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Thank you! Bishop Alexander

Igreja Ortodoxa

Bernardo Sartorius

II

(pp.123-219).

Conteudo

  • Capitulo quarto: A investida de Deus.
  •  

    Capítulo terceiro

    A vocação do homem

    Para a fé ortodoxa, "Deus" é a realidade que confere a sua "homogeneidade" a toda a realidade, estando tanto por "detrás" de todas as coisas e de todas as criaturas, sendo por isso Aquele em quem tempo e espaço deixam de ser causa de separações, como na origem e no termo de seu devir. Não é pois possível falar do homem sem, ao mesmo tempo, falar de Deus; não há antropologia sem teologia. O homem define-se, no seu ser mais íntimo, como uma criatura de Deus feita à imagem de Deus e chamado a parecer-se com Ele e, assim, a definição do humano que nós vamos tentar esboçar neste capítulo partirá necessariamente do divino e a ele voltará de novo no fim de contas. É a própria descrição do destino e da existência humana, tal como a concebe a espiritualidade ortodoxa, que postulará a existência de Deus na história - a Encarnação de Cristo em cada homem - o Espírito Santo - e diante de cada um e de todos em conjunto - o mistério de Deus Trino.

     

    A imagem de Deus

    São bem os termos "imagem de Deus" e "semelhança com Deus" que servem aos teólogos ortodoxos para descreverem a verdadeira natureza do homem e a sua vocação, o seu destino. O homem é dito "à imagem de Deus," porque ele tem sede de uma realidade que o ultrapasse infinitamente. "Criado à imagem de Deus e à sua semelhança, o homem possui uma orientação essencial que o determina... como toda a cópia atraída pelo seu original, o homem-imagem aspira a ultrapassar-se para se lançar em Deus e encontrar nele o apaziguamento da sua nostalgia" (Paul Evdokimov: Les Ages de la Vie Spirituelle, Paris, 1964, p. 145). Para os padres gregos, sobre os quais assenta a teologia ortodoxa contemporânea, esta nostalgia é já ela mesma uma participação, uma comunhão com o Inefável. "Deus fez homens à sua própria imagem, escreve Atanásio de Alexandria (295-373), tornando-os participantes do poder do seu próprio verbo, eles são como que as sombras do verbo..." (Sur l'Incarnation, p. 25, cot. 101 B) Ser "à imagem de Deus" não é, pois, uma qualidade acrescentada à humanidade, mas é a própria definição do humano. A "imagem" é o ser próprio do homem que ele recebe do ser próprio de Deus. Ela constitui aquilo que é especificamente humano. Designa o conjunto da pessoa humana "em relação com Deus" (The Orthodox Ethos. Studies in Orthodoxy. Vol. 1, ed. pot A. J. Philippnu. Oxford, 1964. p. 49). A noção de imagem designa a possibilidade inscrita no próprio coração do homem de viver em comunhão imediata com o seu Criador, e só esta comunhão é que faz dele um homem no pleno sentido do termo. Eis a razão pela qual a fé em Deus não é uma projeção das necessidades humanas não satisfeitas - mesmo se, do ponto de vista psicológico, vista do exterior, ela possa parecer como tal, - mas a expressão de uma realidade objetiva anterior a qualquer verificação empírica: o homem traz inscrita em si a imagem da sua origem transcendente. "A ideia de Deus não é antropomórfica, o homem não cria Deus segundo a sua imagem, não o inventa, mas a ideia do homem é teomórfica, Deus é que o criou à sua imagem. Tudo vem de Deus, a experiência de Deus vem também de Deus, porque Deus é mais íntimo ao homem do que o próprio homem" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 52-53). A condição do homem descrita pela noção de "imagem de Deus" é, pois, natural. A natureza do homem é sentir-se tendente para uma comunhão cada vez maior com a sua origem e o seu fim últimos. Assim, o pensamento ortodoxo não realiza, em geral, a distinção entre o "natural" e o "sobrenatural," tal como acontece no Ocidente. "A imagem (de Deus) é a natureza humana" (Dialogue sur lame a la ressurrection, PG 46, cot. 160 C), dizia Gregório de Nissa, indicando por esse modo que o ódio, a dúvida, o rancor, o orgulho - numa palavra, o pecado - são, propriamente falando, "desumanos," "contra a natureza." A humanidade do homem vem-lhe da sua capacidade de participar no infinito.

    A "imagem de Deus" não é uma abstracção; ela define o homem não só na sua totalidade, mas ainda nas diferentes "dimensões" constatáveis que o caracterizam. Para a teologia ortodoxa, o homem "à imagem" é um ser "espiritual," dotado de um espírito que lhe dá a consciência de ser chamado a ultrapassar-se em Deus. O seu "espírito" - realidade de que a psicologia se esforça por determinar os mecanismos - é a própria manifestação do seu "parentesco com Deus" (Gregorio de Nissa: Sermon catichitique, PG 45, cot. 21 CD). "O espírito humano é a imagem da imagem de Deus (Stromates, PG 9, cot. 140), dizia Clemente de Alexandria (morto cerca de 215) seguido pelos seus sucessores, entre outros Cirilo de Alexandria ("O homem diz-se que é feito à imagem de Deus enquanto animal racional") (Contre les anthropomorphistes, PG 76, cot. 1069-1072), Gregório de Nissa ("O espírito do homem é feito à imagem da Beleza soberana") (La creation et l'homme, PG 44, cot. 161 D) e Máximo o Confessor (580-662) que afirma: "O homem é uma imagem e semelhança de Deus pela sua alma espiritual e racional, pela qual, antes de tudo, o homem é e pela qual é chamado homem" (Mystagoge, PG 91, cot. 684 b). "Estas formulações apresentam o risco de oporem, no homem, o "espiritual" ao "material," mas este perigo, resultante da influência persistente do pensamento grego "pagão" na Igreja ortodoxa, será sempre ultrapassado de novo graças à visão homogênea da realidade humana e do mundo próprio da fé oriental. O homem é um todo; o seu "espírito" é simplesmente o fino cume da sua pessoa e permite-lhe estar todo inteiro em comunhão com Deus. Eis a razão pela qual, em lugar de ver o traço especificamente humano no "espírito," os Padres vê-lo-ão muitas vezes no "coração," sendo este o símbolo da unidade psicossomática da pessoa humana. Para Macário (c. 300-380. Autor cuja identidade exata ainda é contestada, mas cujos escritos influenciaram fortemente a espiritualidade bizantina) "o coração é o mestre e o rei de todo o organismo corporal, e logo que a (presença de Deus) se apodera dos pastos do coração, ela reina sobre todos os membros e sobre todos os pensamentos da alma, e é daí que ela espera o bem. Eis porque a (presença de Deus) penetra em todos os membros do corpo" (Homilie 15, PG 35, cot. 589 B). A palavra "coração" reveste-se certamente de um significado próximo do termo "pessoa:" o que por detrás e para além de todos os mecanismos psicológicos conscientes e inconscientes que é possível descrever cientificamente, constitui o "eu," o indivíduo irredutível a qualquer outro, o que faz que eu seja eu e não outro. Enquanto tal, "espírito" ou "coração" ou "pessoa" - as cambiantes que distinguem estes termos são de importância secundária - o homem é a imagem de Deus. Gregório de Nissa diz explicitamente que esta "profundeza" encobre a imagem de Deus: "Na incognoscibilidade de si mesmo, o homem manifesta a marca do indizível" (Citado pot Paul Evdokimov, op. cit. p. 144). É o fundamento de uma concepção da pessoa tal como ela aparece na teologia ortodoxa contemporânoa. Em última análise, a "pessoa" mesmo que ela se manifeste mais concretamente através do espírito - ou do "coração" - humano, sem esquecer que ela o faz também através da dimensão corporal, a "pessoa" designa o elemento irredutível do homem, elemento que, escapando a qualquer descrição objetiva, não pode reflectir-se senão na afirmação: "Eu sou eu." Como diz Vladimir Lossky (1903-1958): "Nós não encontraremos nenhuma propriedade definível, nenhuma atribuição que seja estranha à (natureza descritível do homem) e pertença exclusivamente à pessoa tomada em si mesma. Nestas condições, ser-nos-á impossível formar um conceito da pessoa humana, e será preciso contentarmo-nos em dizer: a pessoa significa a irredutibilidade do homem à sua natureza. 'Irredutibilidade' e não 'qualquer coisa de irredutível' ou 'qualquer coisa que torna o homem irredutível à sua natureza,' justamente porque não se pode tratar aqui de 'qualquer coisa' de distinto, de uma 'outra natureza,' mas de alguém que se distingue da sua própria natureza, de alguém que ultrapassa a sua natureza, contendo-a, que a faz existir como natureza humana por esta ultrapassagem e, entretanto, não existe em si mesmo, fora da natureza [através da qual vive] e que ultrapassa sem cessar" (Vladimir Lossky: A 1'lmage et a la Ressemblance de Dieu. Paris, 1967, p. 118). Eis a razão pela qual, ao fim e ao cabo, a "pessoa" humana, sendo transcendente ao descritível e única, não se pode realizar plenamente senão na comunhão com a irredutibilidade absoluta de Deus.

