Revelação

e Interpretação

Arcipreste Georgy Florovsky

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.

 

Pois que? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? (Ro 3:3).

 

Mensagem e Testemunho.

O que é a Bíblia? É um livro igual a qualquer outro destinado para qualquer leitor ocasional. que se espera que venha a pegar de cara o sentido próprio do livro? Não, é um livro sagrado dirigido principalmente para quem acredita. Lógico que, um livro sagrado também pode ser lido por qualquer um, justo "como literatura." Mas isto é completamente irrelevante para nosso propósito imediato. Nós, agora, não estamos preocupados com a letra, mas com a mensagem. Santo Hilário coloca enfaticamente: Scriptura est non in legendo, sed in intelligendo. [A Escritura não está na leitura, mas na compreensão]. Há qualquer mensagem definida na Bíblia, tomada como um todo, como num livro? E, de novo, para quem é essa mensagem, se é que é para alguém, propriamente endereçada? Para indivíduos, que seriam, como tais, intitulados a entender o livro e a expor sua mensagem? Ou para a comunidade, e para indivíduos contanto que eles sejam membros dessa comunidade.

Qualquer tenha sido a origem dos documentos particulares incluídos no livro, é óbvio que o livro, como um todo, foi uma criação da comunidade, tanto na dispensação do passado quanto na Igreja Cristã. A Bíblia não é de modo algum uma coleção completa de todos os escritos históricos, legislativos e devocionais disponíveis, mas uma seleção de alguns, autorizados e autenticados pelo uso (antes de tudo, litúrgico) na comunidade, e finalmente pela autoridade formal da Igreja. E havia algum propósito bem definido pelo qual essa "seleção" foi guiada e conferida. "Jesus pois operou também em presença de Seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos nesse livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,crendo, tenhais vida em Seu nome" (Jo. 20:30-31). O mesmo se aplica, mais ou menos, para a Bíblia toda. Certos escritos foram selecionados, editados e compilados, e postos juntos, e então recomendados para os fiéis, para o povo,como uma versão autorizada da divina mensagem. A mensagem é divina; ela vem de Deus; é a Palavra de Deus. Mas é a comunidade de fiéis que reconhece a Palavra falada e testemunha sua verdade. O caráter sagrado da Bíblia é assegurado pelos fiéis. A Bíblia, como livro, foi composta na comunidade e serviu primariamente para a edificação da mesma. O livro e a Igreja não podem ser separados. o livro e a Aliança pertencem-se um ao outro, e Aliança implica em pessoas. Foi para o Povo da Aliança que a Palavra de Deus foi confiada na velha dispensação (Ro. 3:2), e é a Igreja do Verbo Encarnado que mantém a mensagem do Reino. A Bíblia é, de fato, a Palavra de Deus, mas o livro se apóia no testemunho da Igreja. O cânon da Bíblia é obviamente estabelecido e autorizado pela Igreja.

Tem-se, no entanto, que não exagerar no pano-de-fundo missionário do Novo Testamento. "A Pregação Apostólica," incorporada e registrada nele, teve um duplo propósito: a edificação dos fiéis e a conversão do mundo. Por isso o Novo Testamento não é um livro-comunidade no mesmo sentido exclusivo que foi seguramente o caso do Velho Testamento. É ainda um livro missionário. Porém não está menos defendido dos estranhos. A atitude de Tertuliano para com as Escrituras era típica. Ele não estava preparado para discutir tópicos controversos da fé com heréticos em bases Escriturais. As Escrituras pertenciam à Igreja. Apelos heréticos a ela eram ilegais. Eles não tinham direitos sobre propriedade de outros. Esse foi seu principal argumento em seu famoso tratado De praescriptione haereticorum. Um descrente não tem acesso à mensagem, simplesmente porque ele não a "recebe." Para ele não há "mensagem" na Bíblia.

Não foi por acaso que diversas antologias de escritos compostos em diferentes datas e por vários autores passaram a encarar como um único livro. Ta biblia é logicamente plural mas a Bíblia é enfaticamente singular. As escrituras são, na verdade, uma Santa Escritura, um Santo Escrito. Há um único tema principal e uma mensagem principal em toda a história. Ou, ainda mais, a própria Bíblia é essa história, a história das negociações de Deus com Seu povo escolhido. A Bíblia registra os primeiros de todos os atos e feitos de Deus, Magnalia Dei. O processo foi iniciado por Deus. Há um começo e um final, que é também um objetivo. Há um ponto-de-partida: o fiat original e divino — "No princípio" (Ge. 1:1). E haverá um fim: "Certamente cedo venho" (Apoc. 22:20). Há uma história composta e no entanto uma só — da Gênesis ao Apocalipse. E essa história é história.. Há um processo acontecendo entre esses dois pontos terminais. E esse processo tem uma direção definida. Há um objetivo definitivo, uma consumação definitiva é esperada. Todo momento particular é relacionado aos dois extremos e tem assim seu lugar próprio e único dentro do todo. Nenhum momento pode ser entendido a não ser no seu contexto e perspectiva no todo.

