As últimas coisas

E os últimos eventos

 

Arcipreste George Florovsky(1893-1979)

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.

"Eis que faço todas as coisas novas" (Apoc.21:5)

 

Conteúdo:

Escatologia — um tópico impopular.

Porque um "final"?

A Segunda Vinda.

 

Escatologia — um tópico impopular.

Escatologia foi por um longo período um campo negligenciado na teologia moderna. A arrogante frase de Ernst Troeltsch — "O escritório da escatologia está na maior parte do tempo fechado" — foi claramente característica do todo da tradição liberal, desde a Idade do Iluminismo. E nem mesmo essa negligência por assuntos escatológicos foi completamente superada no pensamento contemporâneo. Em certas rodas a escatologia ainda é encarada como uma reliquia obsoleta do passado perdido. O tema em si é evitado, ou é sumariamente rejeitado como irreal e irrelevante. O homem moderno não está preocupado com os eventos finais. Essa atitude de negligência foi recentemente reforçada pelo surgimento do Existencialismo teológico. Hoje em dia, o Existencialismo alega ser, ele mesmo, uma doutrina escatológica. Mas é um abuso completo de termos.A escatologia é radicalmente interiorizada na sua reinterpretação existencialista. Ela é literalmente engolida no imediatismo das decisões pessoais. Num certo sentido, o Existencialismo moderno em teologia não é mais do que uma variação nova do antigo tema Pietista. Em última análise, ela importa na deshistorização da fé Cristã. Eventos da história são eclipsados pelos eventos da vida interior. A Sagrada Escritura é usada como um livro de parábolas e de modelos. História não é mais do que uma moldura passageira. A eternidade pode ser encontrada e experimentada a qualquer momento. Ela não é mais um problema teológico.

De outro lado,precisamente nas últimas décadas, a historicidade básica da fé Cristã tem sido reassessada e reafirmada em várias correntes da teologia contemporânea. Essa foi uma momentânea mudança no pensamento teológico. Na verdade, fio um retorno à fé Escriturística. Por certo, nenhuma "filosofia da história" elaborada pode ser encontrada na Escritura. Mas há nela uma compreensiva visão da história, a perspectiva de um tempo desdobrado, correndo de um "começo" para um "fim," e guiado pela vontade soberana de Deus no sentido da realização de Seu propósito definitivo. A fé Cristã é primeiramente uma testemunha obediente dos poderosos atos de Deus na história, que culminaram "naqueles últimos dias," no Advento de Cristo e em Sua vitória redentora. Conseqüentemente, a teologia Cristã deve ser construída como uma "Teologia da História." A fé Cristã está baseada em eventos, não em idéias. O próprio Credo é uma testemunha histórica, uma testemunha dos eventos salvíficos ou redentores, que são entendidos pela fé como poderosos atos de Deus.

Essa recuperação da dimensão histórica da fé Cristã obrigou ao tema escatológico a se por no foco da meditação teológica. As Escrituras e o Credo, ambos apontam para o futuro. Tem sido sugerido recentemente que a filosofia grega estava inescapavelmente "agarrada pelo passado." A categoria de futuro era bastante irrelevante para a versão grega da história. A história era concebida como uma rotação, com um inevitável retorno para a posição inicial, a partir da qual uma nova repetição de eventos era obrigada a começar de novo. Ao contrário, a visão das Escrituras abre-se para o futuro, no qual novas coisas devem ser descobertas e realizadas. E uma realização definitiva do propósito divino é antecipada no futuro, além do qual nenhum movimento temporal pode acontecer – um estado de consumação.

Na frase inteligente de Balthasar, "Escatologia é o ‘olho da tempestade’ na teologia de nossos tempos" (Hans Urs von Balthasar, "Eschatologie," Fragen der Theologie Heute. Feiner, Trütsch, Böckle, editors (Zürich: Köln, 1958), pgs. 413-421). Na verdade, é um "nó sutil" no qual todas as linhas do pensamento teológico se interceptam e estão inextricavelmente costuradas juntas. A escatologia não pode ser discutida como tópico especial, como um ponto doutrinário separado de crença. Ela só pode ser entendida na perspectiva total da fé Cristã. O que é característico no pensamento teológico contemporâneo é precisamente a recuperação da dimensão escatológica da fé Cristã. Todos os pontos doutrinários de fé têm uma conotação escatológica. Não há consensus comum na teologia contemporânea "das Últimas Coisas." Existe, isto sim, um agudo conflito de visões e opiniões. Mas há também um novo alargamento da perspectiva.

A contribuição de Emil Brunner para a discussão corrente foi tanto provocativa quanto construtiva. Sua teologia é uma teologia de esperança e expectativa, como ela beneficia quem está na tradição da Reforma. Sua teologia é internamente voltada para "os Últimos Eventos." No entanto, em muitos pontos, sua visão é limitada pelas suas pressuposições teológicas gerais. De fato, sua teologia reflete sua experiência pessoal de fé.

 

Porque um “final”?

O mistério das Últimas Coisas é baseado no paradoxo primário da Criação. De acordo com Brunner, o termo Criação, em seu uso Escriturístico, não denota a maneira pela qual o mundo de fato veio à existência, mas somente a soberana Autoridade de Deus. No ato da Criação Deus criou alguma coisa totalmente outra do que Ele mesmo, "ao lado e contra" e Si próprio. Coerentemente, o mundo de criaturas tem seu próprio modo de existência-derivativa, subordinada, dependente, e ainda assim, genuína e real, de seu próprio jeito. Brunner é bastante formal nesse ponto. "Um mundo que não é Deus existe ao lado Dele," assim, a simples existência do mundo implica numa certa medida de "limitação" auto-imposta do lado de Deus, Sua kenosis, que atinge seu clímax na Cruz de Cristo. É como se Deus separasse espaço para a existência de alguma coisa diferente. O mundo tem sido "chamado a existir" para um propósito, para que ele manifeste a glória de Deus. O mundo é princípio e o objetivo definitivo da Criação.