    Se o dualismo grego - oposição entre a alma e o corpo, o espiritual e o material - é assim evitado, não é menos certo que, no interior do todo da natureza humana o fato de ser à imagem de Deus implica para o homem uma certa hierarquia de valor. Sem dúvida, "alma e corpo" estão indissoluvelmente ligados. "A alma... mantém o corpo, enquanto que inversamente ela é mantida por ele; sem realizar nenhuma escolha particular, ela anima-o, dá-lhe vida, pelo simples fato de nele residir" (Epitre 12, PG 91, cot. 488 D), escreve Máximo o Confessor. E João Damasceno, em réplica: "A alma... é a fonte do poder vital [do corpo], do seu crescimento, de toda a sensação e geração..." (Sur la foe orthodoxe, PG 94, cot. 924 B) É o mesmo que falar da unidade vital da pessoa humana, aos olhos dos Padres "clássicos" da teologia ortodoxa. Mas, ao mesmo tempo, esta unidade implica um estado de supremacia da dimensão espiritual da pessoa humana sobre a sua dimensão material. "A alma racional preside sobre o corpo," escreve Atanásio, exprimindo assim uma constante no pensamento patristico oriental. "O espírito é o poder soberano em nós" (Gregorio de Nazianzo (329-390): SERMON 39, PG 36, cot. 341 B) eis por que "é preciso não permitir ao princípio soberano que seja dominado pelo seu inferior... mas antes submeter ao princípio soberano... aquele que ocupa o segundo lugar pela vontade de Deus" (Mesmo autor: Sermon 2, PG 35, cot. 428 BC). É precisamente nesta ordem interior, nesta harmonia, que reside a possibilidade, para o homem, de viver a sua qualidade de "imagem de Deus." Com efeito, se a dimensão espiritual - o eu consciente e inconsciente preside sobre os destinos do conjunto do composto humano, incluindo o corpo, é a fim de estar disponível à presença do divino que irradia o conjunto, e particularmente "transmitir" ao corporal o seu carácter verdadeiramente humano, deixando o corpo assim de ser puramente animal. É esta a razão pela qual, aos olhos de Gregório de Nazianzo, a "alma" foi ligada ao "corpo:" "É a fim de que ela possa chamar a si e elevar para os céus a natureza inferior, libertando-a progressivamente da sua grosseria, de modo que a alma possa ser para o corpo o que Deus é para a alma, informando a matéria que a serve e unindo-a a Deus" (Sermon 2, PG 35, cot. 425 A-428 A). À imagem de Deus, o homem é chamado a ser, por si mesmo, um dinamismo harmonioso de organização interior no curso do qual, progressivamente, o conjunto das faculdades físicas e psíquicas da pessoa se integram em redor do seu "eu," estando assim o homem em movimento para Deus.

    Fundamento da pessoa humana e do seu dinamismo interno, o fato de ser à imagem de Deus é, pois, para o pensamento ortodoxo, o fundamento último da liberdade humana. A aproximação entre a noção de imagem de Deus e a de liberdade é uma constante na literatura patrística oriental. "A liberdade, escreve Gregório de Nissa, é a semelhança com Aquele que é seu mestre e seu soberano, semelhança que nos fora dada por Deus na origem" (Dialogue sur l'dine et la resurrection, PG 46, cot. 102 D). É na medida em que ele é a imagem de Deus absolutamente livre, que o homem participa da verdadeira liberdade. Ela é a possibilidade de escolher em relação a Deus. "Se o homem é a imagem de Deus, ele exerce nas suas decisões uma vontade independente" (La criation de l'homme, PG 44, cot. 184 B) escreve o mesmo Padre, seguido aliás pelo conjunto dos teólogos ortodoxos. "O homem recebeu de Deus, nota o padre Bulgakoff, tudo o que Deus lhe podia dar pela sua onipotência; mas ele não [pode] nem [deve] receber de Deus aquilo que [é] chamado a realizar pela sua própria liberdade; ele [deve] de qualquer modo criar-se moralmente a si mesmo" (Serge Bulgakoff: L'Orthodoxie, Paris, 1932, p. 147-148). É precisamente aí que reside, para o pensamento ortodoxo, a incrível dignidade que Deus confere ao homem: poder determinar ele mesmo a sua orientação profunda para Deus - por isso mesmo para a realização da sua própria natureza - ou então para o nada. "O bem depende de nós, sublinha João Crisóstomo, e depende também de Deus. Importa antes de mais que nós escolhamos o bem, e, uma vez escolhido, Deus nos concede o que vem d'Ele. Ele não se adianta às nossas vontades, a fim de não lesar a nossa liberdade, mas uma vez que nós escolhemos, concede-nos o seu imenso auxílio" (Homelie 16 sur saint Jean, PG 59, cot. 73). É "o incompreensível respeito de Deus para com a nossa liberdade: porque o homem pode dizer não, o seu sim pode atingir uma ressonância plena, e o seu [sim] não se encontra apenas de acordo, mas ao mesmo nível vertiginoso de livre criação que o [fim] de Deus" (Paul Evdokimov, OP. CIT., P. 43-44). Nós estamos neste ponto no coração do mistério da pessoa humana: criada à imagem de Deus, ela é capaz de recusar caminhar para Ele. "Deus criou uma outra liberdade ao lado da sua e o risco que Deus tomou anuncia já o 'fim de dor' [isto é, Jesus Cristo de Nazaré], e projeta a sombra da cruz, porque, segundo o adágio dos padres, Deus pode tudo, menos obrigar o homem a amá-Lo" (Ibid. p. 91). Gregório de Nissa, o teólogo oriental por excelência da liberdade humana, disse: "Deus permitiu, na sua enorme consideração pelo homem, que nós tivéssemos igualmente o nosso reino do qual cada indivíduo o único senhor. Está aí a nossa consciência" (o termo grego "proairesis" designa a intencionalidade da consciência), facultade isenta de constrangimentos e livre, fundada a liberdade da nossa inteligência" (Sermon Cathechetique, PG 45, cot. 77 A). Eis, pois, o infinito de cada pessoa: "Deus pode tomar o nosso para sofrer e morrer, não o pode fazer pelos nosos actos de liberdade, de opção, de amor" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 38). E é da opção última da liberdade - Deus ou a sua recusa - que dependerá a harmonia interior do homem que, à imagem de Deus, é chamado a libertar-se, integrando-as, das suas pulsões inconscientes "subterrâneas." Assim, a liberdade cobre a "ausência de paixões," isto é, o equilíbrio interior, visto que, como nota Gregório de Nissa, "o homem é chamado a ser a reprodução fiel d'Aquele que não conhece paixão..." (Sermon Catechitique, PG 45, cot. 29 B).

    Se o homem tem a liberdade de se afastar de Deus, sua orientação profunda, tem por conseguinte a liberdade de perder... a sua própria liberdade. Com efeito, o homem não é verdadeiramente livre, verdadeiramente ele mesmo, senão na medida em que realiza a sua identidade "de imagem de Deus," em que é incessantemente levado para diante para o seu fim e sua origem. "Como por um lado a liberdade é identidade com a sua própria natureza e conformidade com ela, segue-se que todo aquele que é livre une-se com o seu semelhante. Mas como, por outro lado, a virtude [isto é a fé, o amor, a atitude positiva perante Deus e o próximo] é o senhor [da liberdade] , segue-se igualmente que é nela que reside a liberdade. Ora, como a natureza divina é a fonte de todas as virtudes, é pois em Deus que se unem [na liberdade] todos aqueles que são purificados do mal, a fim de que Ele seja... tudo em todos" (Dialogue sur l'dme a la resurrection, PG 46, cot. 101 D-103 A). Torna-se claro pois que, da mesma forma que as outras dimensões da "imagem de Deus" devem ser vividas em referência constante com o seu "modelo" - Deus, - assim a liberdade não é cumprida senão na sede de absoluto e de futuro que só Ele pode saciar. Ou, por outras palavras, mais teológicas: "A liberdade dos filhos [de Deus que nós somos] identifica-se e coincide com o dom do Pai que é o Espírito Santo" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 44). E é nesta profundidade que reside a dimensão transcendente da liberdade do homem: mesmo se esta se realiza em Deus, sendo dom de Deus, ela permanece, paradoxalmente, liberdade de recusar Deus, possibilidade de ateísmo: "Se se encontram homens que, livremente, por um movimento espontâneo, inclinam para o mal da natureza humana, tentar pela força desviá-los da sua má escolha seria tirar-lhes qualquer possibilidade de participarem no bem que se lhes oferece, e sobretudo seria despojá-los da dignidade que os torna iguais a Deus... porque é graças à sua liberdade que o homem é igual a Deus" (Gregorio de Nissa: Des Tripasses, PG 46, cot. 524 A). O paradoxo existencial da liberdade humana é ser, ao mesmo tempo, participação na independência divina e independência em relação a Deus.

    Sobre a via da descoberta da sua pessoa, da realização do seu justo equilíbrio interior e da sua liberdade, o homem à imagem de Deus é também chamado à vida comunitária com o outro, e isto muito particularmente na união homem-mulher. Certamente, para os Padres gregos clássicos - monges! - a reprodução sexual parece indicar que o homem não foi, sob este aspecto, ainda criado perfeito. "Deus, nota João Damasceno, sabendo na sua presciência que o homem iria transgredir os seus mandamentos]e ser assim ameaçado de destruição, criou a partir dele uma mulher, uma ajuda... permitindo-[lhe conservar a espécie humana, mesmo depois da queda, por via da geração natural" (De la foe orthodoxe, PG 94, cot. 976 B). Para os monges ortodoxos a castidade constitui assim uma antecipação do fim do mundo, onde a questão da diferenciação sexual será ociosa, a comunhão dos homens entre si e com Deus sendo então muito mais imediata e muito mais estreita ainda do que qualquer espécie de união por intermédio da natureza psíquica e física criada. Mas a união sexual do homem e da mulher, entendendo por "sexual" não somente o lado físico, mas ainda os caracteres psicológicos do sexo de cada uma das partes, é precisamente um sinal da comunhão à qual todos são chamados, e, enquanto tal, não apenas admissível, mas parte integrante do homem à imagem de Deus. O homem é feito para viver com outrem, para se completar com outrem, e esta complementaridade cumpre-se na união que se torna, assim, o sinal da sua vocação a uma vida comunitária mais larga ainda. "Deus criou a mulher de uma costela de Adão, nota um catecismo russo do último século, a fim de que a humanidade seja um só corpo e que, naturalmente, os homens sejam inclinados a amar-se" (Ausfiihrlicher christlicher Katechismus der orthodox-katholischen orientalischen Kirche... auf allerhochsten hefehl Seiner Kaiserlichen Majestat, da tradução alemã do russo segundo a edição de 1839. Sampetersburgo, 1840, p. 31).