Deus falou "muitas vezes, e de muitas maneiras" (Hb. 1:1). Ele esteve Se revelando através dos séculos, não de uma vez, mas constantemente, de novo e de novo. Ele foi conduzindo o Seu povo de verdade em verdade. Houve estágios em Sua revelação: per incrementa. Essa diversidade e variedade não pode ser ignorada ou exagerada. Porém foi sempre o mesmo Deus, e Sua mensagem definitiva foi sempre a mesma. É a identidade dessa mensagem é que dá aos vários escritos sua real unidade, apesar da variedade de maneiras. Diferentes versões foram postas no livro como elas eram. A Igreja resistiu a todas tentativas de substituir um único Evangelho sintético por quatro Evangelhos diversos, de transformar o Tetraevangelion em um Dia-tessaron, apesar das dificuldades implicadas nas "contradições dos Evangelistas" (com as quais Santo Agostinho esteve lutando). Esses quatro Evangelhos asseguram a unidade da mensagem bastante bem, e talvez numa forma mais concreta do que qualquer outra compilação poderia fazer.

A Bíblia é um livro sobre Deus. Mas o Deus da Bíblia não é o Deus absconditus, mas sim o Deus revelatus. Deus está Se manifestando e Se revelando. Deus intervem na vida humana. E a Bíblia não é meramente um registro humano dessas intervenções e feitos divinos. É uma espécie de intervenção divina em si. Ela carrega em si uma mensagem divina. Os feitos de Deus constituem em si mesmos, uma mensagem. Não há portanto necessidade de se escapar do tempo ou da história para se encontrar Deus. Pois Deus tem encontrado o homem na história, isto é, no elemento humano, no meio da existência diária do homem. A história pertence a Deus, e Deus entra na história humana. A Bíblia é intrinsecamente histórica: ela é um registro dos atos divinos, e nem tanto uma apresentação dos mistérios eternos de Deus, e esses mistérios mesmo só são disponíveis por uma mediação histórica. "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer" (Jo. 1:18). E Ele O declarou entrando na história, em Sua Santa Encarnação. Assim, o quadro histórico da revelação não é alguma coisa que se deva descartar. Não há necessidade de se abstrair verdade revelada do quadro no qual a revelação teve lugar. Ao contrário, tal abstração iria abolir também a verdade. Pois a Verdade não é uma idéia, mas uma pessoa, o próprio Senhor Encarnado.

Na Bíblia nós ficamos chocados com a intimidade da relação de Deus com o homem e do homem com Deus. É uma intimidade da Aliança, uma intimidade de eleição e adoção. E essa intimidade culmina com a Encarnação. "Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Ga. 4:4). Na Bíblia nós vemos não só Deus, mas o homem também. É a revelação de Deus, mas o que é de fato revelado é a preocupação de Deus com o homem. Deus Se revela para o homem, "aparece" diante dele, "fala" e "conversa" com ele como se para revelara ao homem o significado oculto de sua existência e o propósito definitivo de sua vida. Na Escritura nós vemos Deus vindo Se revelar para o homem, e nós vemos o homem encontrando Deus, e não só ouvindo a voz de Deus, mas respondendo a Ele também — em palavras de oração, agradecimento e adoração, temor e amor, angustia e contrição, exultação, esperança e desespero. Existem, como se fosse, dois parceiros na Aliança, Deus e o homem, ambos juntos, no mistério do verdadeiro encontro divino-humano, que é descrito e registrado na história da Aliança. A resposta humana é integrada no mistério da Palavra de Deus. Não é um monólogo divino, é mais um diálogo, onde ambos estão falando, Deus e o homem. Mas orações e invocações da veneração salmista são no entanto "a Palavra de Deus." Deus quer, e espera, e demanda essa resposta do homem. É por essa razão que Ele Se revela para o homem e fala com ele. Ele estabelece Sua Aliança com os filhos dos homens. Porém, toda essa intimidade não compromete a divina soberania e transcendência. Deus "habita na luz inacessível" (1 Tm. 6:16). Essa luz, contudo, "alumia a todo homem que vem ao mundo" (Jo. 1:9).

A revelação é a história da Aliança. Revelação registrada, isto é, Sagrada Escritura, portanto, acima de tudo, história. Lei e profetas, salmos e profecias, todos estão incluídos, e como se fosse, costurados na malha da história viva. A revelação não é somente um sistema de oráculos divinos. É primariamente o sistema de feitos divinos; pode-se dizer, revelação foi o caminho de Deus na história. E o clímax foi atingido quando Deus entrou na história Ele mesmo, e para sempre: quando o Verbo de Deus encarnou e "fez-Se homem." De outro lado, o livro da revelação é também o livro do destino humano. Antes de tudo, é um livro que narra a criação, queda e salvação do homem, É a história da salvação, e dai o homem organicamente pertencer à história. Ele mostra o homem em obediência e em sua obstinada rebelião, em sua queda e em sua restauração. E todo fado humano é condensado e exemplificado no destino de Israel, velho e novo, o povo escolhido de Deus, um povo da própria possessão de Deus. O fato da eleição é aqui de importância básica. Um povo foi eleito, separado de todas as outras nações, constituindo um oásis sagrado no meio da desordem humana. Somente com um povo na terra Deus estabeleceu Sua Aliança e concedeu Sua própria lei sagrada. Somente aqui um verdadeiro sacerdócio foi criado, apesar de ser provisório. Só nessa nação profetas verdadeiros foram levantados, que falaram palavras inspiradas pelo Espírito de Deus. Era um centro, ainda que escondido, para o mundo todo, um oásis concedido pela misericórdia de Deus, no meio de um mundo decaído, pecaminoso, perdido e não redimido. Tudo isso é, não a letra, mas o verdadeiro cerne da mensagem Bíblica. E tudo isso veio de Deus, não houve mérito ou conquista humana. E tudo isso aconteceu para o homem, "para nós homens e para nossa salvação." Todos esses privilégios concedidos a Israel do passado estavam subordinados ao propósito definitivo, o da salvação universal: "a salvação vem dos judeus" (Jo 4:22). O propósito redimidor é sempre universal, na verdade, mas é sempre realizado por meio de separação, seleção ou colocação à parte. No meio da queda e ruína humana um oásis é erigido por Deus. A Igreja é também um oásis, também colocado à parte, apesar de não tirado do mundo. E de novo, esse oásis não é somente um refugio ou abrigo, mas mais uma cidadela, uma vanguarda de Deus.