Realmente, o fato da Criação em si constitui o paradoxo básico da fé Cristã, até o qual todos os outros mistérios de Deus podem ser rastreados para trás, ou melhor, no qual eles estão implicados. Brunner, no entanto, não distingue claramente, nesse ponto, entre o próprio "ser" de Deus e Sua "vontade." Porém, o "ser" de Deus simplesmente não pode ser "limitado" em qualquer sentido. Se há uma "limitação," ela só pode se referir à Sua "vontade," porque uma outra "vontade" tem sido "chamada a existir," uma "vontade" que não poderia ter existido de todo. Essa "contingência" básica da Criação testemunha a absoluta soberania de Deus. De outro lado, o clímax definitivo da kenosis criativa só será atingido nos "Últimos Eventos." O píncaro do paradoxo, não está na existência do mundo, mas na possibilidade do Inferno. Na verdade, o mundo pode ser obediente a Deus, assim como pode ser desobediente, e em sua obediência ele serve a Deus e manifesta a Sua glória. Assim, ele não será uma "limitação," mas uma expansão da majestade de Deus. Ao contrário, o Inferno significa resistência e estranhamento, pura e simplesmente. Entretanto, mesmo no estado de revolta e rebelião, o mundo ainda pertence a Deus. Ele nunca poderá escapar de Seu Julgamento.

Deus é eterno. Essa é uma definição negativa. Ela significa simplesmente que a noção de tempo não pode ser aplicada à Sua existência. De fato, "tempo" é simplesmente o modo da existência das criaturas. O tempo é dado por Deus. Não é um modo deficiente ou imperfeito de ser. Não há nada de ilusório acerca do tempo. A temporalidade é real. O tempo realmente se move para frente, irreversivelmente.

Mas ele não é simplesmente um fluxo, assim como não é uma rotação. Não é simplesmente uma série de indiferentes "átomos de tempo" que poderia ser concebida ou postulada como infinita, sem qualquer final ou limite. É sim um processo teológico, interiormente ordenado para um certo objetivo final. Um telos [um final] está implícito no próprio projeto da Criação. De acordo com isso, o que acontece no tempo é significativo — significativo e real mesmo para Deus. A história não é uma sombra. No final, a história tem um objetivo "metahistórico." Brunner não usa esse termo, mas ele enfatiza fortemente a inerente "finitude" da história. Uma história infinita, rolando indefinidamente, sem destino ou final, seria uma história fazia e sem significado. A história está fadada a ter um fim, uma conclusão, uma katharsis, uma solução. Seu projeto precisa ser aberto. A história precisa ter um fim, no qual ela é "realizada" ou "consumada." Ela foi originalmente projetada para ser "realizada." No final não haverá mais história. O tempo será preenchido com eternidade, como foi colocado por Brunner. Por certo, eternidade nessa conexão significa simplesmente Deus. O tempo só tem significado contra o pano-de-fundo da eternidade, isto é — só no contexto do projeto divino.

Entretanto, a história não é simplesmente a abertura desse projeto primordial e soberano. O tema da história real, da única história real que nós conhecemos, é dado pela existência do pecado. Brunner dispensa a questão a respeito da origem do pecado. Ele só enfatiza sua "universalidade." Pecado, no sentido Escriturístico do termo, não é primariamente uma categoria ética. De acordo com Brunner ele somente denota a necessidade de redenção.O pecado não é um fenômeno primário, mas uma quebra, um desvio, um desviar-se do começo. Sua essência é apostasia e rebelião. É esse aspecto do pecado que é enfatizado na história escriturística da Queda. Brunner se recusa a encarar a Queda como um evento real. Ele só insiste que sem o conceito de Queda a mensagem básica do Novo Testamento, isto é — a mensagem da salvação, seria absolutamente incompreensível. No entanto, não se deveria perguntar sobre o "quando" e "como" da Queda.

A essência do pecado só pode ser discernida à luz de Cristo, isto é — à luz da redenção. O homem, como pode ser observado na história, sempre aparece como pecador, incapaz de não pecar. O homem da história é sempre o"homem em revolta." Brunner é completamente ciente da força do mal — no mundo e na história do homem. Ele recomenda a noção de Kant a respeito do mal radical. O que ele tem a dizer a respeito do pecado Satânico, como diferente do pecado do homem, a respeito do supra-pessoal poder Satânico, é impressionante e altamente relevante para o questionamento teológico, tanto quanto tudo que pode inevitavelmente ofender e perturbar a mente do homem moderno. Mas a maior questão ainda permanece sem resposta. Tem a Queda o caráter de evento? A lógica do argumento do próprio Brunner parece nos compelir a ver a Queda como um evento, como um elo na cadeia de eventos. De outra maneira ela seria simplesmente um símbolo, uma hipótese de trabalho, indispensável para propósitos interpretativos, mas irreal. Na verdade, o fim da história deve ser visto, como diz Brunner, como "um evento," não importando quão misterioso esse evento será. O início também tem caráter de "evento," como o primeiro elo na cadeia. Além disso, a redenção é obviamente "um evento" que pode ser exatamente datado, o evento crucial, determinante de todos os outros. Nessa perspectiva parece imperativo se olhar a Queda como, qualquer que seja a maneira que se venha a visualizá-la ou interpretá-la. De qualquer forma, redenção e Queda estão intrinsecamente relacionadas, na própria interpretação de Brunner.

Brunner distingue claramente entre a condição de criatura como tal e pecado. As criaturas vêm de Deus. Pecado vem de uma fonte oposta. A condição de pecado é aberta em eventos, em atos e ações pecaminosas. Na verdade, é um abuso de poder, um abuso de liberdade, uma perversão daquela liberdade responsável que foi concedida ao homem no próprio ato pelo qual ele foi chamado a existir. No entanto, antes que se tornasse um hábito, o pecado teve que ser exercido uma primeira vez. A revolta teve que ser iniciada. Tal assunção estaria em linha com o resto da exposição de Brunner. De outra forma, se cai em algum tipo de dualismo metafísico que o próprio Brunner denuncia vigorosamente. De qualquer forma, as condições de criatura e de pecado não podem ser igualadas ou identificadas.