    Deste modo o casamento se reveste, para a Igreja ortodoxa, de um significado que não interessa unicamente ao casal, mas a toda a sociedade humana. "Enquanto considerarmos o casamento como uma questão que interessa só aos esposos, como um acontecimento que lhes respeita só a eles e não ao conjunto da comunidade da Igreja, por conseguinte, ao próprio mundo, não compreenderemos nunca o verdadeiro significado do casamento... Nós devemos compreender que o verdadeiro tema, o verdadeiro 'conteúdo' do casamento não é a 'família,' mas o amor. A família, enquanto tal, centrada sobre si mesma, pode manifestar uma deformação demoníaca do amor - e o Evangelho contém palavras severas a este respeito: "O homem terá por inimigos as pessoas da sua casa" (Mat. 10:36). É neste sentido que o alcance do sacramento do matrimônio ultrapassa a família. É o sacramento do amor divino, mistério que envolve toda a realidade, e é por esta razão que ele diz respeito à Igreja e, através dela, a todo o mundo" (Alexander Schmemann: For the Life of the Worl. Nova torque, 1963, p. 60). No casamento, o homem, imagem de Deus, deve pois tender para Deus, a fim de realizar plenamente a comunidade com o seu ou sua companheiro(a), comunidade que, por causa da sua "origem divina," não pára no amor do casal, mas, paralelamente, e através dele, torna-se amor para todos os próximos que este encontra. É através do seu amor, que reflete o amor do próprio Deus, que o homem casado, a bem dizer é "rei" da sua vida e da criação, que antecipa, por assim dizer, a realeza total de Deus sobre o conjunto do universo. Eis a razão pela qual, no decorrer da cerimônia ortodoxa do casamento, os casais são literalmente coroados. "Eis o que representam as coroas do casamento: um pequeno reino acaba de nascer, que pode assemelhar-se ao Reino desta realidade última - da qual toda realidade 'deste mundo...' se torna sinal e antecipação" (Ibid.. p. 60).

    O fato de ser criado com vista à vida comunitária chama, pois, o homem neste plano, como no plano da sua individuação e da sua liberdade, a ultrapassar-se em Deus que, sendo mistério Um em Três - voltaremos a este tema - é em Si mesmo "comunidade," "relação," "permuta mútua" perfeitas. "O homem é criado à imagem de Deus, nota o padre Bulgakoff. Na sua consciência pessoal, o homem possui a imagem da pessoa divina. Enquanto membro do gênero humano, ele possui a imagem da união das três pessoas divinas [o Pai, o Filho e o Espírito Santo]: Ele está consciente de si mesmo, não somente enquanto 'eu,' mas também enquanto 'tu' e enquanto 'nós.' Na natureza masculina e na natureza feminina a humanidade possui um duplo aspecto da sua existência: um aspecto onde predomina a razão e um outro onde predominam a beleza e o amor..." (Serge Bulgakoff. op. cit. p. 147) Cumprido este ultrapassar-se a si em Deus, único fundamento último da vida conjugal e comunitária, compreende-se por que, no fim de contas, o celibato monástico e o casamento não se opõem, dentro do pensamento ortodoxo; eles são, um e outro, tensão para a realização última do humano. Testemunha esta lenda da antiguidade cristã oriental: "Quando S. Macário, o grande asceta, vivia no deserto, apareceu-lhe um anjo, ordenando-lhe que o seguisse até uma aldeia distante. Uma vez ali chegados, fê-lo entrar numa pobre casa onde vivia uma família humilde. O anjo mostrou-lhe a esposa e mãe deste lar, dizendo-lhe que ela tinha atingido a santidade, vivendo em paz e em perfeita harmonia, após o seu casamento, e no meio de inúmeras ocupações quotidianas, com todos os seus, conservando um coração puro, uma grande humildade e um ardente amor a Deus. E S. Macário implorou de Deus a graça de poder viver no deserto como esta mulher vivia no mundo" (Citado pot Paul Evdokimov: Sacrement de l'amour. Le mystere con jugal d la maniere de la tradition orthodoxe. Paris, 1962, p. 97-98).

    Deus criou o homem "à sua imagem, fazendo dele, por assim dizer, um pequeno mundo [microcosmos] no interior do grande... Colocou-o assim como guarda da sua criação visível, como um rei que a comanda" (Gregorio de Nazianzo, Sermon 38, PG 36, col. 317 ss. a 632) Ser "à imagem" significa igualmente ser responsável pelo arranjo do espaço vital onde está colocado. Desde o início que o homem leva em si a dimensão cósmica da qual não pode abstrair a sua própria existência. Ele não é feito somente para a comunidade com os outros homens, mas ainda para uma relação construtiva com o que de animado e inanimado o rodeia. "Criando-nos à sua imagem, nota S. Basílio, Deus fez de nós os senhores de tudo o que existe sobre a terra e nas águas" (Commentaire d'Essai'e 2:83, PG 30, col. 256). Embora esta implicação da imagem de Deus não seja explicitada com a mesma clareza por todos os padres orientais, ela é um tema que se tornará objeto das preocupações da filosofia religiosa russa do último século. Assim, por exemplo, Soloviev (1853-1900) afirma: "O homem é o intermediário normal entre Deus e o mundo material, 'porque,' no homem, a natureza é ultrapassada e atinge o domínio do ser absoluto" (Citado por B. Zenkovsky: Histoire de la Philosophie russe. Tomo II, Paris, 1954, p. 52). O fato de ser à imagem do Deus criador permite assim ao homem ser criador por sua vez. "A humanidade, afirma Fedorov (1828-1903), é chamada a ser o instrumento de Deus" (Citado ibid. p. 141), e assim incumbe-lhe "não só visitar, mas também povoar todos os mundos do universo" (Citado ibid. o. 142). Longe de entrar "em concorrência" com Deus, o homem, pelas suas descobertas científicas, as suas criações artísticas, as suas realizações técnicas, a sua organização social e as suas explorações até aos espaços interestelares, pode realizar a intenção de Deus de prosseguir na sua criação através do homem, sua criatura mais evoluída. Escusado será dizer que ser "rei da criação" de maneira realmente construtiva, para o desabrochar da vida de todo o homem e de toda a criatura implica uma responsabilidade tal que somente em referência constante ao Criador é que o homem estará em condições de a assumir. Aí também, o homem criador e organizador porque à "imagem do Criador," não pode ser fechado sobre si mesmo nem bastar-se a si mesmo, mas não se tornará verdadeiro sábio, verdadeiro explorador, verdadeiro organizador e verdadeiro artista, senão ultrapassando-se em Deus.

    Cada uma das diversas implicações da "imagem de Deus" - o homem "natural" é chamado a ser "espiritual," uma pessoa, em equilíbrio interior, livre, a viver em comunidade com uma companheira e com os outros, assim como a dominar, organizar e criar o mundo cada uma destas implicações tem o seu ponto de partida em Deus, no qual, uma vez que é Ele o "protótipo" da imagem, se realizam a natureza de todas as coisas criadas, a harmonia interior, a liberdade, a comunidade e o domínio do mundo. "Ser criado à imagem de Deus," não é pois ser perfeito, plenamente humano à partida, mas receber a vocação objetiva de o vir a ser, participando, sempre de mais perto no último fundamento e fim de todas as coisas, isto é, estar na disposição de receber do próprio Deus o dom de vir a ser verdadeiramente ele mesmo. Esta é a razão pela qual se encontram Padres da Igreja oriental que afirmam que o homem foi criado "à imagem de Deus," para adquirir a "semelhança," sendo esta última o fim para o qual cada homem e a humanidade inteira são chamados a caminhar. "Pois não há entre nós, pergunta Clemente de Alexandria, quem pense que o homem é à imagem pela sua própria origem, ao passo que vai adquirir a semelhança mais tarde, pela perfeição?" (Stromates, PG 8, col- 1080). Mais tarde, precursor da teologia bizantina clássica, Máximo, o Confessor, afirmará: "O homem original foi criado à imagem de Deus, na liberdade do Espírito... tendo observado os mandamentos, recebeu, por conseguinte, a semelhança, de modo a ser ao mesmo tempo, por sua natureza, criatura de Deus - e, pela graça, filho de Deus ou seja, Deus ele mesmo pelo Espírito" (Ambigua, PG 91, col. 1345 D). Para Máximo, o homem realiza-se verdadeiramente em Deus, portanto, no fim de contas, na adoração e no louvor: "Aquele que sabe louvar sem cessar o Senhor, Chegou a completar a beleza natural da imagem pela da semelhança realizada na liberdade" (Centuries gnostiques, citado por H. V. Von Balthasar em: Kosmische Liturgie. Das Weltbild Maximus' des Bekenners. Einsiedeln, 1961, p. 545).

    Este movimento, cuja representação dramática observamos na liturgia, partindo ao menos de uma vocação já inscrita no homem - pessoa, liberdade, possibilidade de equilíbrio interior, vida comunitária e criação - para o mais da sua realização existencial, este movimento culmina pois na fé, participação vivida conscientemente na presença de Deus. Ora, sendo tomada de consciência de Deus - que é Amor - a fé é inseparável do amor. "Da perfeição inicial frágil, porque inconsciente, caminha-se para a perfeição consciente, à imagem da perfeição do Pai celeste. A imagem, fundamento objetivo, chama a semelhança subjetiva, pessoal. O germe - 'ter sido criado à imagem' - conduz à eclosão: 'existir à imagem' do Existente. A 'Deus é amor' responde 'eu amo, por isso, eu sou' do homem" (Paul evdokimov, op. cit. p. 78-79). Longe de fugir para fora da sua existência concreta, o homem crente toma consciência da presença de Deus, e realiza assim a sua vocação de ser verdadeiramente homem, no conjunto de decisões e de ações que lhes inspira o amor de Deus em face do outro e do seu meio ambiente material, portanto através da sua ética. A 'imagem' designa a natureza do homem, enquanto que a 'semelhança' significa as suas responsabilidades éticas. Se a 'imagem' constitui o laço original entre Deus e o homem, o termo 'semelhança' envolve a realização das virtualidades da imagem... (esta vocação) interpela o homem a provar que ele é à imagem, a manifestar nos fatos a liberdade que Deus lhe deu" (The Orthdox Ethos. Studies in Orthodoxy, vol. I, ed. por A. J. Philipou, Oxford, 1964, p. 50).