Há um centro na história Bíblica, ou um ponto crucial na linha dos pontos temporais. Há um novo começo dentro do processo, que no entanto, não o divide ou corta em pedaços, mas sim dá a ele uma definitiva coesão e unidade. A distinção entre os dois Testamentos pertence ela mesma à unidade da revelação Bíblica. Os dois Testamentos tem que ser cuidadosamente distinguidos, e nunca confundidos. No entanto eles são organicamente unidos, não só como dois sistemas, mas primariamente na pessoa de Cristo. Jesus, o Cristo pertence a ambos. Ele é o cumpridor da antiga dispensação e pelo mesmo ato que Ele cumpre a antiga, "a Lei e os Profetas," Ele inaugura a nova, e por isso torna-Se o cumpridor definitivo de ambas, isto é, do todo. Ele é o verdadeiro centro da Bíblia, justo porque Ele é o arche e o telos — o princípio e o fim. E inesperadamente essa misteriosa identidade da partida, o centro e o objetivo, ao invés de destruir a realidade existencial do tempo, dá ao processo-do-tempo sua realidade genuína e total significado. Não há meros acontecimentos que ocorram, mas sim eventos e conquistas, novas coisas que estão vindo a acontecer, que nunca existiram antes. "Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc. 21:5).

Definitivamente, o Velho Testamento como um todo tem que ser considerado como um "Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (Mt. 1: 1). Era o período de promessas e expectativas, o tempo de alianças e profecias. Não eram só os profetas que profetizavam. Eventos também eram profecias. A história toda foi profética e "típica," um sinal profético insinuando a aproximação da consumação. Agora, o tempo da expectativa já foi. A promessa foi cumprida. O Senhor veio. E Ele veio para habitar entre Seu povo para sempre. A história da carne e do sangue está fechada. A história do Espírito está aberta: "A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo. 1: 17). Mas foi uma realização, não a destruição do passado. Vetus Testamentum in novo patet. [O Velho testamento extende-se no Novo]. E patet significa precisamente: é revelado, aberto, completado. Por isso, os livros dos hebreus ainda são sagrados, mesmo para o novo Israel de Cristo — não são para serem abandonados ou ignorados. Eles ainda nos contam a história da salvação, Magnalia Dei. Eles ainda dão testemunho de Cristo. Eles devem ser lidos na Igreja como um livro de história sagrada, não para serem transformados numa coleção de textos-prova ou de instâncias teológicas (loci theologici), e nem em um livro de parábolas. As profecias foram realizadas e a lei foi superada pela graça. Mas nada está superado. Em história sagrada, "o passado" não significa simplesmente "passado" ou "o que foi," mas principalmente aquilo que foi realizado ou cumprido. "Cumprimento" é a categoria básica de revelação. Aquilo que se tornou sagrado permanece sagrado e santo para sempre. Ele tem o selo do Espírito Santo. E o Espírito ainda sopra nas palavras uma vez inspiradas por Ele. Talvez seja verdade que na Igreja e para nós, agora, o Velho Testamento não é mais do que um livro, simplesmente porque a Lei e os Profetas foram substituídos pelo Evangelho. O Novo Testamento é obviamente mais do que um livro. Nós pertencemos ao Novo Testamento. Nós somos o Povo da Nova Aliança. Por essa razão é que precisamente no Velho Testamento nós apreendemos revelações primárias como o Verbo: nós testemunhamos que o Espírito "falou pelos profetas." Pois no Novo Testamento Deus falou por Seu Filho, e nos fomos chamados não só a ouvir mas também a olhar. "O que vimos e ouvimos isso vos anunciamos" (1 Jo. 1:3). E além do mais, nós somos chamados a estar "em Cristo."