Realmente, Brunner está certo em sugerir que nós devemos iniciar do centro, isto é, com as boas–novas da redenção em Cristo. Mas em Cristo nós contemplamos não só nosso desesperador "predicado existencial" como miseráveis pecadores, mas, acima de tudo, o envolvimento histórico dos homens no pecado. Nós nos movemos no mundo dos eventos. Só por essa razão, já estamos justificados em olhar para os "Últimos Eventos."

O curso da história tem sido radicalmente desafiado por Deus — e há um ponto crucial. De acordo com Brunner, desde a vinda de Cristo, o próprio tempo foi carregado, para os fiéis, com uma qualidade totalmente nova — "uma qualidade de decisão desconhecida de outra maneira." Desde então, os fiéis são confrontados com uma alternativa definitiva, confrontados agora — nesse "tempo histórico." A escolha é radical — entre o céu e o inferno. Qualquer momento pode se tornar decisivo — para aqueles que têm que tomar decisões, pelo desafio e revelação de Cristo. Nesse sentido, de acordo com Brunner, "o tempo na terra é, por fé, carregado com uma tensão de eternidade." Os homens são agora chamados inescapavelmente para decidir, já que Deus manifestou Sua própria decisão, em Cristo, e em Sua Cruz e Ressurreição. Significa isso que "decisões eternas" — isto é, decisões para a "eternidade" — devem ser tomadas nesse "tempo histórico?" Por fé — em Jesus Cristo, o Mediador — se pode, já agora, "participar" na eternidade. Desde Cristo, fiéis já habitam, como se fosse, em duas dimensões diferentes, uma dentro e outra fora do tempo "comum" — esse tempo universal, ou era, no qual os moribundos darão lugar àqueles que estarão nascendo (Santo Agostinho, Civ.Dei, XV.I). O tempo tem sido, como se fosse, "polarizado" pelo Advento de Cristo. Assim, parece, o tempo está agora relacionado com a eternidade, isto é, com Deus, de uma maneira dual. Por outro lado, o tempo está sempre intrinsecamente relacionado com o Deus eterno, como seu Criador: Deus dá o tempo. Por outro lado, o tempo tem sido, nesses últimos dias, radicalmente desafiado pela intervenção direta e imediata de Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Como o próprio Brunner diz, "a temporalidade, a existência no tempo, assume um caráter novo pela sua relação com esse evento, Jesus Cristo, o eph hapax da história, a, de uma vez por todas, qualidade de Sua Cruz e Ressurreição, e é formada de novo de uma maneira paradoxal que é totalmente ininteligível pelo pensamento guiado somente pela razão" (Brunner, Eternal Hope, [Philadelphia: The Westminster Press, 1954, pg. 48]). Atingimos o ponto crucial na exposição de Brunner. Sua interpretação do destino humano é estritamente Cristológica e Cristocêntrica. Só a fé em Cristo dá significado para a existência humana. Esse é um ponto muito forte em Brunner. Mas há um ambíguo acento docético em sua Cristologia, e ele afeta gravemente o seu entendimento da história. Suficientemente estranho, Brunner faz a mesma carga contra a Cristologia tradicional da Igreja, reclamando que ela nunca prestou suficiente atenção no Cristo histórico. É uma carga sumária que nós não podemos analisar e refutar agora. O que é relevante para nosso propósito agora é que a Cristologia de Brunner é muito mais docética do que a da tradição Católica. A atenção de Brunner para o Jesus histórico é completamente ambígua. De acordo com ele, Cristo é uma personalidade histórica somente como homem. Quando Ele "Se revela" — isto é, quando Ele abre Sua Divindade para aqueles que têm o olho da fé — Ele não é mais, de todo, uma personalidade histórica. De fato, a humanidade de Cristo, segundo Brunner, não é mais do que um "disfarce." O verdadeiro eu de Cristo é divino. Para a fé Cristo descarta Seu disfarce, Seu "incógnito," para usar a frase do próprio Brunner. "Onde Ele Se revela, a história desaparece, o Reino de Deus começou; e ai, Ele não é mais uma personalidade histórica, mas o Filho de Deus, Que é de todo o sempre para todo o sempre" (Brunner, The Mediator, [Londres: Luttherworth Press, 1949, pg. 346]). Essa é uma linguagem, de fato, espantosa.

Na verdade, a humanidade de Cristo é simplesmente um meio de entrar na história, ou melhor — aparecer na história. A relação de Deus com a história, e com a realidade humana, é, como se fosse, não mais do que tangencial, mesmo no crucial mistério da Encarnação. Na verdade, a humanidade de Cristo interessa a Brunner somente como um meio de revelação, de divina auto-abertura. De fato,de acordo com Brunner, em Cristo, Deus encontrou realmente uma firme base fundamental na humanidade. Mas isso não parece nada mais do que Deus agora tem desafiado o homem em seu próprio elemento humano, em seu próprio terreno e nível humano. Para encontrar o homem, Deus teve que descer — para o próprio nível do homem. Isso pode ser entendido de uma maneira estritamente Ortodoxa. Realmente, esse foi o pensamento favorito dos antigos Padres. Mas Brunner nega qualquer real interpenetração dos aspectos divinos e humanos na pessoa de Cristo. De fato, eles não são mais do que "aspectos." Dois elementos se encontram, mas não há uma real unidade. O Cristo da fé é somente divino, mesmo se num disfarce humano. Sua humanidade é simplesmente um meio de entrar na história, ou melhor — aparecer na história. É a história simplesmente uma tela móvel na qual a divina "eternidade"deve ser projetada? Deus teve que assumir uma túnica de homem pobre, pois de outra forma Ele não estaria apto a encontrar o homem. Não houve uma verdadeira "assunção" da realidade humana na experiência pessoal do Encarnado. O papel da humanidade de Cristo foi puramente instrumental, um disfarce.Basicamente é um puro "Docetismo," no entanto muita atenção deve ser dada para o Jesus "histórico." Afinal, o "Jesus histórico" não pertence, nessa interpretação, ao reino da fé.