    E, reciprocamente, a realização da vocação, por muito concreta e terra-a-terra que ela seja, implica necessariamente, precisamente porque ela conduz a Deus que se manifesta através da situação ética pessoal e social, uma tomada de consciência do último, da origem e do fim extremo que aí se revelam, uma aceitação de "Deus." A adoração está pois indissoluvelmente ligada à eficiência do amor. É a gratidão perante o dom da vida e a oferta desta a Deus, gratidão e oferta que, conforme já se viu, culminam na Eucaristia, que é "ação de graças e sacrificio." Para o homem que realiza a sua vocação, o "religioso," a "fé," o "culto" e a "vida," o "concreto" , o "mundo real," designam um só e o mesmo movimento para a sua identidade profunda: o ultrapassar-se em Deus. "Para a Bíblia, escreve o padre Schmemann, bendizer a Deus não é um ato 'religioso,' 'cultural,' mas a única maneira humana de viver. Deus abençoou o mundo, o homem, o sétimo dia - portanto o tempo - o que significa que Ele encheu do seu amor tudo o que existe... A única reação natural (e não "sobrenatural") do homem a quem Deus deu este mundo abençoado... é bendizer o Senhor por sua vez, agradecer-lhe, ver o mundo como Deus o vê e, através deste ato de gratidão e de adoração, conhecer, pôr nomes e possuir o mundo. Todas as qualidades racionais, espirituais e outras que o distinguem das outras criaturas [por isso todas as qualidades implicadas na sua natureza de "à imagem" - ser uma pessoa livre, comunitária, animada de um dinamismo para o interior e o exterior] encontram o seu denominador comum e a sua completa realização nesta capacidade de louvar a Deus, de tomar consciência, da causa profunda da nostalgia, da fome e da sede que constituem a sua vida. O homem é homo sapiens, homo faber, sim, mas acima de tudo ele é homo adorans" (Alexander Schmemann, op. cit. 4-5).

    A vocação do homem é, portanto, se ele quiser tornar-se plenamente ele próprio - "onde não há Deus, também não há homem" (Paul Evdokimov, Les Áges de ia Vie spirituelle, Paris, 1964, p. 83) - ser um "crente," um ser que se sabe originário de - e orientado por e para uma realidade que o ultrapassa absolutamente, mas que descobre e realiza sempre mais através do conjunto da sua vida de oração e de ação. É assim, e só assim que, para a fé ortodoxa, ele se torna plenamente adulto. "Eu não vos chamo mais servos, mas amigos" (Jo. 15:15). "Esta palavra do Senhor, recorda Evdokimov, anuncia o estado adulto do homem em que o homem ultrapassa o homem" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 58). É, a falar com propriedade, a realização da pessoa humana, compreendendo a orientação, construtiva para ele e para outros do seu livre dinamismo interior (harmonia das faculdades conscientes e inconscientes) e exterior (vida comunitária, exploração e organização/criação da sociedade e do mundo), sendo o todo disponibilidade ativa para a irrupção sempre nova do Inefável e sede da Sua presença. Assim se explica esta expressão misteriosa do fim último da vocação humana: "O homem, dizia Basílio, é uma criatura que recebeu a ordem de se tornar Deus" (Citado por Paul Evdokimov, L'Orthodoxie. Neuchâtel-Paris, 1959, p. 71). Perante a intuição da última razão de ser do homem, não há explicação possível, mas somente o silêncio denso da oração.

    O próprio fato de o homem ser chamado a tornar-se plenamente ele mesmo em Deus indica, melhor do que qualquer espécie de moral que fosse imposta de fora, que ele não se basta a si próprio, que tem realmente necessidade do Todo-Outro para viver. O homem é uma criatura "à imagem" do seu criador, mas não o próprio Criador. Todos os valores que constituem a sua vida estão em última análise dependentes, e isso totalmente, da existência d'Aquele que é o seu fundamento e a sua realização. Certamente, como dizem os Padres orientais, o homem é um "microcosmos," um "peque no mundo" só por si, mas somente na medida em que ele realiza a sua dependência profunda em relação a todo o cosmos, de que o Inefável é a origem, o animador e o fim último. Também o homem leva em si as marcas da sua condição de criatura. Para os Padres orientais, a natureza humana, como toda a natureza criada é por definição móvel, isto é instável, por oposição a Deus, sem dúvida "dinâmico," mas sem risco de hesitação. "No ser composto criado, há uma certa servidão pelo fato da oposição das partes que o compõem; ao contrário, o Espírito simples (Deus) nunca está sujeito a nenhuma servidão" (Gregório de Nissa: Contre Eunome, PG 45, col. 848 BC). É a servidão da liberdade humana: "A mudança produz-se incessantemente no sentido do melhor se a criatura age segundo a sua natureza [isto é, a sua vocação de estar em comunhão com Deus] . Ao contrário, ela é arrastada para o estado oposto por um movimento ininterrupto, se se desvia do caminho reto" (Mesmo autor: Sermon Cathéchétique, PG 45, col. 40 B). Nada escapa a esta mobilidade ambígua, construtiva somente se o homem se mantém sobre a corda tensa da confiança em Deus, única possibilidade de não cair; nada escapa a isso, nem mesmo "a alma que é... mutável porque é criada" (João Damasceno: La Foi orthodoxe, 11-12). A intuição desta instabilidade fundamental, que não pode ser ultrapassada senão em Deus, é uma constante no pensamento ortodoxo. Torna-se particularmente clara na espiritualidade dos monges. Um exemplo flagrante a este respeito é-nos fornecido por um visitante do Monte Atos que encontrou lá um monge entregue a uma atividade à primeira vista singular, mas destinada precisamente a dominar esta instabilidade perigosa: 'Através da erva alta dirigimo-nos para junto de um cipreste isolado, ao lado do qual estava sentado o monge que eu encontrara, ao meio-dia, na estrada. Estava apoiado a um muro de pedras que podiam desmoronar-se... e fazia renda. 'Este trabalho, diz-me ele, ajudou-me a encontrar a felicidade que agora sinto no Monte Atos... A atenção fixa sobre o movimento mecânico da mão, prosseguiu, pode contribuir para a salvação a que todo o homem aspira; com efeito, o homem não existe apenas à imagem de Deus, mas assemelha-se igualmente aos anjos, decaídos que, sentindo prazer no terrível poder da sua instabilidade, destroem os efeitos do amor divino... Criando um motivo com fio e uma agulha... domino a matéria sem sucumbir à minha instabilidade, porque o modelo do motivo me é ordenado. A minha vontade limita-se a alinhar as malhas umas a seguir às outras...' O padre... estava pois consciente das oposições instáveis na alma humana assim como do carácter inevitável deste conflito, e procurava controlar o movimento da sua individualidade móvel. Eis por que ele se esforçava por encerrar os seus desejos na atenção concentrada e empenhada numa atividade mecânica" (Rudolf Biach: Das Geheimnis des heiligen Berges, Viena, 1949, p. 65).

    Se este exemplo pode parecer extremo, não é menos verdade que o estar consciente do seu estado de criatura, da sua instabilidade intrínseca incita o crente ortodoxo a uma atitude de humildade. Há nisso um realismo muito são, uma ausência de idealismo desordenado, uma simplicidade de espírito que se encontra particularmente na vida e na irradiação espiritual dos "Staretz" russos dos últimos séculos. "Quanto a ti, escreve Paissi Velitchkovsky (1722-1794) à sua filha espiritual, tu deves sempre, no íntimo do teu coração e da tua alma, considerar-te como poeira diante de Deus..." (Citado por Nicolas Arseniev: La Piété _russe. Neuchâtel, 1963, p. 122) Se o homem recebeu a vocação de se tornar plenamente ele mesmo realizando, na fé, as virtualidades da sua natureza criada à imagem de Deus, tornando-se uma pessoa verdadeiramente livre, equilibrando as suas forças interiores, vivendo em comunidade e criando um mundo humano e belo, debruçando-se em tudo isto sobre o mistério do divino, o pensamento ortodoxo reconhece, entretanto, com lucidez e realismo a fraqueza, a mobilidade ambígua inerente ao homem que, depois de tudo, não passa de uma criatura. A versatilidade que é própria do homem indica, mais do que qualquer outra coisa, que ele não poderá adquirir a sua verdadeira estabilidade, portanto a sua verdadeira humanidade, senão realizando, na sua vida, a sua orientação profunda para e pela última realidade de todas as coisas. Para a Igreja oriental, só, o homem é poeira; na comunhão com Deus, ele é o seu próprio rei e o de toda a criação.