A totalidade da revelação é Cristo Jesus. E o Novo testamento é história não menos que o Velho: a história Evangélica do Verbo Encarnado e o princípio da história da Igreja, e também a profecia apocalíptica. O Evangelho é história. Eventos históricos são a fonte e a base de toda fé e esperança Cristã. A base do Novo Testamento são fatos, eventos, feitos — não só ensinamentos, comandos ou palavras. Desde o verdadeiro início, desde o próprio dia de Pentecostes, quando São Pedro como testemunha visual (At. 2:32 : "...do que todos nós somos testemunhas." mártires) testemunhando para o cumprimento da salvação no Senhor Ressuscitado, a pregação apostólica teve enfaticamente um caráter histórico. A Igreja se planta nesse testemunho histórico. O Credo tem uma estrutura histórica também, ele se refere a eventos. De novo, é história sagrada. O mistério de Cristo está precisamente no fato de que "Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade" (Col. 2:9). Esse mistério não pode ser compreendido somente dentro do plano terrestre, há também outra dimensão. Mas os limites históricos não são obliterados nem ofuscados: na imagem sagrada traços históricos são vistos cuidadosamente. A pregação apostólica foi sempre uma narrativa, uma narrativa do que realmente havia acontecido, hic et nunc. Mas o que havia acontecido era definitivo e novo: "E o Verbo Se fez carne.." (Jo. 1:14). Lógico que a Encarnação, a Ressurreição e a Ascensão são fatos históricos não no mesmo sentido ou no mesmo nível que os acontecimentos da nossa vida diária. Mas nem por isso eles são menos fatos históricos. Ao contrário, eles são mais históricos — eles são definitivamente memoráveis. Eles obviamente não podem ser verificados completamente a não ser pela fé. Porém isso não os tira do contexto histórico. A fé simplesmente descobre uma nova dimensão, apreende os dados históricos em sua total profundidade, em sua completa e definitiva realidade. Os Evangelistas e os Apóstolos não eram cronistas. Não era missão deles manter o registro total de tudo que Jesus tinha feito, dia a dia, ano a ano. Eles descrevem Sua vida e relatam Seus trabalhos, só para nos dar a Sua imagem: uma imagem histórica, no entanto divina. Não é um retrato, mas muito mais um ikon--mas seguramente um ícone histórico, uma imagem do Senhor Encarnado. A fé não cria um valor novo; ela só descobre o valor inerente. A fé em si é um tipo de visão, "...e a prova das coisas que se não vêem" (Hb. 1:1 : São João Crisóstomo explica elenchos precisamente como opsis.) O "invisível e não menos real que o "visível" — ainda mais real. "...e ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo" (1Co. 12:3). Isso significa que o próprio Evangelho só pode ser apreendido em sua totalidade e profundidade em experiência espiritual. Mas o que é descoberto pela fé é dado na total verdade. Os Evangelhos foram escritos dentro da Igreja. Nesse sentido eles são testemunhas da Igreja. Eles são registros da experiência e fé da Igreja. Mas eles não são menos narrativas históricas e dão testemunho do que realmente teve lugar, no espaço e no tempo. Se "pela fé" nós descobrimos muito mais do que pode ser detectado "pelos sentidos," isso só demonstra a completa inadequação dos "sentidos" no conhecimento de assuntos espirituais. Pois o que de fato aconteceu foi o poderoso feito do Deus Redimidor, Sua intervenção definitiva no curso dos eventos históricos. Não se deveria separar o "fato" e o "significado" — ambos são dados na realidade.

A revelação é preservada na Igreja. Por isso a Igreja é a apropriada e primária interprete da revelação. Ela é protegida e reforçada por palavras escritas, mas não exaustivas. Palavras humanas não são mais do que sinais. O testemunho do Espírito revive as palavras escritas. Nós não significamos agora as iluminações ocasionais de indivíduos pelo Espírito Santo, mas primariamente a assistência permanente do Espírito dada na Igreja, que é "...a coluna e firmeza da verdade" (1 Tm. 3:15). As Escrituras necessitam de interpretação. Não o fraseado, mas sim a mensagem é o coração. E a Igreja é a testemunha divinamente apontada e permanente para a verdade em si e o total significado dessa mensagem, simplesmente porque a Igreja pertence ela própria à revelação, como o Corpo do Senhor Encarnado. A proclamação do Evangelho, a pregação do Verbo de Deus, obviamente pertence ao esse da Igreja. A Igreja permanece por seu testemunho. Mas esse testemunho não é uma simples referência ao passado, não meramente uma reminiscência, mas sim uma contínua redescoberta da mensagem liberada uma vez para os Santos e desde lá sempre mantida pela fé. Além disso, essa mensagem é sempre reordenada na vida da Igreja. O próprio Cristo está sempre presente na Igreja, como o Redentor e Cabeça de Seu Corpo, e continua a fazer seu redimidor serviço na Igreja. A salvação não é só anunciada ou proclamada na Igreja mas precisamente efetuada. A história sagrada ainda continua. Os atos poderosos de Deus ainda estão sendo realizados. Magnalia Dei não são circunscritos pelo passado; eles estão sempre presentes e em continuação, na Igreja e, através da Igreja, no mundo. A Igreja é em si uma parte integral da mensagem do Novo Testamento. A Igreja é em si parte da revelação — a história do "Todo Cristo" (Totus Christus: Caput et Corpus, na frase do Abençoado Agostinho) e do Espírito Santo. O fim definitivo da revelação, seu telos, ainda não aconteceu. E somente dentro da experiência da Igreja o Novo Testamento é verdadeira e completamente vivo. A história da Igreja é em si uma história de redenção. A verdade do livro é revelada e justificada pelo crescimento do Corpo.

 

História e Sistema.

Nós devemos admitir imediatamente que a Bíblia é um livro difícil, um livro selado com sete selos. E, passando o tempo, ele não se torna mais fácil. A principal razão para isso, no entanto, não é que o Livro está escrito numa "língua desconhecida" ou contém algumas "palavras secretas que o homem não deve repetir." Ao contrário, a verdadeira pedra-de-tropeço da Bíblia é sua completa simplicidade: os mistérios de Deus são encaixados no cotidiano do homem médio, e a história toda ser vista como toda muito humana, já que o próprio Senhor Encarnado apareceu sendo um homem comum.