Decisões reais não são tomadas no plano da história, diz Brunner. "pois essa é a esfera onde os homens usam máscaras. Para o propósito de nossa "mascarada," isto é, para nossa mendicância pecaminosa, Cristo também, se nós podemos colocar assim, tem que usar uma máscara; isso é Seu Incógnito" (ibid, pg. 346). Porém, no ato de fé, o homem tira a sua máscara. Então, em resposta, Cristo também descarta a Sua máscara, Seu disfarce humano, e aparece em Sua glória. Fé, segundo Brunner, quebra a história. A fé em si, é uma espécie de ato metahistórico, que transcende a história, ou mesmo a descarta. Realmente, Brunner enfatiza a qualidade única da redentora revelação de Deus em Cristo. Para o homem ela somente significa que o desafio é radical e definitivo. Agora é dada ao homem a oportunidade ou ocasião única, de tomar sua decisão, de superar sua própria humanidade limitada, e mesmo sua intrínseca temporalidade — por um ato de fé que o leva além da história, ainda que só em esperança e promessa, até que o keros (tempo) final tenha chegado. Mas, a história humana é, finalmente, simplesmente uma mascarada? De acordo com a colocação enfática do próprio Brunner, a temporalidade em si, não é pecaminosa. Porque, então, deveria a divina revelação em Cristo descartar a história? Porque deveria a historicidade ser um obstáculo para a auto-revelação de Deus, um obstáculo que deve ser radicalmente removido?

Em último recurso, a mudança radical na história — o Novo Tempo, liberado pelo Advento de Cristo — parece consistir somente numa nova e não-precedida oportunidade para escolher lados. Na realidade, Deus permanece tão oculto na história como Ele esteve antes, ou, provavelmente, ainda mais que antes, já que nos últimos tempos, a incomensurabilidade da revelação divina com a mascarada humana tem sido feita auto-evidente e conspícua. Deus só poderia Se aproximar do homem em disfarce. O curso real da história não tem sido mudado, nem pela intervenção de Deus, nem pela opção do homem. Separada pela decisão de fé, a história é vazia, e ainda pecaminosa. A textura íntima da real vida histórica não tem sido afetada pela revelação redentora. No entanto, um aviso foi dado: o Senhor vem de novo. essa vez Ele estará vindo como juiz, não como Redimidor, apesar do que o julgamento será realmente realizado e estabilizará a redenção.

Por fé, agora nós podemos discernir uma "tensão escatológica" no próprio curso da história, apesar de ser inútil e em vão ser indulgente com qualquer tipo de calculo apocalíptico. Essa tensão parece existir só no nível humano. O ínterim escatológico é a época de decisões — a serem tomadas pelos homens. A decisão de Deus já foi tomada.

Como um todo, a história Cristã, de acordo com Brunner, foi uma dolorosa falha, uma história de decaimento e equívocos. Esse é um antigo conceito, firmemente estabelecido na historiografia protestante ao menos desde Gottfried Arnold. A comunidade Cristã primitiva, a ecclesia, era uma genuína comunidade Messiânica, a "portadora de uma vida nova de eternidade e dos poderes do mundo divino," como Brunner coloca. Mas essa ecclesia primitiva não sobreviveu, ao menos como uma entidade histórica, como um fator histórico. Brunner reconhece "adventos" parciais e provisórios do Reino de Deus no curso da história. Ma s todos esses "adventos" são esporádicos. Onde há fé, há ecclesia ou Reino. Mas ele está oculto na "mascarada" contínua da história. Definitivamente, o correr da história é um campo de testes, no qual os homens são desafiados e suas respostas são experimentadas e testadas. Mas a "história salvadora" ainda continua? Deus ainda está ativo na história, depois do Primeiro Advento — ou depois da grande intervenção de Cristo, a história foi deixada somente para o homem, com a previsão escatológica de que finalmente Cristo virá de novo?

Agora, história não é mais do que um estágio provisório e passageiro no destino do homem. O homem é chamado para a "eternidade," não para a "história." Eis a razão porque a "história" deve chegar a um final, para seu encerramento. No entanto, realmente, a história é também um estágio de crescimento — o trigo e o joio estão crescendo juntos, e sua discriminação definitiva é postergada — até o dia da colheita. Na verdade, o joio está crescendo rápida e selvagemente. mas o trigo também está crescendo. De outra forma não haveria oportunidade para nenhuma colheita, exceto para a de joio. De fato, a história amadurece não só para julgamento, mas também para consumação. Além do mais, Cristo ainda está ativo na história. Brunner descarta, ou ignora esse componente da história Cristã. A história Cristã, é como se fosse, "atomizada," em sua visão. É simplesmente uma série de atos existenciais, realizados pelos homens, e estranhamente o suficiente, somente atos negativos, atos de rebelião e resistência, que parecem estar integrados e solidarizados. Mas, ao contrário, a ecclesia não é simplesmente um agregado de atos esporádicos, mas sim um "corpo," o corpo de Cristo. Cristo está presente na ecclesia não só como um objeto de fé e reconhecimento, mas como sua Cabeça. Ele está realmente, reinando e governando. Isso assegura a continuidade e identidade da Igreja através dos séculos. Na concepção de Brunner, Cristo parece estar fora da história ou acima dela. Ele veio uma vez, no passado. Ele está vindo de novo, no futuro. Mas está Ele presente agora, no presente, a não ser pela memória do presente e esperança no futuro, e nos atos "metahistóricos" de fé?