     

    O pecado

    O homem ainda não realizou a sua vocação. A Igreja ortodoxa vê nisso a razão da "queda," a falta do primeiro homem - Adão - no qual está miticamente representada toda a humanidade. O mito da falta do primeiro homem exprime a solidariedade que liga todos os homens, tanto no bem como no mal. Se não vivo em pleno a minha existência de homem, afeto necessariamente, pela minha influência pessoal e pelas conseqüências destrutivas que daí resultam no plano da sociedade, os que me rodeiam no tempo e no espaço. "Adão" - o homem original - é o símbolo desta interação, na ocorrência negativa, que se exerce ao longo de todos os tempos de geração para geração. Assim, o Oriente cristão encara o dogma do "pecado original," a questão da nossa culpabilidade "em Adão," de maneira diversa do Ocidente. É certo que, em virtude da solidariedade "em Adão," nós sofremos todos os contragolpes do "seu" pecado, isto é, das escolhas e dos atos contrários ao humano dos outros e de todos os que nos precederam desde as origens da humanidade. Mas os Padres orientais - e os teólogos ortodoxos no seu seguimento - insistem sobre o fato de que se nós somos responsáveis, não é do "pecado de Adão," mas do nosso exclusivamente. Vários Padres - entre os quais Gregório de Nissa, João Crisóstomo e outros - podem por isso declarar que as crianças estão inocentes diante de Deus, não tendo ainda tido ocasião de cometer faltas pessoais. A célebre passagem do apóstolo Paulo - "Por um só homem (Adão) o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, e assim a morte atingiu todos os homens, pelo fato de todos os homens terem pecado" (Rm. 5:12) - os Orientais interpretam-na neste sentido: cada um sofre a morte, consequência do pecado, mas cada um é pessoalmente responsável. "Não é pelo pecado do Antepassado que cada homem sofre a lei da morte, afirma Teodoro de Ciro (c. 395-460), mas pelo seu próprio" (Commentaire de l'Épitre aux Romains, PG 82, col. 160). Não teria pois sentido, para o crente ortodoxo, ser acusado da falta de um outro; a sua responsabilidade pessoal é assim ainda mais realçada. "Os Padres do Oriente, que liam S. Paulo no original grego, nunca tentaram provar a responsabilidade dos descendentes de Adão pelo pecado do seu antepassado: constatavam apenas que todos os homens receberam, por herança, a corrupção e a morte e que todos eles cometiam o pecado" (Jean Meyendorff: L'Église Orthodoxe hier et aujourd'hui. Paris, 1960, p. 169).

    Que é o "pecado?" Paradoxalmente, ele intervém onde o homem é mais "humano" em relação às outras criaturas, no seu espírito, na sua liberdade, na sua pessoa. "O espírito do homem, nota Basílio, pode conduzir-se de três maneiras diferentes: a nossa conduta... a do nosso espírito, talvez má, em caso de adultérios, roubos, idolatria, calúnias, discórdias...; ou então a atividade da alma é, por assim dizer, neutra, nem condenável nem susceptível de louvor; enfim o espírito pode ser impregnado da divindade do Espírito de [Deus]... revestindo-se assim de uma beleza divina em proporção da graça recebida..." (Epitre 233, PG 32, col. 515 AB). O pecado é um ato da liberdade do homem, realizado não ao nível dos seus "baixos instintos" mas, ao contrário, ao nível do seu espírito elevado," da sua vontade de homem, da sua consciência. "A vontade livre, sublinha João Damasceno, é o primeiro sujeito do pecado" (La foi orthodoxe, PG 94, col. 1041 D), sem que este resulte de uma "natureza vil" que arrastaria o homem, apesar dele: "O pecado resulta da livre vontade do homem mais do que de uma parte integral da sua natureza" (Ibid. col. 924 B). É certo que Deus lhe deu a liberdade - sem a qual ele não seria verdadeiramente homem - mas é o homem quem utiliza esse dom extraordinário para sua perdição. "A origem e a raiz do pecado somos nós e a nossa liberdade" (Dieu n'est pas Ia cause du nial, PG 31, col. 332), constata Basílio e sublinha-o: "Não procures a origem do mal fora de ti, querendo imaginá-lo como uma pessoa distinta que fosse a fonte de todo o mal... Não acuses mais o Senhor de ser o seu autor, mas que cada um reconheça que é ele próprio a origem do mal que nele existe!" (Ibid. col. 341)

    O mal decorrente das qualidades mais humanas do homem é o de querer "rivalizar" com Deus, ser seu igual, em lugar de participar nos seus dons" (Jean Meyendorff: Orthodoxie et Catholicité. Paris, 1965, p. 117). Em vez de aceitar que, para realizar a sua vocação, ele tem necessidade de se deixar tomar cada vez mais humano por Deus, o homem julga que se basta a si próprio, que o divino é supérfluo. "Querendo pertencer-se, e recusando ultrapassar-se em Deus" (Paul Evdokimov: Les Ages de Ia Vie spirituelle. Paris, 1964, p. 110), o homem, na sua liberdade, manifesta o seu orgulho, o seu amor próprio. O orgulho é, pois, "a raiz e a fonte de todo o pecado" (João Crisóstomo: Sermon sur saint Jean, PG 59, col. 72), porque centra o homem em si mesmo, e, por esta razão, encerra-o na sua instalibilidade ambígua. É a philautia, o amor de si, o "culto prestado a si mesmo" (Máximo o Confessor, PG 90, col. 260 A), a "insolência" (Basilio, op. cit., PG 31, col. 344 D-345 A), outros tantos termos que designam a escolha negativa feita pelo homem. Em última análise, o pecado é o desejo de chegar por si mesmo à sua própria realidade, à comunhão com Deus. No mito do Génesis, Adão, comendo o fruto proibido, quis tornar-se Deus, e é nesta pretensão que os Padres gregos vêem, no fim de contas, a origem da revolta do homem e da sua autodestruição. "O ser humano teve a pretensão, escreve João Damasceno, de ultrapassar a sua própria natureza e de tornar-se Deus" (Contre les manichéens, PG 94, col. 1437 D).

    O "pecado" não é, pois, fundamentalmente falando, este conjunto de "faltas contra a moral" que nos meios cristãos muitas vezes é considerado como tal. Mas é a recusa de se saber colocado na existência por uma origem que ultrapassa as verificações científicas e intuitivas superficiais, a recusa de admitir que o homem e o mundo foram criados em vista de um fim que os ultrapassa absolutamente. Assim, a queda é "deixar de reconhecer que Deus é tudo em todos" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 5), passo em falso que não poupou a própria religião "que aceitou arrumar Deus num domínio 'sagrado' ('espiritual,' 'sobrenatural') oposto ao mundo 'profano,' tendo capitulado perante a secularização crescente que quer subtrair o mundo a Deus." Para o pensamento ortodoxo, o "pecado" não deve pois ser encarado antes de tudo como uma "desobediência" a uma lei divina, mas como uma recusa em reconhecer a realidade última de todas as coisas. "O pecado do homem não é a desobediência, esta é apenas uma conseqüência inevitável; o pecado é desconhecer o dom da comunhão, recusar a verdadeira liberdade [em Deus] e abdicar do amor dos filhos de Deus que são os homens" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 7). Por outras palavras ainda: 'O pecado 'original' não é, em primeiro lugar, o fato de o homem ter 'desobedecido' a Deus; o pecado é deixar de ter fome de Deus, e d'Ele somente, é deixar de ver que toda a nossa vida dependente do conjunto do mundo, ele mesmo sacramento de comunhão com Deus. O pecado não é negligenciar os 'deveres religiosos.' O pecado é encarar Deus em termos religiosos, isto é, opô-lo à vida... A queda não é preferir o mundo a Deus, romper o equilíbrio entre o espiritual e o material, mas reduzir o mundo ao seu estado material, enquanto que o homem era chamado a transformá-lo em 'vida em Deus,' a enchê-lo de espírito e a dar-lhe, assim, a sua verdadeira significação" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 7).

    Se o homem traz em si mesmo a raiz do mal, o seu desejo de ser Deus passando sem Deus, desejo que lhe vem paradoxalmente da sua natureza de "imagem de Deus," espiritual e livre, o mal é entretanto, ao mesmo tempo, uma realidade objetiva inseparável do eu subjetivo mas que o atrai, o conjura, o seduz. É a realidade daquilo a que os Padres chamaram o "diabo," o "divisonista," e o que, miticamente falando, aos olhos dos Padres da Igreja oriental, desempenha um grande papel na queda de Adão. "De forma enganadora, o Adversário introduziu o mal no livre arbítrio do homem, atenuando e obscurecendo por meio do mesmo, numa certa medida, este benefício de Deus; ele arrebatou o homem ao poder [de Deus] que o mantinha firme de forma a fazer dele uma presa fácil às suas intrigas" (Gregório De Nissa: Sermon Catéchétique, PG 45, col. 29 CD). É pois através da liberdade humana que este poder objetivo e subjetivo se manifesta, mas somente na medida em que, por causa dela, o homem julga poder passar sem Deus. Assim o sublinha João Damasceno: "O Mentiroso tentou o homem fazendo apelo ao seu desejo de ser como Deus (Alusão à árvore do conhecimento do Bem e do Mal) e, depois de o ter elevado à altura da sua própria vaidade, fê-lo cair com ele no mesmo abismo de perdição" (La foi orthodoxe, PG 94, col. 980 A). Além disso, sem que seja preciso ver aí um desprezo pelo corpo, os Padres constatam que o demônio age, entre outras formas, através da atenção prestada demasiado exclusivamente ao corpo e às suas necessidades, enquanto que o homem é chamado a viver a sua vida como uma totalidade psicossomática aspirando à sua realização em Deus. "O Demônio, nota Máximo o Confessor, entrou no homem através do seu corpo e graças ao seu amor pelo corpo" (Ambigua, PG 91, col. 1157 C). Assim, "há um número infinito de maneiras de o Demônio entrar na nossa alma para a afastar de Deus, pressionando-a de todos os lados com o seu ser obscuro, de ódio e destruidor. Qualquer que seja o movimento do homem, ele busca a sua via, não negligenciando nenhuma possibilidade de penetrar na alma" (Jean de Cronstadt: Ma Vie en Christ. Tradução inglesa, Jordanville, 1957, vol. 1, p. 25): eis o que afirma o padre João de Cronstad (1829-1908. Padre russo, extremamente popular nos fins do século passado por causa dos seus milagres e do seu dom de profecia; ele predisse nomeadamente a Revolução de 1917 e as suas conseqüências espirituais), o qual, com numerosos outros contemplativos, fez a experiência da força maldosa que incita o homem a perder, na revolta, a sua verdadeira identidade. A experiência do "demoníaco" relata-a o staretz Siluan (monge do Monte Atos, 1866-1938), desta forma, nas suas Memórias: "Uma noite, encontrava-me eu na minha cela, e eis que, de repente, irromperam dentro dela uma multidão de demônios. Suplicava fervorosamente ao Senhor que os afastasse de mim, mas eles voltavam de novo. Levantei-me então para me inclinar diante dos ícones. Um demônio colocou-se perante mim de tal modo que eu me inclinasse diante dele. Voltei a sentar-me e exclamei: 'Tu vês, Senhor, como me esforço por orar de coração puro, mas os demônios impedem-me. Que devo fazer para que eles me deixem em paz?' No meu íntimo ouvi a resposta do Senhor: 'Os homens fiéis sofrem sempre o ataque dos demônios.' 'Senhor misericordioso, respondi, que devo fazer para adquirir a humildade?' E ouvi o Senhor responder na minta alma: Mantém-te conscientemente no inferno e não desesperes" (Staretz Siluam, Monge do mosteiro do Monte Atos: Leben - Lehre - Schriften, referido e publicado pelo Arquimandrita Sofronius. Dusselforf, 1959, p. 320).

