A Escuridão

da Noite

"O Maligno está entre Nós."

Arcipreste George Florovsky

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.

 

 

Conteúdo:

A Existência do Mal como um Paradoxo.

A Existência do Mal como um Mistério.

 

 

 

A Existência do Mal como um Paradoxo.

Em um mundo criado por Deus, cujas leis e propósitos foram estabelecidos pela Divina sabedoria e bondade, como é possível que o mal exista? Pois o mal é exatamente o que se opõe a Deus e resiste a Ele, pervertendo Seus desígnios e repudiando Suas ordens. O mal é, além disso, aquilo que não é criado por Deus. E já que a Divina vontade estabelece as razões para tudo que existe (e essa vontade Soberana sozinha estabelece "razões suficientes"), pode-se afirmar que o mal, como mal, existe apesar da falta de razões, existe sem uma única razão para sua existência. Como São Gregório de Nissa afirmou, é "uma erva não semeada, sem semente e sem raiz." Pode-se dizer; phaenomenon omnino non fundatum. É Deus sozinho que estabelece as fundações do mundo.

Certamente há sempre e em todos os lugares causas e razões para o mal. Mas a casualidade do mal é profundamente peculiar. As causas e razões do mal são sempre um absurdo, mais ou menos velado. Essa estranha casualidade não está incluída na "cadeia" ideal das casualidades universais de Deus; ela divide e desfigura essa cadeia. É uma casualidade que rivaliza com a do Criador, vindo, como se fosse, de um destruidor do mundo. E esse poder destrutivo — de onde ele vem? Pois todos os poderes reais pertencem só a Deus. Fica-se perguntando se a existência do mal é compatível com a existência de Deus. Apesar disso, esse poder ilegítimo não é um fantasma anêmico. É uma força real, uma energia violenta. A oposição do mal a Deus é muito ativa. O Bem fica seriamente restringido e oprimido pela revolta do mal. O próprio Deus está engajado em uma luta com esses poderes das trevas. E nessa luta há perdas muito reais, uma perpétua diminuição do Bem. O mal é um perigo ontológico. A harmonia universal, desejada e estabelecida por Deus, é verdadeiramente decomposta. O mundo está decaído. O mundo inteiro é envolvido por um sombrio crepúsculo de nulidade. Não é mais o mundo concebido e criado por Deus. Existem mórbidas inovações, novas existências — existências que são falsas, porém reais. O mal acrescenta alguma coisa àquilo que é criado por Deus, ele tem uma "milagrosa" força de imitar a criação — na verdade, o mal é produtivo em sua destruição. No mundo decaído há um excesso incompreensível, um excesso que entrou em existência contra a vontade de Deus. Num certo sentido, o mundo é roubado de seu Mestre e Criador.

É mais do que um paradoxo intelectual; é mais um escândalo, uma tentação terrível para a fé, porque, acima de tudo, essa destruição da existência pelo mal é, em larga escala, irreparável. A imponente esperança "universalista" nos é proibida pelo testemunho direto das Sagradas Escrituras e pelo ensinamento explícito da Igreja. Haverá trevas exteriores para "os filhos da perdição" no mundo que virá! No caso de perseverança no mal, todas devastações e perversões produzidas por ele serão, elas próprias, preservadas para sempre na paradoxal eternidade do inferno. O inferno é uma testemunha sinistra do confuso poder do mal. Na contagem final dessa luta histórica entre a Divina Bondade e o mal, todas as devastações produzidas entre seres não-arrependidos, só serão consideradas pelo decreto simples e final de condenação. A perversa divisão, introduzida no mundo de Deus por um ato de poder usurpado, parece ser eterna. A unidade do mundo está comprometida para sempre. O mal parece ter conquistas eternas. A obstinação do mal, é impenitência resolvida, nunca é coberta pela onipotência da compaixão de Deus. Nós estamos agora no reino do mistério completo.

 

A Existência do Mal como um Mistério.