As Escrituras são "inspiradas," elas são a Palavra de Deus. O que é a inspiração nunca poderá ser apropriadamente definida — há um mistério ai. É o mistério do encontro divino-humano. Nós não podemos, entender completamente de que maneira os "homens santos de Deus" ouviram a Palavra do seu Senhor e como eles puderam articulá-la em palavras dos seus próprios dialetos. Porém, mesmo em sua transmissão humana ela era a voz de Deus. Ai está o milagre e o mistério da Bíblia, que é ser a Palavra de Deus no idioma dos homens. E, de qualquer maneira que nós venhamos entender a inspiração, um fator não deve ser visto por cima. As Escrituras transmitem e preservam a palavra de Deus precisamente no idioma dos homens. de fato Deus falou para os homens, mas havia homens para ouvir e perceber. "Antropomorfismo" é então inerente ao próprio fato. Não há acomodação à fragilidade do homem. O ponto é mais que a língua humana não perca suas características naturais para se tornar um veículo de revelação divina. se nós queremos que a palavra divina soe clara, nossa língua — não pode deixar de ser humana. O que é humano não é varrido pela inspiração divina, é só transfigurado. O "sobrenatural" não destrói o que é "natural": Hyper physin não significa para physin. O idioma humano não trai ou diminui o esplendor da revelação, não limita o poder da Palavra de Deus. A Palavra de Deus pode ser adequada e corretamente expressa em palavras humanas. A Palavra de Deus não fica ofuscada quando soa na língua do homem. Pois o homem é criado à imagem e semelhança de Deus — essa ligação "analógica" torna a comunicação possível. E como Deus Se digna a falar com o homem, a palavra humana adquire nova profundidade e força e torna-se transfigurada. O Espírito divino sopra no organismo do discurso humano. Assim torna-se possível para o homem proferir palavras de Deus, falar de Deus. "Teologia" torna-se possível—theologia, isto é, logos peri theou . Falando-se estritamente, a teologia torna-se possível só através de revelação; é a resposta humana para Deus, Que falou primeiro; é o testemunho do homem para Deus Que falou com ele, Cuja voz ele ouviu, Cujas palavras ele guardou e agora está registrando e repetindo. Seguramente essa resposta nunca é completa. A teologia está sempre em processo deformação. A base e o ponto inicial são sempre os mesmos: a Palavra de Deus, a revelação. A teologia confirma a revelação. Ela confirma de diversas maneiras: em credos, em dogmas, em ritos e símbolos sagrados. Mas num certo sentido a Escritura em si é a resposta primária, ou melhor, a Escritura em si é ao mesmo tempo a Palavra de Deus e a resposta humana — a Palavra de Deus mediada através da fiel resposta humana. Há sempre alguma interpretação humana em qualquer apresentação Escritural da Palavra divina. Assim é sempre inescapavelmente "condicionada pela situação." Seria possível para o homem, escapar de sua situação humana?

A Igreja sumarizou a mensagem Escritural em credos e muitos outros meios e métodos. A fé Cristã desenvolveu-se ou cresceu num sistema de crenças e convicções. Em qualquer desses sistemas a estrutura interna da mensagem básica é mostrada, todos os artigos particulares de fé são mostrados em sua interdependência mútua. Obviamente, nós precisamos de um sistema, como nós precisamos de um mapa em uma viagem. Mas mapas se referem a uma terra real. E qualquer sistema doutrinal também deve estar relacionado com a revelação. É de grande importância que a Igreja nunca tenha pensado no seu sistema dogmático como algo que pudesse substituir as Escrituras. Ambos devem ser mostrados lado a lado: uma apresentação algo abstrata ou generalizada da mensagem principal num credo ou sistema, e todos os documentos particulares se referindo a instâncias concretas da revelação. Deve-se considerar um sistema e a própria história.

Aqui surge um problema: como, e em que extensão, pode a história ser ordenada num sistema? Esse é o problema principal da hermenêutica teológica. Qual é o uso teológico da Bíblia? Como poderiam as diversas e concretas testemunhas, cobrindo centenas de anos, serem usadas para a construção de um único esquema? A Bíblia é uma na verdade, e no entanto é, de fato, uma coleção de vários escritos. Nós não somos autorizados a ignorar isso. A solução depende no fim de nosso concepção de história, de nossa visão do tempo. A solução mais fácil teria sido na verdade se nós pudéssemos simplesmente olhar por cima ou superar a diversidade de tempos, a duração do próprio processo. O Cristianismo enfrentou essa tentação desde muito cedo. Isso estava na raiz de todas interpretações alegóricas, desde Philo e Pseudo-Barnabé ate o reviver do alegorismo nos tempos pós-Reforma. Foi uma tentação permanente de todos os místicos. A Bíblia é olhada como um livro de parábolas sagradas, escrita numa linguagem simbólica peculiar,e a tarefa da exegese é detectar seus significados ocultos, detectar a Palavra eterna, que aconteceu ter sido proferida de diversas maneiras e sob diversos véus. A verdade e perspectiva históricas são, nesse caso, irrelevantes. A realidade histórica não é mais do que um quadro pictórico, um imaginário poético. Procura-se significados eternos. A Bíblia inteira deveria então ser reconstruída em um livro de exemplos edificantes, de símbolos gloriosos, que apontariam a verdade supra temporal. não é a verdade de Deus sempre a mesma, idêntica e eterna? Nesse quadro, é mais do que natural se olhar para o Velho Testamento procurando evidências de todas crenças e convicções Cristãs diferentes. Dois Testamentos estão, como que, fundidos em um só, super temporal, e suas marcas características são apagadas. Os perigos e defeitos de tal aproximação hermenêutica são demasiados óbvios para necessitarem de uma refutação extensa. Mas o único remédio real contra essa tentação seria a restauração da visão histórica. A Bíblia é história, não um sistema de crenças, e não deveria ser utilizada como uma summa Theologiae. Ao mesmo tempo, não é a história da crença humana, mas a história da revelação divina. O problema básico permanece, entretanto, ainda sem solução: para que propósito nós necessitamos do sistema e da história? Por que razão e para que propósito a Igreja os mantém sempre juntos? De novo, a resposta mais fácil para essa questão é a menos satisfatória: pode-se sugerir que as Escrituras são o único registro autêntico da revelação, e todo o resto não é mais do que um comentário sobre elas. E comentário nunca pode ter a mesma autoridade que o registro original. Há alguma verdade nessa sugestão, mas a dificuldade real nós temos que encarar em algum outro ponto. Porque os estágios iniciais da revelação não são substituídos pelos últimos? Por que nós precisamos ainda da lei e dos profetas mesmo na nova aliança de Cristo, e, num certo sentido, no mesmo nível de autoridade que o dos Evangelhos e o resto dos escritos do Novo Testamento? Isto é, como se fossem capítulos do mesmo livro único. Pois obviamente eles estão incluídos no cânon das Escrituras, não só como documentos históricos, não só como capítulos sobre os estágios da história já passada. Isso se aplica particularmente para o Velho Testamento. "Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João" (Mt. 11:13). Porque nós ainda mantemos a lei e os profetas, e em que sentido? Qual pode ser o uso correto do Velho Testamento na Igreja de Cristo?