    Sem que seja possível dizer se se trata de realidades objetivas ou de visões subjetivas - já vimos que o crente ortodoxo, na sua concepção homogênea da realidade, não estabelece esta distinção, superficial aos seus olhos, - o pecado, adoração de si mesmo em vez de Deus, torna-se pois numa cedência à vertigem do nada, do "não Deus," do "não ser" que se encontra ao mesmo tempo no homem, uma criatura caracterizada pela sua instabilidade ambígua e, além disso, na própria realidade das coisas. O "mal," o "Maligno," o "Demônio," manifestam para os ortodoxos a possibilidade oferecida realmente ao homem de se destruir a si próprio, possibilidade que ele escolhe por si mesmo e que lhe é oferecida pela sua própria natureza instável, pelo caráter à primeira vista auto-suficiente das coisas e do mundo, enfim, pela solidariedade negativa que o liga aos outros homens. Nestas condições, como escreve o padre Sofrómo, "só Deus é absoluto. O mal, esse que não tem existência autônoma, não é mais do que a resistência da criatura livre contra a existência eterna - Deus - não pode pois ser absoluto. No estado puro, o mal não existe." Entretanto, convém ter cuidado, julgam outros teólogos ortodoxos, em minimizar-lhe a influência constrangedora. Como o faz notar o padre Sehmemann, "a experiência do mal - o demoníaco não é simplesmente a da ausência do bem, isto é, uma experiência de alienações e de ansiedades existenciais... O ódio não é simplesmente a ausência do amor. Ele é certamente mais, e nós reconhecemos-lhe a presença como um peso quase material que nos esmaga logo que nós odiamos. Num mundo em que os homens civilizados normalmente constituídos 'utilizaram a eletricidade (Alusão a alguns teólogos contemporâneos segundo os quais o homem moderno, "que utiliza a eletricidade," não poderia mais admitir a existência do mal) para exterminar seis milhões de seres humanos, num mundo em que, neste exato momento, mais de dez milhões de homens se amontoam em campos de concentração... num mundo assim a realidade do 'demoníaco' não é um mito" (Alexander Schmemann; op. cit. p. 49).

    Eis por que a tentação do nada inerente ao homem e a todas as coisas, "o mal nunca é um 'problema' para os Padres da Igreja. Não se trata de especular com o mal, trata-se de (o) combater" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 81). Assim pois, enquanto que a vocação do homem é vocação para uma existência homogênea - estar integrado em si mesmo, no mundo, portanto em Deus, - a possibilidade contrária, a má escolha que se oferece ao homem e que o seduz, é a "separação" (a palavra "Diabo" vem da palavra grega "separar, dividir"), a divisão em si mesmo e com outrem, a ruptura da harmonia entre o homem e o mundo, a revolta contra Deus. Comentando a passagem do Evangelho segundo a qual o demônio afirma que o "seu nome é legião, porque somos muitos (Marc. 5:9) comenta um teólogo ortodoxo contemporâneo: "a brusca passagem do singular ao plural, do 'eu' ao 'nós,' revela a ação do mal no mundo: o ser inocente criado por Deus, na sua unidade ainda frágil e inconsciente, quebra-se, atomiza-se em parcelas isoladas e é o inferno" (Ibid. p. 73). Assim, o "inferno é como uma caixa feita de espelhos; não se pode ver aí senão a sua própria imagem multiplicada até ao infinito, e nenhum outro olhar surge a cruzar-se" (Ibid). "O inferno não é outra coisa senão a separação do homem de Deus; a sua autonomia exclui-o do lugar onde Deus está presente e este inferno todos nós o conhecemos verdadeiramente" (Ibid. p. 96).

    No seu orgulho que o impele a erigir-se em deus do mundo, atraído pelo nada e sendo por ele sorvido tanto mais facilmente quanto tenha repelido a presença de Deus, ele torna-se vítima da sua instabilidade de criatura; o homem recusa portanto livremente a vocação que Deus lhe dirige de se tornar plenamente ele próprio, compartilhando cada vez mais intimamente a liberdade, o amor e a comunhão do próprio Deus. As consequências desta recusa, desta "queda," são terríveis. Segundo os Padres da Igreja oriental, a revolta do homem tem por efeito interromper nitidamente o seu movimento para a realização da sua vocação. O homem perde a sua possibilidade de se realizar plenamente "à semelhança" de Deus, o que os Padres exprimem dizendo que "a semelhança desaparece" (Por exemplo Gregório de Nissa: La virginité, PG 46, col. 372 B). É a ruptura da comunhão espontânea com o Inefável, é o aprisionamento do homem nos seus próprios limites. A participação em Deus abria ao homem possibilidades ilimitadas, particularmente a de ultrapassar o seu limite último, a morte. Daqui por diante, a morte torna-se uma certeza irrevogável; "cada vez mais ela desenvolve o seu poder" (Atanásio: De 1'incarnation du Verbe, PG 25, col. 108 A) que desde então se torna "legítimo" (Ibid). Em lugar da vida, o único desfecho da existência humana é, assim, o nada, o absurdo, o desespero. Muito concretamente, a condição humana suporta em todos os aspectos consequências dramáticas que serão outros tantos sofrimentos contrários à verdadeira natureza do homem. "Pecado original, escreve o padre Bulgakoff, significa corrupção geral da natureza humana que se afastou da sua própria norma. A sua primeira consequência é a perda do estado de graça [isto é, de comunhão espontânea com o Inefável - fim de todo o humano]. Daí decorre a corrupção geral da natureza humana, que depois de se ter desviado da vida em Deus, se tornou mortal. A natureza carnal do homem deixou de obedecer à alma; ao contrário, ela começou a predominar indevidamente; a voluptuosidade apoderou-se do homem. Na sua vida espiritual apareceram o egoísmo, o orgulho e a inveja, um verdadeiro conhecimento do bem e do mal, isto é, da luta incessante entre a luz e as trevas. Então a liberdade do homem tornou-se restrita: ele tornou-se cativo da sua carne e das suas paixões" (Serge Bulgakoff, op. cit p. 149).

    O equilíbrio interior da pessoa humana tornou-se gravemente comprometido. Como diz Máximo o Confessor, a integridade da pessoa humana "quebrou-se em pedaços pelo pecado" (Questions à Thalassius, PG 90, col. 25 B). Para os Padres orientais, em vez de evoluir para um todo bem estruturado certamente dinâmico, o homem assemelha-se a um campo de batalha: "A carne conspira contra o espírito" (Clémente de Alexandria: Stromates, PG 9, col. 360) "as paixões apoderam-se da alma por causa da sua alienação na carne e alienam a estreita amizade que ela mantinha com Deus" (Basílio: Traité du Saint Esprit, PG 32, col. 168 B); "a alma está agora submetida à tirania do corpo, preferindo os prazeres da carne" (João Damasceno: La Foi orthodoxe, PG 94, col. 977 BC), Estas passagens sublinham o que a psicanálise redescobriu à sua maneira, isto é, que o homem, "depois da queda," está obcecado pelo sexual, realidade que ele tem muita dificuldade em integrar harmoniosamente na sua personalidade em realização. Como consequência da recusa de Deus," o mal torna-se interior ao homem; ao contrário, é Deus que se torna exterior ao homem. A ordem perverteu-se; o biológico animal aparece estranho à verdadeira natureza do homem; boa em si, a natureza animal, por causa da perversão da hierarquia dos valores, constitui agora uma ameaça permanente de decadência para o homem..." (Paul Evdokimov, op. cit. p. 156) O corpo e as suas funções tendem a reivindicar um lugar independente, o sexo não é mais do que sexo, a gastronomia apenas gastronomia, tendendo assim a comunhão com o outro e com o mundo a ser substituída pelo prazer imediato, a curto prazo, o que parará o homem no seu devir. O homem não pode mais senão capitular perante esta "carne grosseira, mortal e renitente" (Gregório de Nazianzo: Sermon 38, PG 36, col. 324), ou então, o que é perfeitamente inumano, negá-la e refugiar-se no intelectualismo e no "puritanismo."