A Criação, segundo Brunner, tem seu modo próprio de existência. Mas não é mais do que um "meio" de revelação divina. Ela deve ser, como se fosse, transparente para a luz e glória divina. E isso estranhamente nos lembra da gnose Platonizante de Orígenes e de seus vários seguidores. O todo da história é reduzido à dialética do eterno e temporal. O termo do próprio Brunner é "parabólico."

A Segunda Vinda.

A noção de "o final" — um final definitivo — é uma noção paradoxal. Um "final" pertence à cadeia de séries, mas ao mesmo tempo a quebra. É tanto "um evento," como "o final de todos os eventos." Ele pertence à dimensão da história, mas no entanto desmancha a dimensão toda. A noção de " o início" — primeiro e radical — também é uma noção paradoxal. Como São Basílio disse uma vez, "o começo do tempo ainda não é tempo, mas precisamente o início dele" (Hexaem. 1.6). É tanto um"instante" quanto mais do que isso.

Do futuro nós podemos falar somente em imagens e parábolas. Essa foi a imagem das Escrituras. Este imaginário não pode ser adequadamente decifrada agora e não deveria ser tomado literalmente. Mas em nenhum sentido deveria ser simplesmente e rudemente "desmitolizado." Brunner é formal nesse ponto. A esperada Parousia (o aparecimento) de Cristo deve ser encarada como "um evento." O caráter desse evento é inimaginável. Dificilmente melhores símbolos e imagens que os da Escritura poderão ser encontrados. "Seja qual for a forma desse evento, o ponto principal está no fato de que ele ocorrerá." (Brunner, Eternal Hope, pg.138). O kerygma Cristão é decisivo nesse ponto "a síntese redentora definitiva tem o caráter de um evento." Em outras palavras, a Parousia pertence a cadeia de "acontecimentos" históricos, que é esperada que venha a ser concluída e encerrada. "A fé Cristã sem espera da Parousia é como uma escada que não conduz a lugar nenhum mas termina no vazio. Em um ponto, em todo caso, nós podemos ir além das imagens: é que Cristo está vindo. A Parousia é um "retorno," tanto quanto uma novidade definitiva. "Os Últimos Eventos" estão centrados na pessoa de Cristo.

O fim virá "subitamente." E mesmo assim ele está, num certo sentido, preparado dentro da história. Como Brunner diz, "a história do homem abre radicalmente contornos apocalípticos." Nesse ponto ele favorece especulações metafísicas. "O balançar do pêndulo se torna ainda mais rápido." Essa aceleração do tempo da vida humana pode atingir o ponto em que ele não poderá ir além. A história pode simplesmente explodir subitamente. De outro lado, e num nível mais profundo, desarmonias da existência humana estão crescendo firmemente: há "uma rachadura sempre crescente da consciência humana." Por certo, essas sugestões não tem mais do que um valor subsidiário ou hipotético. Brunner tenta recomendar o conceito paradoxal do fim à mente moderna. Mas as suas sugestões são também características de sua própria visão da natureza humana. A história está sempre pronta para explodir, está sempre molestada e sobrecarregada com tensões não resolvidas. Alguns anos atrás um filósofo religioso russo, Vladimir Th. Ern, sugeriu que a história humana era uma espécie de "progresso catastrófico," uma firme progressão para um final.. Porém o final teria que vir de cima, numa Parousia.Coerentemente, é para ser mais do que uma "catástrofe," ou um "julgamento" imanente ou interno — uma abertura das contradições ou tensões inerentes. É para ser um julgamento absoluto, o Julgamento de Deus.

Agora, o que é julgamento? É não menos um "evento" do que a Parousia. É um encontro definitivo entre a humanidade pecadora e o Santo Deus. Será antes de tudo, uma abertura ou manifestação definitiva do verdadeiro estado de cada homem e da humanidade toda. Nada será deixado escondido. Assim, o julgamento terminará com esse estado de confusão e ambigüidade, de não conclusão, como Brunner coloca, que tem sido característico de todo estágio histórico do destino humano. Isso implica numa definitiva e final "discriminação" — à luz de Cristo. Será um desafio final e definitivo. A vontade de Deus finalmente será feita. A vontade de Deus deve se definitivamente forçada. De outra forma, na frase de Brunner, " toda conversa de responsabilidade não passa de vã loquacidade." Na verdade, ao homem é garantida liberdade, mas não uma liberdade de indiferença. A liberdade do homem é essencialmente uma liberdade responsável — uma liberdade para aceitar a vontade de Deus. "Liberdade pura" só pode ser professada por ateístas. "Ao homem é confiado, do homem é esperado, meramente o eco, a subseqüente complementação, de uma decisão que Deus já havia tomado sobre ele e para ele" (ibid, pg. 178). Há somente uma opção para o homem — obedecer; não há um dilema real. O propósito e objetivo do homem são fixados por Deus.

Tudo isso é perfeitamente verdade. No entanto, precisamente nesse ponto, a questão perturbadora aparece. Poderão de fato todos os homens aceitar, no Juízo Final, a vontade de Deus? Há qualquer espaço para resistência radical e irreversível? Pode a revolta do homem continuar além do julgamento? Pode qualquer ser criado, aquinhoado com liberdade, persistir no estranhamento de Deus, o que foi persistentemente praticado antes, isto é — perseguir sua própria vontade? Pode tal ser ainda "existir" — no estado de revolta e oposição contra a vontade salvadora de Deus, fora do propósito salvífico de Deus? É possível para o homem perseverar em rebelião, apesar do chamado e desafio de Deus? É a imagem da Escritura da separação — entre ovelhas e bodes — a última palavra sobre o destino definitivo do homem? Qual é o status definitivo da "liberdade" da criatura? O que significa que finalmente a vontade de Deus deve e irá prevalecer? essas são questões excêntricas e penetrantes. Mas elas não podem ser evitadas. Elas não são determinadas somente pela curiosidade especulativa. Elas são questões "existenciais." Na verdade, o Juízo Final é um terrível mistério, que não pode e não deve ser racionalizado, e que ultrapassa todo conhecimento e compreensão. É, no entanto, um mistério de nossa própria existência, do qual nós não podemos escapar, mesmo que nós falhemos em compreende-lo ou entende-lo intelectualmente.