Antes de tudo, precisa ser um uso histórico. Porém, de novo essa história é história sagrada — não uma história de convicções humanas e sua evolução, mas a história dos atos poderosos de Deus. E esses atos não são irrupções desconectas de Deus na vida humana. Houve uma íntima unidade e coesão. Eles conduziram o povo escolhido para o supremo propósito de Deus, para Cristo. Portanto, num certo sentido, os iniciais como se fossem refletidos, ou implicados nos últimos. Existiu uma continuidade da ação divina, como se existisse uma identidade de objetivo e propósito também. Essa continuidade é a base do que foi chamado de interpretação "tipológica." A terminologia patrística era bastante fluente nesse ponto. Ainda, houve sempre uma clara distinção entre dois métodos e aproximações. "Alegórico" foi de fato um método exegético. Um alegorista trata primariamente com os textos; ele procurava o sentido oculto e definitivo das passagens Escriturais, sentenças e até mesmo palavras particulares, além e por baixo do "escrito." Ao contrário, a "tipologia" não era uma exegese dos próprios textos, mas sim uma interpretação dos eventos. Era um método histórico e não meramente filológico. Era a correspondência intrínseca dos próprios eventos nos dois Testamentos que tinha que ser detectada, estabelecida e apresentada. Um tipologista não olhava para os "paralelos" ou similaridades. E nem todo evento do Velho Testamento tem seu "correspondente no Novo. No entanto há certos eventos básicos na disposição antiga que foram "figuras" ou "tipos" dos eventos básicos na nova. A "correspondência" deles foi um desígnio divino: eles foram como que estágios de um processo único da Providência redentora. Desse modo "tipologia" foi praticada já por São Paulo (ainda que sob o nome de uma "alegoria": Ga. 4: 24: Hatina estin allegoroumena). Há um propósito idêntico de Deus por trás de todas Suas poderosas intervenções, e no total ele foi revelado em Cristo. O bem-aventurado Agostinho coloca claramente: in ipso facto, nom solum in dicto, mysterium requirere debemus [devemos procurar o mistério não só na palavra, mas no próprio fato] (na pg. 68, sermo, 2, 6). E "o mistério" do Velho Testamento era Cristo; não só no sentido em que Moisés e os profetas falaram Dele, mas principalmente porque o fluxo todo da história sagrada foi divinamente orientada para Ele. E nesse sentido Ele foi a realização de todas as profecias. Por essa razão, é só na luz de Cristo que o Velho Testamento pode ser adequadamente entendido e seus mistérios desvelados — eles foram, de fato, desvelados pela vinda Daquele "Que deveria vir." O real significado profético das profecias é claramente visto somente em retrospecto, depois que elas, de fato, tenham sido realizadas. Uma profecia não realizada é sempre obscura e enigmática(assim são as profecias do Apocalipse, que indicam o que ainda está por vir, "no final"). Mas isso não significa que nós simples e arbitrariamente colocamos um significado novo no texto velho: o significado estava lá, apesar de ainda não poder ser visto claramente então. Quando, por exemplo, na Igreja nós identificamos o Servo Sofredor (no livro de Isaias) com o Cristo crucificado, nós não "aplicamos" simplesmente uma visão do Velho Testamento para um evento do Novo Testamento: nós detectamos o significado da própria visão, apesar desse significado não poder ser claramente identificado nos tempos que precederam Cristo. Mas o que foi primeiro simplesmente uma visão (isto é, uma antecipação) tornou-se um fato histórico.