    Da mesma forma que a dimensão corporal do homem perde a qualidade humana que é chamada a revestir, na integridade da pessoa também a consciência perde a sua lucidez, o poder da vontade fica atingido; é o risco permanente do fracasso diante das exigências da vida, de onde a tentação de fugir do real, o aparecimento dos "complexos." "Fora de Deus, escreve Gregório Palamas (1296-1358), a razão torna-se semelhante ao animal e aos demônios e, afastada da sua natureza, deseja o que lhe é estranho" (Homélie 51 citada por Paul Evdokimov, op. cit, p. 156). O espírito humano está agora hesitante, buscando dolorosamente pôr ordem nos seus próprios impulsos subconscientes e orientá-los para a harmonia interior, do mesmo modo que se esforça, sem sucesso definitivo, imprimir uma aparência de ordem no mundo e nas coisas. "Não há mal algum nas coisas, se não for o seu mau uso que provém da desordem do espírito" (Centuries sur Ia Chariié, pG 90, coÌ. 1017 CD) nota Máximo o Confessor, sublinhando assim que a rejeição do divino - logo, da dimensão integral do homem - conduz à alienação das faculdades de discernimento do homem. Um teólogo ortodoxo contemporâneo descreve em que é que se manifesta esta "doença do espírito," na civilização do século XX: "A civilização evolui e provoca um profundo desequilíbrio do espírito humano, fere ao mesmo tempo pelas suas técnicas e pela superficialidade espantosa da sua filosofia pragmática. O universo torna-se num estaleiro imenso onde tudo se exprime em números e se submete ao princípio único do rendimento e da curiosidade. A angústia diante do anonimato desumano destas empresas que não estão à altura do homem, suscita evasões a um ritmo cada vez mais sacudido, contrastante, em estilo 'atômico.' Quanto mais as necessidades do mundo novo pesam com toda a sua pressão mais a sociedade tende a libertar-se de todos os tabus e o ambiente geral se traduz por uma surda revolta: o mundo moderno será pró ou contra o homem?" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 56) Numa palavra, ao fim e ao cabo, a "pessoa" humana está comprometida, o homem já não é realmente "homem," mas animal inquieto e inteligente, de cérebro entretanto menos eficaz do que uma calculadora eletrônica. É preciso notar, entretanto, que mesmo obscurecida, a razão do homem permanece capaz de verdadeiro discernimento, mas apenas de maneira esporádica, sem garantia de veracidade última. "A razão está limitada e obscurecida, mas não obliterada pelo pecado. O homem inteiramente privado de discernimento deixará de ser homem. Ora, ele serve-se da sua razão tanto para o bem como para o mal. Qualquer mentira, por definição, é consciente de si mesmo, isto é, racional. O homem sabe mais ou menos o que quer e para onde vai... Apesar do obscurecimento do seu espírito, o homem é capaz de procurar a verdade e, por vezes, de a encontrar" (Serge Verkhowsky: Die Lehre vom Menschen in Lichte der ortho doxen Theologie, de uma revista (título e data desconhecidos), p. 323). Gravemente comprometido no seu movimento para o equilíbrio interior e para o justo discernimento das realidades exteriores, o ser humano permanece entretanto sob o apelo de Deus para se tornar plenamente humano.

    Nestas condições, não surpreende que a liberdade do homem sofra também limitações. "A liberdade do homem tornou-se restrita: ele tornou-se escravo da sua natureza, cativo da sua carne e das suas paixões" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 149). A liberdade que, na sua expressão mais profunda é, para os padres orientais, "um falar franco" com Deus, deixa de ser comunhão natural e espontânea com Ele; as relações do homem com o seu fim e a sua origem transcendentes," com "Deus," tornam-se forçadas, artificiais, rígidas. Da mesma forma o homem não é livre em face de si mesmo e do seu passado; ele não está indiferente ("apático" no sentido etimológico do termo) desligado dos seus impulsos instintivos que procuram dominá-lo. No homem "moral," esta ausência de liberdade interior será traída por uma atitude afetada, rígida e, pior, a ausência de humor, no seu semelhante "imoral," por uma vida superficial submetida aos caprichos do momento, sem continuidade nem orientação profundas. Os acontecimentos íntimos do passado de cada um, em lugar de serem outras tantas pedras que servem para a edificação da sua personalidade, correm o risco de serem outras tantas pedras de tropeço, que impedem a livre caminhada para a frente, o livre desabrochar das suas virtualidades. Em lugar de ser ocasião de comunhão e de fraternidade, a coabitação com o outro, numa mesma casa, numa mesma sociedade, num mesmo mundo, torna-se desde então uma servidão tanto mais pesada de suportar quanto os mecanismos sociológicos e econômicos constituem outros tantos determinismos que limitam ainda a liberdade de cada um. Ausência de espontaneidade perante Deus, perda da liberdade para consigo mesmo, no mais profundo de "si," a recusa da vocação limita igualmente a liberdade perante os outros, e encerra o homem na sua solidão. Em lugar de ser "libertado para" a "liberdade," torna-se sinónimo de isolamento em relação a si próprio, aos outros e ao mundo. "A negação do princípio e do fim [Deus 1], ambos transcendentes, torna a liberdade trágica, situa-a fora do perdão, possível no princípio, e da justificação, possível no fim. Entre a maciça existência de um mundo desprovido de sentido, em que todo o valor é factício e sem remédio, e do espírito humano habituado pela exigência da razão, a ruptura é inevitável. Só resta ao homem a liberdade de negar um mundo que nega o homem. O homem está terrivelmente só na sua terrível e absoluta liberdade pela qual sente uma inteira responsabilidade... [e] isso é o fracasso da comunicação: pois que cada um 'por si' tende a transformar o outro 'por si' em 'em si,' a fazer do indivíduo um objecto. No fim, ele corre o risco de se transformar a ele próprio em 'em si,' em se congelar, em ser estático pelas recordações ou pelos projetos. Ou nós tomamos posse do outro ou somos possuídos por ele. A nossa relação com o outro é sempre mentira, e eis por que os outros são para mim o inferno" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 31-32). Esta análise lúcida da situação do homem revoltado contra o Inefável, da pena de um teólogo ortodoxo contemporâneo, dispensa-nos de explicitar todas as conseqüências sociais e econômicas, no interior das sociedades e entre elas, que decorrem da perversão da liberdade na seqüência da recusa da única dimensão que a poderia realizar.

    Todavia, tal como o seu caráter "racional," a liberdade do homem não desaparece completamente; ela permanece, mas já não pode realizar as suas possibilidades construtivas. "Toda esta perversão da verdadeira natureza do homem não era capaz de paralizar e de enfraquecer completamente a liberdade humana. O homem permaneceu homem, um ser livre e espiritual que, ajudado por um auxílio especial de Deus, é capaz de regressar à sua norma primitiva" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 149). Se assim não acontecesse, crêem os Padres e teólogos da Igreja oriental, o homem deixaria de existir. "A liberdade de escolha permanece uma possibilidade para o homem caído, sem dúvida de maneira diminuída. O homem continua a ser consciente da sua liberdade e da sua responsabilidade, e Deus dirige-se hoje a um ser livre e responsável (= capaz de lhe responder)... Um ser sem liberdade é um objeto. Se os homens não fossem livres por pouco que seja, não seriam homens. A dar-se o caso, teríamos que admitir que a humanidade deixou de existir... Ora, nesta circunstância, a sua libertação não seria mais possível. Na ausência de liberdade, não há nem bem nem mal. Ora a tragédia do mal reside precisamente na liberdade. Precisamente porque o mal decorre da liberdade, o Senhor Todo Poderoso, não pode destruí-lo, sob pena de exterminar os próprios pecadores. O homem luta com Deus... frente a frente. Só nesta luta livre ele aceitará ser vencido. Se o homem não fosse senão um objeto, sem liberdade, Deus poderia, sem mais, tirá-lo do abismo" (Serge Verkhowsky, op. cit. p. 322). A liberdade de responder subsiste porque ainda agora Deus chama o homem a responder-lhe livremente.

    Se o homem, numa situação falseada em relação a Deus, está alienado em relação ao seu futuro, à sua verdadeira identidade e a outrem, ele sentirá necessariamente o tempo e o espaço "cósmico" - a natureza no seu devir - como uma realidade ameaçadora que ele cuidará de combater, em vez de os poder assumir e transfigurar. O tempo é agora vivido como "o tempo cíclico traduzido pelos nossos relógios, círculo vicioso dos eternos retornos sem saída. O tempo, encerrado na sua, curva fechada sobre si mesma, provoca a angústia do absurdo das repetições infinitas... Os ponteiros, sempre em movimento, como numa dansa endiabrada, não conduzem a lado nenhum. No plano histórico, é uma linha que se prolonga indefinidamente e que não possui nenhuma razão imanente para parar" (Paul Evdokimov. 'La Prière de 1'Église d'Orient; Mulhouse, 1966, p. 52) O tempo não tem mais sentido; ele parece tanto mais absurdo e vazio quanto o conflito incessante consigo mesmo e com o outro dá a impressão de um sapateado, a bem dizer, absurdo. Em consequência disso, as relações entre o homem e a natureza deixam de ser orgânicas e tornam-se artificiais. O homem não tem mais lugar no mundo criado e sente-se obrigado a substituí-lo por um mundo fabricado em todas as peças pela mão do homem. "O ritmo biológico das civilizações rurais regulado pelo sol cede o seu lugar ao ritmo técnico do urbanismo invasor e maciço. A vida num mundo de fábricas e de laboratórios já não é orgânica mas organizada, e o seu betão armado mata muito rapidamente o sentido da natureza viva. Até a matéria mais simples dos sacramentos: a água, o pão, a vida, o fogo desaparece do uso natural, ou então falsifica-se ao ponto de não ser mais a representação familiar e conhecida do cosmos... O simbolismo moderno refugia-se nas insígnias e nas siglas. As palavras são desidratadas e os objetos mais familiares parecem perder o sentido inicial" (Paul Evdokimov: Les Áges de Ia Vie spirituelle Paris, 1964, p. 56-57). O conjunto da criação humana, indo desde as realidades artísticas e técnicas até à elaboração da linguagem e da representação científica, está assim submetido a uma hipoteca que impelirá o homem tanto a identificar-se sem mais com o objeto da sua criação - o técnico viverá unicamente para a sua técnica, etc. - como, se ele for capaz de abstrair disso, a desesperar perante a ausência do fim profundo da sua própria criação. Em vez de serem colaboração com o ato criador de Deus, serem enfim louvor materializado, as realizações técnicas, económicas, artísticas e sociais do homem evoluem em vaso fechado, estando nelas próprias o seu próprio objetivo - situação que é a definição mesma do não sentido. Estando centrada sobre o seu próprio devir, a realidade não se inscreve em nenhum devir profundo, o que, tirando ao tempo o seu verdadeiro dinamismo, o faz parecer como que uma repetição de instantes que nada vem orientar. Certo é que o homem permanece criador, "rei da criação," mas não mais, sabendo, em última análise, em nome de quem e em vista de que é que ele exerce esta responsabilidade.