Deus tem Sua resposta para o mundo do mal. "A antiga lei da liberdade humana," como Santo Irineu coloca, ainda é respeitada por Deus, que concedeu desde o início essa dignidade para os seres criados. Qualquer coação ou compulsão pela Divina Graça está excluída de possibilidade. Deus de fato respondeu autorizadamente para o mal, de uma vez por todas, através de Seu Amado Filho, Que veio aqui para a terra para levar os pecados do mundo e os pecados de toda a humanidade. A resposta absoluta de Deus para o mal foi a Cruz de Jesus, os sofrimentos do Servo de Deus, a morte do Filho Encarnado. Um pregador russo do século XIX colocou então, "O mal começou na terra, mas ele inquietou o Céu, e fez com que o Filho de Deus descesse para a terra." O mal faz o próprio Deus sofrer e Ele aceita esse sofrimento até o fim. E a glória da vida eterna brilha vitoriosa de dentro da tumba do Deus Encarnado. A Paixão de Jesus foi um triunfo, uma vitória decisiva. Mas é um triunfo do Amor Divino que chama e aceita sem nenhuma coação. Desse tempo para diante, a existência do mal nos é dada somente dentro desse quadro do Amor Co-Sofredor de Deus. E o Amor e mesmo a sublime majestade de Deus, também nos são reveladas no enigmático quadro de mal e pecado... Felix culpa quae tantum et talem meruit habere Redemptorem.

Define-se o mal como nulidade. Certamente o mal nunca existe por si mesmo mas só dentro do Bem. O mal é negação pura, uma privação ou uma mutilação. Indubitavelmente o mal é uma falta, um defeito, defectus. Mas a estrutura do mal é bastante antinômica. O mal é um vazio de nulidade; mas é um vazio que existe, engolindo e devorando seres. O mal é impotente; ele nunca cria — mas sua energia destrutiva é enorme. O mal nunca sobe; ele sempre desce — mas a verdadeira humilhação do ser que ele produz é assustadora. No entanto, há uma grandeza ilusória mesmo nessa falta de base do mal. Ocasionalmente existe alguma coisa de gênio no pecado e no mal. O mal é caótico; ele é uma separação, uma decomposição constantemente em progresso, uma desorganização da estrutura inteira do ser. Mas o mal é também, sem dúvida, vigorosamente organizado. Tudo nesse triste domínio de decepção e ilusão é anfibológico e ambíguo. Indubitavelmente, o mal só vive através do bem que ele deforma, mas que ele também adapta às suas necessidades. Mas esse "Universo" deformado é uma realidade que se mantém.

Na verdade, o problema do mal não é de todo, um problema puramente filosófico, e é por isso que ele não pode ser resolvido no plano neutro de uma teoria do ser. Não é mais um problema puramente ético, e no plano da moralidade natural não se consegue suplantar essa correlatividade do bem e do mal. O problema do mal só assume seu caráter próprio no plano religioso. O significado do mal é uma oposição radical a Deus,uma revolta, uma desobediência, uma resistência. A única fonte do mal, no sentido estrito do termo, é o pecado, a oposição a Deus e a trágica separação Dele. A especulação sobre a liberdade de escolha é sempre estéril e ambígua. Liberdade de escolha, a libertas minor de Santo Agostinho e a "vontade gnômica" de São Máximo Confessor, é uma liberdade desfigurada, uma liberdade diminuída e empobrecida, uma liberdade como a que existe depois da queda, entre seres decaídos. A dualidade de propósitos, as duas direções correlativas, não pertencem à essência da liberdade primordial dos seres inocentes. Ela deve ser restaurada para os pecadores penitentes através de ascetismo e Graça. O pecado original não foi simplesmente uma escolha errada, uma opção pela direção errada, mas sim uma recusa de ascender para Deus, uma deserção do serviço de Deus.