Um outro ponto é extremamente importante. Para um "alegorista" as "imagens" que ele interpreta são reflexos de um protótipo pré-existente, ou mesmo imagens de alguma "verdade" eterna ou abstrata. Elas estão apontando para algo que está fora do tempo. Ao contrário, tipologia é orientada para o futuro. Os "tipos" são antecipações, pré-figurações; seu "protótipo" ainda está por vir. Tipologia é assim, um método histórico, mais do que filológico. Ele pressupõe e implica intrinsecamente em realidade da história, dirigida e guiada por Deus. É organicamente ligada com a idéia da aliança. Aqui, o presente, o passado e o futuro são ligados numa unidade de propósito divino, e o propósito era Cristo. Portanto a tipologia tem enfaticamente um significado Cristológico (a Igreja é incluída ai, como o Corpo e a Noiva de Cristo). Na prática, lógico, um verdadeiro equilíbrio nunca foi estritamente mantido. mesmo na patrística o uso da tipologia foi variadamente contaminado por desvios e acréscimos alegóricos, especialmente no uso devocional ou homilético. O que, no entanto, é importante é que na tradição catequética da Igreja Primitiva, ligada de perto com a administração dos sacramentos, esse balanço foi sempre mantido. Essa era a tradição da Igreja, e desvios eram devidos mais à curiosidade ou imaginação de eruditos individuais. A Igreja era, em total sobriedade, de mentalidade histórica. Junto com a apresentação da doutrina (isto é, um sistema) a Santa Escritura era sempre lida nas igrejas, com o deliberado propósito de lembrar os fiéis da base e passado histórico de sua fé e esperança.

O bem-aventurado Agostinho sugeriu que os profetas falaram da Igreja ainda mais claramente do que do próprio Cristo, isto é, do Messias (em pg. 30.2, enarratio,2, M.L., 36, 244). Num certo sentido, isso era muito natural. Pois já havia uma Igreja. Israel, o povo escolhido, o povo da aliança, era muito mais uma Igreja do que uma nação, como outras "nações." Ta ethne, nationes ou gentes esses termos aparentados eram usados na Bíblia (e depois) justamente para descrever os bárbaros ou pagãos em contraste com a única nação ou povo que era também (e principalmente) uma Igreja de Deus. A Lei foi dada à Israel justamente por sua capacidade como Igreja. Ela englobava a vida toda do povo, a "temporal" assim como a "espiritual," precisamente porque o todo da existência humana tinha que ser regulado por preceitos divinos. E a divisão da vida em departamentos "temporal" e "espiritual" é, estritamente falando, precária. De qualquer modo, Israel era uma comunidade divinamente constituída de fiéis, unidos pela Lei de Deus, a verdadeira fé, ritos sagrados e hierarquia—nós encontramos ai todos os elementos da definição tradicional de Igreja. A disposição antiga foi, realizada na nova, a aliança foi reconstituída, e o antigo Israel foi rejeitado, por conta de sua completa descrença: ele perdeu o dia da visita. A única continuação verdadeira da antiga aliança estava na Igreja de Cristo (lembremos que ambos os termos são de origem hebréia: a Igreja é qahal e Cristo significa Messiah). Ela é o verdadeiro Israel, kata pneuma. Nesse sentido já São Justino rejeitou enfaticamente a idéia de que o Velho Testamento era uma ligação que mantinha juntas a Igreja e a Sinagoga. Para ele o oposto era verdadeiro. Todas as demandas judias eram para ser formalmente rejeitadas: o Velho Testamento não pertencia mais aos judeus, porque eles não haviam acreditado em Cristo Jesus. O Velho Testamento pertencia agora somente à Igreja. Ninguém podia mais reivindicar Moisés e os profetas, se não estivesse com Jesus o Cristo. Pois a Igreja era o Novo Israel e a única herdeira das promessas do Velho Israel. Um novo e importante princípio hermenêutico estava implicado nessas proclamações rigorosas dos primeiros Cristãos apologistas. O Velho Testamento tinha que ser lido e interpretado como livro da Igreja. Nós deveríamos acrescentar, na Igreja.