Brunner dispensa enfaticamente a "terrível teologumena" da dupla predestinação, como incompatível com a mente da Bíblia. Não há descriminação eterna no projeto criativo de Deus. Deus chama todos os homens para a salvação, e para esse propósito Ele os chama à existência. Salvação é o único propósito de Deus. Mas o crucial paradoxo ainda não foi resolvido. O problema crucial é, se esse único propósito de Deus será de fato realizado, em sua totalidade e compreensividade, como é admitido e postulado na teoria da salvação universal, para a qual se pode alegar evidências Escriturais. Brunner rejeita a doutrina da Apokatastasis, como uma "perigosa heresia." É um erro como doutrina. Ele implica numa segurança errada para o homem — todos os caminhos conduzem finalmente para o mesmo fim, não há tensão real, nem perigo real. Mesmo assim, Brunner admite que a doutrina da graça que perdoa, e da justificação pela fé, conduz logicamente ao conceito de redenção universal. Pode a onipotente vontade de Deus ser resistida realmente ou, como se fosse, ultrapassada pela obstinação das criaturas frágeis? O paradoxo só pode ser resolvido dialeticamente — em fé. Não se pode conhecer Deus teoricamente. Tem-se que confiar no Seu amor.

É característico que Brunner discuta o problema todo exclusivamente na perspectiva da vontade divina. Por essa razão ele perde o principal ponto do paradoxo. Ele simplesmente ignora o aspecto humano do problema. Na verdade, "danação eterna" não é infligida pelo "Deus irado." Deus não é o autor do Inferno. "Danação" é uma penalidade auto-infligida, a conseqüência e implicação da rebelde oposição à Deus e à Sua vontade. Brunner admite que há uma real possibilidade de danação e perdição. É perigoso e errôneo ignorar essa real possibilidade.

Mas deve-se esperar que ela nunca se realize. Porém, a esperança deve ser realista e sóbria. Nós estamos encarando a alternativa: ou, no Julgamento Final, descrentes e pecadores não-arrependidos são finalmente movidos pelo desafio divino, e são "livremente" convertidos — essa foi a hipótese de São Gregório de Nissa; ou sua obstinação é simplesmente derrotada pela divina Onipotência e eles são salvos pelo constrangimento da divina misericórdia e vontade — sem seu próprio e consciente assentimento. A segunda condição implica em contradição, a menos que nós compreendamos "salvação" num sentido forense e formalista. De fato, criminosos podem ser exonerados na corte de justiça, mesmo que eles não se arrependam e perseverem na sua perversão. Eles só escapam da punição. Mas nós não podemos interpretar o Juízo Final dessa maneira. Em qualquer caso, "salvação" envolve conversão, envolve um ato de fé. Ela não pode ser imposta a ninguém. A primeira solução é mais convincente? Certamente, a possibilidade de uma "conversão" tardia — na "décima primeira hora," ou até depois — não pode ser teoricamente desconsiderada, e o impacto do amor divino é infinito. mas essa chance de possibilidade de conversão, diante do Tribunal de Cristo, sentado em glória, não pode ser discutida em abstrato, como um caso geral. No fim, a questão de salvação, como também a decisão de fé, é um problema pessoal, que só pode ser colocado e enfrentado somente no contexto da existência concreta e individual. Pessoas são salvas ou perecem. E cada caso pessoal deve ser estudado individualmente. A maior fragilidade do esquema de Brunner é que ele sempre fala em termos gerais. Ele sempre fala da condição humana e nunca de pessoas vivas.

O problema do homem é, para Brunner, essencialmente o problema da condição pecaminosa. Ele receia todas as categorias ônticas(do grego: seres de várias épocas). Na verdade, o homem é pecador, mas ele é, antes de tudo, homem. É, de novo, verdade, que a verdadeira estatura do genuíno espécime humano foi exibida somente em Cristo, Que era mais do que homem, e não somente homem. Mas em Cristo nos foi dado não somente perdão, mas também o poder de ser, ou se tornar, filhos de Deus, isto é — ser aquilo que havia sido projetado para ser. Lógico, que Brunner admite que fiéis a Cristo podem estar em comunhão com Deus mesmo agora, nessa vida presente. Mas ai chega a morte. A fé,ou — realmente — estar-se em Cristo, faz qualquer diferença nesse ponto? É a comunhão com Cristo, uma vez estabelecida por fé (e, na verdade, em sacramentos), quebrada pela morte? É verdade que a vida humana é "um ser a caminho da morte." A morte física é o limite da vida física. Mas Brunner fala da morte de pessoas humanas, do "Eu." Ele defende que é um mistério, um impenetrável mistério, do qual o homem racional não pode saber absolutamente nada. Mas, de fato, o conceito dessa "morte pessoal" não é mais do que uma assunção metafísica, derivada de certas pressuposições filosóficas, e de modo nenhum um ‘dado’ de uma experiência real ou possível, incluindo a experiência de fé. "Morte" de uma pessoa é somente o estranhamento de Deus, mas mesmo nesse caso não significa aniquilação. Num certo sentido, morte significa desintegração da personalidade humana, porque o homem não é projetado para ser imaterial. A morte corporal reduz a integridade da pessoa humana. O homem morre, e no entanto, sobrevive — na expectativa do fim geral. A antiga doutrina da Comunhão dos Santos aponta para a vitória de Cristo: Nele através de fé (e sacramentos), mesmo os mortos estão vivos, e participam — em antecipação, mas realmente — da vida eterna. Communio Sanctorum é um tópico escatológico importante. Brunner simplesmente ignora isso tudo — seguramente não por acidente mas bastante consistentemente. Ele fala da condição da morte, não de casos pessoais. O conceito de uma alma imortal pode ser uma adição Platonista, mas a noção de uma "pessoa indestrutível" é uma parte integral do Evangelho. Na verdade, somente nesse caso há espaço para um julgamento geral ou universal, no qual todas as pessoas históricas, de todas as eras e de todas as nações, irão aparecer — não como uma massa confusa de pecadores frágeis e inaproveitáveis, mas como uma congregação de pessoas responsáveis, cada uma em seu caráter distintivo, congênito e adquirido. A morte é uma catástrofe. Mas as pessoas sobrevivem, e aqueles em Cristo ainda estão vivos — mesmo no estado de mortos. Os fiéis não só esperam pela vida a vir, mas já estão vivos, apesar de todos estarem esperando pela Ressurreição. brunner, lógico, é plenamente consciente disso. Em sua própria frase, aqueles que crêem "não morrerão na nulidade mas em Cristo." Significa isso que os que não crêem " morrem na nulidade?" E o que é "nulidade" — "as trevas exteriores" (que provavelmente seja o caso) ou real "não ser"?

