal todas estas devastações e perversões persistirão, isto é, estas existências distorcidas entrarão "na eternidade," apesar de eternidade do inferno. O mal é um vazio de nulidades, mas paradoxalmente, um vazio real. Ele engolfa os seres. Ele é mais do que simplesmente a falta de ser, é, como se fosse, uma nulidade positiva — a frase é paradoxal, assim como o fenômeno do mal é paradoxal em si. O mal é um poder quase-produtivo, ele produz novas realidades no mundo—falsas realidades, logicamente, mas não menos reais e existentes. Ele acrescenta novos aspectos ao que foi produzido por Deus — e, é como se ele pudesse "criar" o que não fora criado por Deus, nem desejado por Deus—nomeadamente ele mesmo. Pecado e morte, são quase-adições ao ser, uma novidade no mundo criado. O pecado como colocou novas leis para o mundo, produziu a morte, e sujeitou a si toda a criação. Esta produção falsa será submetida ao Juízo Final do Criador, mas o poder do Divino Amor, como somos positivamente instruídos pelas Escrituras, não suplantará nem a resistência dos "filhos da perdição" nem as destruições produzidas pelo pecado. A perseverança no mal não será superada por um indiscriminado perdão. O estranhamento daqueles que o escolheram continuará no mundo que virá. A escatologia é cheia de mistérios e antinomias, e para nós mistérios, mui freqüentemente, parecem charadas. Mas todas as antinomias escatológicas já se encontram escondidas e implicadas no mistério e antinomia primordial da Criação.

 

Folheto Missionário número P095f

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Redator: Bispo Alexandre Mileant

(creation_florovsky_p.doc, 07-25-2003)