Realmente, escolha como tal não era possível para o primeiro pecador porque o mal não existia como uma possibilidade ideal.Se, mesmo assim, era uma escolha, não era uma escolha entre o bem e o mal mas somente uma escolha entre Deus e ele próprio,entre serviço e preguiça. e é precisamente nesse sentido que Santo Atanásio interpretou a queda e o pecado original em seu trabalho, Contra Gentes. A vocação do homem primordial, inata em sua própria natureza, era amar a Deus com devoção filial e serví-Lo no mundo para o qual o homem foi designado para ser profeta, sacerdote e rei. Era um apelo do amor paternal de Deus para o amor filial do homem. Sem dúvida, seguir Deus envolve uma entrega total aos braços Divinos. Isso não era ainda um sacrifício. O homem inocente não tinha nada para sacrificar, porque tudo que possuía tinha vindo da Graça de Deus.(aqui, há algo mais profundo que um apego voluptuoso ao mundo). Foi mais do que uma tragédia de um amor mal dirigido. De acordo com Santo Atanásio, a queda humana consiste precisamente no fato de que o homem limita-se a si mesmo, esse homem entra, como se fosse, em amor consigo mesmo. Com essa concentração em si, o homem se separou de Deus, quebrando o contato espiritual e livre que tinha com Deus. Foi uma espécie de delírio, uma obsessão auto-erótica um narcisismo espiritual. E através disso, se isolou de Deus e logo se tornou ciente de seu envolvimento com o fluxo cósmico externo. Pode-se dizer que foi uma desispiritualização da existência humana. Todo o resto — a morte e a decomposição da estrutura humana — veio como conseqüência. Em todo caso, a queda foi realizada primeiro no reino do espírito, assim como já tinha acontecido no mundo angélico. O significado do pecado original é o mesmo em todo lugar — auto-erotismo, orgulho e vaidade. Todo o resto é somente uma projeção dessa catástrofe espiritual nas diferentes áreas da estrutura humana. O mal vem de cima, não de baixo; dos espíritos criados e não da matéria. É mais profundo do que uma falsa escolha de direção, mais profundo até do que uma escolha entre um bem superior e um bem inferior. Foi mais a infidelidade do amor, a insana separação do Único Que é digno de afeição e amor. Essa infidelidade é a principal fonte do caráter negativo do mal. Foi uma negação primordial e foi fatal.

É necessário que se tenha precaução e não se identifique a enfermidade da natureza decaída com a imperfeição inerente a toda natureza criada. Não há nada de mórbido ou sinistro na "imperfeição natural" da natureza criada exceto o que foi introduzido "do alto" depois da queda consumada. Na natureza pré-queda, se pode talvez falar de faltas e falhas. Mas no mundo decaído há alguma coisa mais.—perversão, revolta, blasfêmia vertiginosa, violência. É o domínio da usurpação. A maré escura desse amor pervertido envolve todas as criaturas e o cosmos inteiro. Por detrás de todas as negações do mal se pode sempre discernir alguma coisa quase –positiva, uma licenciosidade inicial, a arbitrariedade egoísta de personalidades finitas. O mundo decaído é descentralizado, ou melhor, é orientado ao redor de um centro imaginário ou fictício. Pode-se dizer talvez que o círculo (com um único centro) é deformado, tornando-se uma elipse com dois pontos de referência — Deus e anti-Deus. O ser, em todo caso, é dinamicamente dividido em dois. Existem agora duas tendências que se interseccionam e se cruzam, ambas permanecendo essencialmente diferentes. Pode-se dizer que há dois mundos dentro de um: há as Duas Cidades de Santo Agostinho. O mal, começando com um ateísmo prático, se pos no lugar de Deus, resultando num ateísmo teórico e conseqüentemente, numa resolvida deificação de si próprio. Nesse mundo dualizado a verdadeira liberdade não existe. A liberdade de escolha é só um pálido e remoto reflexo da liberdade real.

O mal é criado por agentes pessoais. O mal, no estrito senso da palavra, existe só nas pessoas ou em suas criações e seus atos. O mal físico e cósmico também se origina nesses atos pessoais. E é por isso que o mal pode ter poder, e ele pode ser ativo. Pois o mal é uma atividade pessoal perversa. Mas essa atividade inevitavelmente se espalha pelo impessoal. O mal despersonaliza a própria personalidade. A completa despersonalização, no entanto, nunca será obtida; há um limite potencial que nunca pode ser atingido. Mas a tendência e aspiração do mal para esse limite de desintegração total está energeticamente acentuada por toda parte. Mesmo demônios nunca cessam de ser individuos. É a forma intrínseca da existência deles que não pode ser perdida. Mas, desde que personalidade é a "imagem de Deus" nos seres espirituais, o caráter pessoal só pode ser preservado numa conversação constante com Deus. Separada de Deus, a personalidade se esvaece; ela é ferida com esterilidade espiritual. A personalidade isolada, que se fecha dentro de si mesma, freqüentemente se perde. No estado de pecado há sempre tensão entre duas solicitações internas; o "Eu," e alguma coisa impessoal, representada pelos instintos, ou melhor, pelas paixões.