Também é verdade que a integridade total da existência pessoal, distorcida ou reduzida pela morte, será restaurada na Ressurreição geral. Brunner enfatiza o caráter pessoal da Ressurreição. " A fé do Novo testamento não conhece outro tipo de vida eterna que não seja a de pessoas individuais" (ibid, pg. 48). A carne não ressuscita. Mas algum tipo de corporalidade está implicada na Ressurreição. Todos ressuscitarão, porque Cristo ressuscitou. Porém, a Ressurreição é ao mesmo tempo uma Ressurreição para a vida — em Cristo, e uma Ressurreição — para Julgamento. Brunner discute a Ressurreição geral no contexto de fé, perdão e vida. Mas qual é o status daqueles que não crêem, que não pedem perdão, e nunca conheceram o amor redentor de Cristo, ou provavelmente denunciaram e rejeitaram obstinadamente esse amor como um mito, como uma fraude, como um engano, ou como uma ofensa para a personalidade autônoma?

E isso nos trás de novo para o paradoxo do julgamento. Suficientemente estranho, nesse ponto Brunner fala mais como um filósofo do que como um teólogo, precisamente porque ele tenta evitar questionamentos metafísicos, e todos os problemas que haviam sido suprimidos reaparecem mascarados. brunner coloca a questão dessa forma: como se pode reconciliar a divina Onipotência e a liberdade humana, ou — num nível mais profundo — divina santidade(ou justiça) e divina alegria e amor. É um problema estritamente metafísico, mesmo que seja discutido numa base Escriturística. O problema teológico presente é, de outro lado: qual é o status existencial dos descrentes — na visão de Deus, e na perspectiva do destino humano? O problema real é existencial — o status e destino de pessoas individuais. Para Brunner o problema é obscurecido pela escolha inicial- seu completo ajuntamento de todos os homens como pecadores, sem nenhuma discriminação ôntica ou existencial entre os justos e os injustos. Na verdade, todos estão sob julgamento, mas, obviamente não no mesmo sentido. O próprio Brunner distingue entre aqueles que falham sendo tentados, e aqueles que escolhem tentar e seduzir os outros. Ele conhece perversão deliberada. Mas ele não pergunta, como uma pessoa humana pode ser afetada, em sua estrutura interna e íntima, por perversão deliberada e obstinada, apostasia e "amor pelo mal." Há uma real diferença entre fraqueza e perversidade, entre fragilidade e impiedade. Todos os pecados podem ser perdoados, mesmo os não-confessados e os não-arrependidos? Não é o perdão recebido somente em humildade e em fé? Em outras palavras, é a "condenação" somente uma "penalidade," no sentido forense, ou um tipo de "recompensa" negativa? Ou é simplesmente a manifestação do que estava escondido— ou ainda bastante aberto e conspícuo naqueles que escolheram, por uma abuso de "liberdade," aquele caminho largo que conduz para a Geena.

Não há um só capítulo sobre Inferno em qualquer dos livros de Brunner. Mas Inferno não é simplesmente uma figura ou discurso "mítico." Nem é simplesmente um prospecto tenebroso, o qual —quer-se esperar— poderá nunca se realizar. Horribile dictu — é uma realidade, com a qual muitos seres humanos estão, mesmo agora, comprometidos, por sua própria vontade, ou ao menos — por sua vontade e decisão, o que pode significar, em último caso, cativeiro, o que é usualmente confundido com liberdade. "Inferno" é um estado interno, não um "lugar." É um estado de desintegração pessoal, que é confundido com auto-afirmação — com certa razão, já que essa desintegração é baseada em orgulho. é um estado de auto-confinamento, de isolamento e alienação, de solidão orgulhosa. O estado de pecado, em si, é "infernal," apesar dele poder ser, por uma ilusão de imaginação egoísta, confundido com "Paraíso." Por essa razão os pecadores escolhem o "pecado," a atitude orgulhosa, a posição de Prometeu. Pode-se fazer do "Inferno" um ideal, e persegui-lo —deliberada e persistentemente.