A Lei foi substituída pela verdade, e nela encontrou sua realização, e assim foi abrogada. Ela não tinha que ser imposta mais sobre os novos convertidos. O Novo Israel tinha sua própria constituição. Essa parte do Velho Testamento estava antiquada. Ela provou ser basicamente "condicionada pela situação" – não tanto no sentido de uma relatividade histórica geral mas num sentido providencial mais profundo. A nova situação redentora tinha sido criada ou inaugurada pelo Senhor: uma situação nova na sagrada perspectiva da salvação. Tudo que pertencia essencialmente ao estágio ou fase prévia tinha agora perdido seu significado, ou melhor mantido seu significado somente como uma prefiguração. Até mesmo o Decálogo talvez não estivesse isento dessa regra e foi superado pelo "novo comando." O Velho Testamento é agora usado somente em sua relação com a Igreja. Sobre a antiga disposição a Igreja era limitada a uma nação. Na nova disposição todas as discriminações nacionais haviam sido enfaticamente abrogadas: não havia mais distinção entre um judeu e um grego — todos estavam indiscriminadamente no mesmo Cristo. Em outras palavras, não se tinha o direito de isolar certos elementos da disposição antiga, fora de sua imediata relação com a vida da Igreja, e colocá-los como um padrão Escritural para a vida temporal das nações. O antigo Israel era uma Igreja provisória, mas não era uma nação padrão. Pode-se colocar dessa forma. Obviamente, pode-se apreender muito na Bíblia sobre justiça social—isso era parte da mensagem do Reino a vir. Nós podemos apreender muito sobre a particular organização política, social e econômica dos judeus através dos séculos. Tudo isso pode ser possivelmente de grande ajuda em nossas discussões sociológicas. E no entanto é dificilmente permissível detectar na Bíblia (a saber no Velho Testamento) qualquer padrão permanente ou ideal de arranjo político ou econômico para o reino presente ou para qualquer outro reino de todo. Nós podemos apreender bastante com a história hebraica. Porém, isso será somente uma lição histórica, não teológica. Fundamentalismo bíblico não é melhor em sociologia do que em qualquer outra área. A Bíblia não é autoridade em ciência social, como não é autoridade em astronomia. A única lição sociológica que pode ser extraída da Bíblia é precisamente o fato da Igreja, o Corpo de Cristo. Mas nenhuma referência da Bíblia em assuntos "temporais" pode ser olhada como "evidência Escritural." Existem "evidências Escriturais" somente em teologia. Isso não significa que nenhuma orientação pode ser encontrada ou mesmo procurada na Bíblia. Em todo caso, tal procura não será um "uso teológico" da Bíblia. E talvez as lições da antiga história hebraica são do mesmo nível que qualquer outra lição do passado. Nós temos que distinguir mais cuidadosamente entre o que é permanente e o que não é mais do que provisório (ou "condicionado à situação") na antiga aliança (e antes de tudo nós devemos superar suas limitações nacionais). De outra forma nós teríamos o perigo de não ver claramente o que era novo na nova aliança. No próprio Novo Testamento nós devemos fazer uma clara distinção entre seus aspectos históricos e proféticos também. O verdadeiro tema da Bíblia toda é Cristo e Sua Igreja, não nações ou sociedades, nem o céu e a terra. O antigo Israel foi o "tipo" do novo, isto é da Igreja Universal, não de qualquer nação particular ou ocasional. A estrutura nacional da Igreja provisória acabou pela universalidade da salvação. Há, depois de Cristo, somente uma "nação," a nação Cristã, genus Christianum — na frase antiga, tertium genus, isto é, precisamente a Igreja, o único povo de Deus, e nenhuma descrição nacional pode reivindicar qualquer garantia ulterior Escritural: diferenças nacionais pertencem à ordem da natureza e são irrelevantes na ordem da graça.

A Bíblia é completa. Mas a história sagrada ainda não foi completada. O próprio cânon bíblico inclui um Livro profético: o Livro do Apocalipse (ou Revelação). Há o Reino que virá, a consumação definitiva, e dai há profecias também no Novo Testamento. O ser todo da Igreja é num certo sentido profético. No entanto, o futuro tem um significado diferente post Christum natum. A tensão entre presente e futuro tem, na Igreja de Cristo, outro sentido e caráter do que teve na antiga disposição. Pois Cristo não está mais no futuro somente, mas também no passado, e por isso no presente também. Essa perspectiva escatológica é de importância básica para o correto entendimento das Escrituras. Todos os "princípios" e "regras" hermenêuticas deveriam ser repensados e reexaminados nessa perspectiva escatológica. Há dois maiores perigos a serem evitados. De um lado, nenhuma analogia estrita pode ser estabelecida entre os dois Testamentos, sendo suas "situações de aliança" profundamente diferentes: elas são relacionadas como "a imagem" e a "verdade" . Foi uma idéia tradicional da exegese patrística que o Verbo de Deus esteve Se revelando continuamente, e de diversas maneiras, através do Velho Testamento todo. Porém todas essas teofanias do passado nunca deveriam ser postas no mesmo nível ou dimensão que a encarnação do Verbo, senão o evento crucial da redenção seria dissolvido numa sombra alegórica. Um "tipo" não é mais do que uma "sombra" ou imagem. No Novo Testamento nós temos o próprio fato. O Novo Testamento é, por conseqüência, mais do que uma mera "figura" do Reino a vir. é essencialmente o reino da realização. De outro lado, é prematuro se falar de uma "escatologia realizada", simplesmente porque o próprio eschaton ainda não se realizou: a história sagrada ainda não foi encerrada. Pode-se preferir a frase: "a escatologia inaugurada." Ela interpreta acuradamente o diagnóstico bíblico — o ponto crucial da revelação já está no passado. "O definitivo" (ou o "novo") já entrou na história, apesar de seu último estágio ainda não ter sido atingido. Nós não estamos mais no mundo de sinais somente, mas já no mundo da realidade, porém sob o sinal da Cruz. O Reino já foi inaugurado, mas ainda não completado. O cânon fixo da própria Escritura simboliza uma realização. A Bíblia é fechada justamente porque o Verbo de Deus encarnou. Nosso termo de referência definitivo agora é não um livro, mas uma Pessoa viva. Porém a Bíblia ainda mantém sua autoridade-- não só como um registro do passado, mas também como um livro profético, cheio de sugestões, apontando para o futuro, para o próprio final.

A história sagrada da redenção ainda está indo. è agora a história da Igreja que é o Corpo de Cristo. O Espírito Confortador já está habitando na Igreja. Nenhum sistema completo de fé Cristã é ainda possível, porque a Igreja ainda está em sua peregrinação. E a Bíblia é mantida pela Igreja como um livro de história para lembrar os fiéis da natureza dinâmica da revelação divina, "em diversos tempos e de variadas maneiras."

 

Folheto Missionário número P95

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Redator: Bispo Alexandre Mileant

(revelation_interpretation_florovsky_p.doc, 06-28-2004)