Paixões são o lugar, o assento do mal na pessoa humana. As "paixões," de acordo com os Padres e mestres gregos de espiritualidade são ativas; elas seduzem. A pessoa possuída por paixões é passiva; ela sofre constrangimento. As paixões são sempre impessoais; elas são uma concentração de energias cósmicas que fazem da pessoa humana prisioneira e escrava delas. Elas são cegas e cegam aqueles a quem elas possuem. O homem apaixonado, "o homem de paixões,"não age por si, mas é agido por elas: fata trahunt. Ele com freqüência perde, até mesmo, sua consciência de ser um agente livre. Ele duvida da existência e da própria possibilidade da liberdade em geral. Ele adota mais o conceito "necessarionísta" de realidade[a expressão de Charles Renouvier]. E, como uma conseqüência, ele perde sua personalidade, sua identidade pessoal. ele se torna caótico, com múltiplas faces, ou melhor — máscaras. O "homem das paixões" é de todo não-livre, apesar dele poder dar uma impressão de atividade e energia. Ele é nada mais do que uma "bola" de influências impessoais. Ele é hipnotizado por essas influências que têm um poder real sobre ele. Arbitrariedade não é liberdade. Ou, talvez, é uma liberdade imaginária, que na verdade engendra servidão. Na vida espiritual nós começamos precisamente com uma luta contra as paixões. "Impassibilidade" é a principal meta da ascensão espiritual.

Em geral, a "impassibilidade" dos gregos é pobremente entendida e interpretada. Ela não é uma indiferença, nem uma fria insensibilidade de coração. Ao contrário, é um estado ativo, um estado de atividade espiritual, que é adquirido só depois de lutas e provas severas. É mais uma independência das paixões. O "Eu" próprio da pessoa é finalmente recuperado, libertado de uma escravidão fatal. Mas só se pode recuperar o "Eu" em Deus. A verdadeira "impassibilidade" é adquirida só num encontro com o Deus Vivo. O caminho que conduz a isso é um caminho de obediência, até de servidão a Deus, mas essa servidão engendra a verdadeira liberdade, uma liberdade concreta, a real liberdade dos filhos adotados de Deus. No mal, a personalidade é absorvida no meio impessoal, ainda que o pecador tenha a pretensão de ser livre. Em Deus, a personalidade é restaurada e reintegrada no Espírito Santo, apesar da severa disciplina imposta ao individuo.

O mal é revelado para nós no mundo, primeiro sob o aspecto de sofrimento e aflição. O mundo é vazio, frio e indiferente (conf. "a natureza indiferente" em Pushkin). Ele é um baldio que não responde. Nós todos sofremos por causa do mal, o mal, semeado em qualquer lugar do mundo, nos causa sofrimento. E a contemplação desse sofrimento universal nos trás algumas vezes para a beira do desespero. O sofrimento universal, não foi descoberto pela primeira vez por Schopenhauer. Ele já tinha sido atestado por São Paulo (Ro.8:20-22), que nos dá uma explicação muito clara; o mal é introduzido na criatura pelo pecado. Toda criação sofre. Há um sofrimento cósmico. O mundo inteiro é envenenado pelo mal e pelas energias malévolas, e o mundo inteiro sofre por conta disso.

O intrincado problema de Theodosio foi primeiramente inspirado por esses fatos de sofrimento. Era uma das questões primárias de Dostoevsky. O mundo é duro, cruel e impiedoso. E o mundo é terrível e assustador:terror antiquus. Há caos no mundo; há tempestades subterrâneas, uma desordem elementar. O homem se sente fraco e perdido nesse mundo inóspito. Mas o mal nos encontra não só externamente, no meio exterior, mas também internamente, em nossa própria existência. Nós também estamos doentes —nós mesmos—e nós sofremos por causa disso. E de novo há uma inesperada descoberta — não só nós sofremos pelo mal, mas nós fazemos o mal. E às vezes alguém se delicia com o mal e infelicidade. É-se às vezes arrebatado pelas Fleurs du mal. Sonha-se às vezes com um "ideal de Sodoma." O abismo — ele tem um apelo sinistro. Às vezes se ama escolhas ambíguas. Pode-se ficar encantado por elas. É mais fácil fazer o mal do que fazer o bem. Todo mundo pode descobrir em si essa "escuridão" subterrânea, o subconsciente cheio de sementes malignas, cheio de crueldade e engôdo. Alás — as análises de Dostoevsky (e de muitos outros) não são sonhos mórbidos de um pessimismo que olha a vida através de uns óculos negros. É uma revelação verdadeira da triste realidade da nossa situação existencial. Pode-se encontrar as mesmas revelações nos antigos professores da espiritualidade Cristã. Há um delírio, uma febre espiritual, uma libido no cerne "desse mundo," no cerne de nossa existência. Não se pode perguntar a uma pessoa insana ou maníaca por razões. Ela não tem razões para sua loucura. ela perdeu a sua razão; ela é insana.