Na verdade, definitivamente, não é mais do que uma ilusão, uma aberração, uma violência e um erro.. Mas o aguilhão do pecado está precisamente na negação da realidade divinamente instituída, na tentativa de estabelecer outra ordem ou regime, que estará em contraste com a verdadeira ordem divina, uma desordem radical, mas para a qual pode-se dar, em exaltação egoísta, definitiva preferência. Porém, o pecado foi destruído e abrogado — não se pode dizer que o "pecado" foi redimido, somente pessoas podem ser redimidas. Mas não é suficiente conhecer, por fé, o fato da redenção divina — tem-se que nascer de novo. A personalidade tem que ser purificada e curada. O perdão deve ser aceito e acessado em liberdade. Ele não pode ser imputado — separado de um ato de fé e gratidão, um ato de amor. Paradoxalmente, ninguém pode ser salvo somente por amor divino, a menos que ele seja respondido por um amor agradecido de pessoas humanas. Na verdade, há sempre uma possibilidade abstrata de "arrependimento" e "conversão" no curso dessa vida terrena ou histórica. Pode-se admitir que essa possibilidade continua após a morte? Brunner dificilmente aceitaria a idéia de um "Purgatório." Mas mesmo no conceito de Purgatório nenhuma chance de conversão radical está implicada. O Purgatório só inclui crentes, aqueles de boas intenções, ligados a Cristo, mas deficientes em crescimento e conquistas. A personalidade humana é feita e formada nessa vida — é, ao menos, orientada nessa vida. A dificuldade da salvação universal não está do lado divino—de fato, Deus quer que todos os homens "sejam salvos," não tanto, provavelmente, para que Sua vontade seja realizada e Sua Santidade assegurada, como para que a existência do homem seja completa e bendita. No entanto, insuperáveis dificuldades podem ser levantadas no lado das criaturas. Finalmente, é essa "resistência definitiva" um paradoxo maior, e uma maior ofensa, do que qualquer resistência ou revolta, que realmente tenha pervertido a ordem inteira da Criação, que tenha prejudicado o ato de redenção? Somente quando nós nos comprometemos com uma visão Docética da história e nela negamos a possibilidade de decisões definitivas nessa vida, sobre o pretexto de que ela é temporal, podemos fingir que não vemos o paradoxo da resistência definitiva.

São Gregório de Nissa antecipou uma espécie de conversão universal das almas no pós-vida, quando a verdade de Deus será revelada com compelidora evidência. Justo nesse ponto a limitação da mente helênica fica óbvia. Para ela, evidência parece ser motivo decisivo para a vontade, como se "pecado" fosse ignorância. A mente helênica teve que passar por uma longa e dura experiência de ascetismo, de exame auto-ascético e auto-controle, para superar a intelectualística ingenuidade e ilusão e descobrir o profundo abismo escuro da alma decaída. Somente em São Máximo o Confessor, depois de alguns séculos de preparação ascética, nós encontramos uma nova e aprofundada interpretação da Apokatastasis. Realmente, a ordem da criação será totalmente restaurada nos últimos dias. Mas as almas mortas ainda serão insensíveis para a própria revelação da Luz. A Luz Divina brilhará sobre todos, mas aqueles que, no passado, escolheram as trevas ainda não quererão e não serão capazes de usufruir da bênção eterna.. Eles ainda estarão inclinados para as trevas noturnas do egoísmo. Eles serão incapazes precisamente de usufruir.Eles ficarão "de fora" — porque a união com Deus que, na essência, é a salvação, pressupõe e requer a determinação da vontade. A vontade humana é irracional e seus motivos não podem ser racionalizados. Até mesmo "evidência" pode falhar em impressiona-la e move-la.

Escatologia é um reino de antinomias. Essas antinomias estão enraizadas e baseadas no mistério da Criação. Como pode qualquer outra coisa existir em paralelo com Deus, se Deus é a plenitude do Ser? Tem-se tentado resolver esse paradoxo, ou melhor escapar dele, alegando os motivos da Criação, às vezes em tal extensão e de tal maneira que se acaba comprometendo o absoluto e a soberania de Deus. Porém, Deus cria em perfeita liberdade, ex mera liberalitate, isto é, sem qualquer "razão suficiente." Criação é um livre dom do insondável amor. Além disso, o homem na Criação teve concedida essa misteriosa e enigmática autoridade de livre decisão, na qual a mais enigmática não é a possibilidade de falha ou resistência, mas a própria possibilidade de aquiescência. Não é a vontade de Deus de tal dimensão que deveria ser obedecida simplesmente sem nenhum real, isto é, livre e responsável consentimento? O mistério com certeza é, na realidade, a liberdade da criatura. Porque deveria ela ser desejada no mundo criado e governado por Deus, por Sua infinita sabedoria e amor? Para ser real, a resposta humana deve ser mais do que uma mera ressonância. Ela deve ser um ato pessoal, um comprometimento interno. Em todo caso, o formato da vida humana — e agora devemos acrescentar, o formato e destino do cosmos — dependem da sinergia ou conflito das duas vontades, divina e da criatura. Estão acontecendo muitas coisas que Deus abomina — no mundo que é Sua obra e Seu sujeito. Suficientemente estranho, Deus respeita a liberdade humana como, uma vez, disse São Irineu, apesar do fato, da maioria das manifestações conspícuas dessa liberdade serem de revolta e desordem. Estamos nós autorizados a esperar que finalmente a desobediência humana será menosprezada e "desrespeitada" por Deus, e que Sua Santa Vontade será forçada, independente de qualquer consentimento? Ou isso faria uma terrível "mascarada" da história humana? Qual é o significado dessa espantosa história de pecado, perversão e rebelião, se finalmente tudo será aplainado e reconciliado pelo exercício da divina Onipotência?

Na verdade, a existência do Inferno, isto é, da oposição radical, implica, como se fosse, em algum "insucesso" parcial do projeto criativo. No entanto, ele foi mais do que um simples projeto, um plano, um modelo. Ele foi um chamado à existência, ou mesmo, "ao ser," de pessoas vivas. As vezes se fala do "risco divino," diz Jean Guitton. Provavelmente é uma palavra melhor do que kenosis. Na verdade, é um mistério, que não pode ser racionalizado — é o mistério primordial da existência humana.

Brunner considera a possibilidade de Inferno bastante seriamente. Na há segurança na "salvação universal," apesar dela ser, falando-se abstratamente, ainda possível — para o Onipotente Deus do Amor. Mas Brunner ainda espera que não haverá Inferno. O problema é que já existe Inferno. Sua existência não depende da decisão divina. Deus nunca manda ninguém para o Inferno. O Inferno é feito pelas próprias criaturas. É uma criação humana, fora, como se fosse, da "ordem da Criação."

O Julgamento Final permanece um mistério.

 

Folheto Missionário número P 095h

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Redator: Bispo Alexandre Mileant

(last_events_florovsky_p.doc, 04-25-2004)

 

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