Orígenes esteve muito próximo da solução correta, quando ele atribuiu a origem do mal, no mundo dos espíritos ou a enfado e preguiça [desidia et laboris taedium in servando bono], ou à saciedade da contemplação e amor Divinos [De princ.II, 9-2; e 8-3].Agora, em qualquer caso, a nosso respeito, nós encontramos em nossos corações e inteligência muitas lembranças desse mesmo paroxismo de delírio, os mesmos absurdos, Libido não é a mesma coisa que concupiscência carnal.É um termo mais amplo. É sinônimo de auto-erotismo, originado pelo pecado. O mal no homem é uma ignorância e uma insensibilidade; é a cegueira da razão e a dureza de coração. O homem se sela, se fecha em si mesmo, se isola e se separa. Mas o mal é multiforme e caótico.

Há formas contrastantes de mal: a forma agressiva — der Wille zur Macht, sadismo; e a forma solipsística — indiferença, "o coração frio." O mal é dividido dentro de si: é uma discórdia e uma desarmonia, inordinatio.O mal é ambíguo, indeciso, variável. Ele não tem seu próprio caráter estável. O assento do mal no homem é nas profundezas do seu coração, e não só no plano empírico.A própria natureza é afetada; a própria natureza não é mais pura. E é muito dinâmica, uma perversão dinâmica ou funcional que ainda não está consolidada numa transformação metafísica. A existência do mal é uma existência parasitária; o mal vive por causa do Bem, ex ratione boni. Os elementos são os mesmos no mundo original e no mundo decaído.

Mas o princípio de organização está mudado. E apesar de dinâmica, a perversão é inconversível. Aquele que desceu voluntariamente para o abismo do mal não pode subir de lá por conta própria. Suas energias estão exauridas. Sem dúvida, mesmo nas profundezas demoníacas, a criatura permanece a obra de Deus e os contornos do projeto Divino não são apagados. A imagem de Deus, obscurecida pela infidelidade do pecado, é, no entanto, preservada intacta, e eis porque há sempre, mesmo no abismo, um receptáculo ontológico para o apelo de Deus, para a Graça de Deus. Isso é verdade mesmo para aqueles que se fecham obstinadamente para o apelo da Cruz, que se fizeram sempre incapazes de receber os vivificantes dons do Amor Divino, os dons do Paráclito. A identidade metafísica não é destruída mesmo entre os demônios. Os demônios ainda são, de acordo com a frase de São Gregório de Nissa, anjos por natureza, e a dignidade angelical não é completamente abolida neles.

Mas. talvez nós pudéssemos dizer que essa imagem de Deus, no homem, está, num certo sentido, paralisada, e tornada inefetiva após a separação do Único que sempre deveria ser refletido nessa imagem, nesse espelho vivo e pessoal. Não é suficiente começar de novo a ascender para Deus — é necessário se ter a viva cooperação do próprio Deus, que restaura a circulação de vida espiritual num homem morto, escravizado e paralisado pelo pecado e pelo mal. O paradoxo do mal reside precisamente nessa divisão da existência humana e da estrutura cósmica inteira; ela reside na divisão dinâmica da vida em duas, uma divisão que resulta da separação de Deus. É como se existissem duas almas dentro de cada pessoa. Bem e mal estão estranhamente misturados. Mas não é possível uma síntese. O Bem "natural" é muito fraco para resistir ao mal. E o mal só existe através do Bem. A unidade humana está seriamente comprometida, senão perdida. A Graça de Deus, só ela pode superar esse impasse humano.

A análise formal do mal não é suficiente. A existência do mal é uma realidade no plano religioso. E somente através de esforço espiritual esse paradoxo pode ser entendido e resolvido, superando o escândalo, e penetrando no mistério do Bem e do Mal.

 

 

 

Folheto Missionário número P095b

Copyright © 2004 Holy Trinity Orthodox Mission

466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011

Redator: Bispo Alexandre Mileant

(darkness_florovsky_p.doc, 07-25-2003)

 

 

Edited by

Date