    O que importa, pois, para os crentes ortodoxos, bem mais do que a questão, ao fim de contas jurídica, da responsabilidade que tem cada homem desta situação desastrosa, é o estado de doença, de "corrupção" na qual se encontra o conjunto da humanidade na sequência da revolta de todos e de cada um, doença e corrupção que, pelo jogo das influências biológicas, psicológicas e sociológicas que os indivíduos exercem uns sobre os outros, se transmitem sempre novamente de região a região e de geração em geração. Contrariamente ao Ocidente cristão, para o qual a necessidade do perdão estará em primeiro plano, o Oriente cristão, integrando nele o perdão que lhe está ligado, insistirá na necessidade de cura, portanto sobre a necessidade de relançar o movimento - interrompido - da hamanidade para a realização da sua vocação. Interrompendo o dinamismo para a realização de si mesmo em Deus, para a verdadeira liberdade, a integridade da sua pessoa, a vida comunitária construtiva e a criação de um mundo humano aberto ao Inefável, o homem, na sua revolta, fechou-se numa situação da qual não pode mais sair só pelos seus próprios meios. De certo, conforme já vimos, a vocação é-lhe sempre dirigida; os Padres orientais indicam-na dizendo que o homem permanece "à imagem de Deus," mesmo que ela esteja "obscurecida como o ferro enegrecido pela ferrugem" (Gregório de Nissa: La virginité, PG 46, Col. 372 B). O homem permanece um ser pessoal, racional, livre, sequioso de vida comunitária e de realizações práticas, sem o que deixaria de ser homem. "O pecado aparece como uma deformação, um obscurecimento, uma doença na imagem de Deus, mas não rouba ao homem a sua dignidade original de ser à imagem de Deus" (Ernst Benz: Geist und Leben der Ostkirche. Hamburgo, 1957, p. 21). Porém, tendo o homem interrompido o seu dinamismo para a sua verdadeira identidade, só possível em Deus, "depois da queda, a imagem (de Deusi na sua realidade própria permanece sem alteração, mas na sua acção, está reduzida ao silêncio ontológico. A imagem tornou-se assim ineficaz pela destruição de qualquer capacidade de "semelhança" tornada radicalmente inacessível às forças... do homem" (Paul Evdokimov: L'Orthodoxie. Neuchâtel-Paris, 1959, p. 84-85). Apanhada na solidariedade do fracasso perante a opção que poderia ser a sua - aceitar o seu verdadeiro devir humano aceitando o dinamismo divino que se realiza nela - a humanidade "caída abaixo do seu ser (Paul Evdokimov: Les Âges de Ia Vie spirituelle, Paris, 1964, p. 61) está encerrada na sua própria decadência, na sua ansiedade, no seu orgulho, na sua instabilidade, no seu frenesi estéril, nas suas guerras e nas suas fomes, nos seus conflitos pessoais e sociais, no seu desespero perante o absurdo, nas suas neuroses, nas suas doenças, na sua morte. Mas, e é presentemente a única esperança para o homem de se tornar ainda assim ele mesmo "o poder de Deus é capaz de inventar uma esperança onde não há mais esperança e de abrir um caminho no impossível" (Gregório de Nissa: La création de I'homme; PG 44, col. 128 B).

    O homem é chamado a partilhar a própria vida de Deus: eis a sua vocação última. É nesta participação que ele realiza a sua verdadeira identidade: ser uma "pessoa" livre, equilibrada dinamicamente, vivendo em comunidade no amor, e criador do mundo, logo, adorador do Inefável. Sorvido pelo nada, ele recusa esta vocação e por isso mesmo compromete, pessoalmente e colectivamente, a sua evolução e a sua vida profunda.

    Como o resume admiravelmente Vladimiro Lossky: "O homem, criado 'à imagem de Deus' é a pessoa, capaz de manifestar Deus na medida em que a sua natureza se deixa penetrar pela graça deificante. Também a imagem - inalienável - pode tornar-se semelhança ou dessemelhança até aos últimos limites: o da união com Deus, quando o homem 'deificado' mostra em si, pela graça, o que Deus é por natureza... - ou então o da decadência extrema... o 'lugar da dessemelhança,' situado no abismo tenebroso do 'inferno.' Entre estes dois limites o destino pessoal do homem pode peregrinar numa história da salvação, realizada em esperança por cada um na Imagem encarnada [Cristo] de um Deus que quis criar o homem à sua imagem" (Vladimir Lossky, op. cit. p. 137). A vocação do homem a partilhar a vida de Deus e o fracasso em realiza-la chama a penetração íntima do divino no humano, a "Encarnação de Deus" em Jesus de Nazaré e, pelo Espírito Santo, em cada crente.

     

    Capitulo quarto

    A investida de Deus

    Cristo

    Tudo parece comprometido, a humanidade, embora com a promessa de realização de um destino maravilhoso, parece corromper-se na ambivalência explosiva do seu fracasso, buscando desesperadamente, através das suas filosofias, das suas religiões e das suas técnicas, criar pelos seus próprios meios a condição da sua felicidade sempre adiada para mais tarde. Ora - e é esse o próprio coração da fé ortodoxa - a realidade última e estável, definitiva e dinâmica, a realidade inefável donde emanam todas as coisas e para a qual tudo está orientado, mesmo sem o saberem aqueles que não acreditam, esta realidade - "Deus" - manifestou-se não como uma quimera longínqua e inacessível mas como uma proximidade absoluta, bem mais próxima do homem do que este de si mesmo: ela manifestou-se através da vida e da morte do homem Jesus de Nazaré, que viveu uma verdadeira vida de homem, de "próximo para os seus próximos," há uns dois mil anos na Palestina.

    Nada poderia fazer-nos compreender melhor na sua totalidade o significado do mistério da Encarnação do Inefável no homem Jesus de Nazaré, do que a contemplação do ícone que pinta as suas repercussões últimas sobre o destino da humanidade, o ícone da "descida de Jesus aos infernos." Todos os grandes temas da meditação oriental sobre este fato, para falar com propriedade, inacreditável - é preciso abrir-se à "quarta dimensão" para lhe captar o alcance tão atual para cada um - se encontram reunidos sinteticamente nesta imagem. Se o ícone de Natal, 'que já comentamos, sublinha que o divino se uniu efetivamente ao humano, o ícone agora referido indica as consequências desse fato para o homem: a sua reabilitação, a possibilidade oferecida a todos de retomarem o caminho depois da interrupção da queda. Logo à primeira vista, o ícone mostra-nos que este mistério jamais poderá ser compreendido só pela razão, mas que, representado sob uma forma visual simbólica, se dirige à totalidade do ser humano, tanto à sua razão como às suas intuições mais profundas, à sua consciência como ao seu subconsciente. Querer começar por discorrer sobre o "dogma da Encarnação de Cristo" constitui, para os ortodoxos, a melhor maneira de passar ao lado do seu significado existencial. É preciso começar por fazer silêncio, para contemplar o mistério e, em seguida, tendo-o deixado agir sobre as suas faculdades mais profundas, sobre o nosso ser "à imagem de Deus," tendo-o deixado, por assim dizer, despertar em nós o homem chamado por Deus, e só em seguida se lhe deve dar uma formulação verbal, que será sempre condicionada pelo meio cultural e social dos crentes, por isso mesmo sempre provisória.

    O "acontecimento" pintado neste ícone é, à primeira vista, a descida de Cristo aos infernos, no Sábado Santo, no dia a seguir à Sexta-Feira Santa, dia da crucifixão, na véspera da Páscoa, dia da Ressurreição. Mas, por detrás deste significado por assim dizer anedótico, vê-se aparecer o conjunto da Encarnação, o que não surpreende quando se sabe que a visão ortodoxa homogênea recorre facilmente, na arte iconográfica, à descrição de um acontecimento à primeira vista particular, para de fato revelar o significado do todo. O mandala, símbolo da plenitude, no qual Cristo' está incluído e que, luminoso para a periferia se torna sombrio no centro que representa o mistério de Deus - a "Treva Divina" indica que no homem Jesus de Nazaré, a Plenitude do Inefável partilhou efetivamente a vida humana, a vida de um homem concreto, histórico. Esta identificação com o homem é total, vai até à participação nos sofrimentos humanos mais... desumanos: ela faz-se através da cruz representada 'aos pés de Cristo. Mas, o fato de Jesus estar em cima dela e de a pisar literalmente a seus pés, sublinha que os sofrimentos e a morte humanos, Deus os vive plenamente e os assume para os transformar, para os transfigurar, e dar-lhes o último significado: ser uma passagem para a realização do homem verdadeiro, do homem que participa na harmonia, na paz, na alegria, no amor do próprio Deus; numa palavra, sofrimento e a morte, necessários porque reais no mundo da criação e da revolta, podem tornar-se na antecâmara da vida total, da "ressurreição." Cristo é representado aqui como aquele em que, verdadeiro homem, Deus mesmo operou a passagem para a humanidade chegada ao termo da sua vocação original. Também as vestes são brancas, desta brancura luminosa que simboliza a luz de Deus iluminando, por assim dizer, o interior do homem que entrou na paz e na vida reais. Mas eis que este dinamismo divino, realizando-se através de Cristo, chega a Adão - o homem - que Jesus segura pela mão, literalmente para o levantar, fazendo dele um homem em pé - notar-se-á que ele sai efetivamente de um túmulo. Com ele, Eva beneficia da mesma regeneração, toda a humanidade, sob a sua forma sexuada, portanto comunitária, estando desta forma relançada sobre o caminho do seu devir. A situação da humanidade era verdadeiramente desesperada e absurda - a cena desenrola-se na mesma caverna obscura em que o ícone do Natal situa o nascimento de Cristo. Quanto aos personagens que rodeiam o grupo central, representam, à esquerda, os reis israelitas David e Salomão e, em cima, João Baptista o precursor de Cristo; à direita, distinguem-se, entre um grupo de discípulos, os apóstolos Pedro e Paulo. Estes dois grupos de personagens indicam, por um lado, que a encarnação do divino foi precedida, na história universal dos povos e das religiões, por uma lenta preparação dos espíritos pelo próprio Deus, principalmente através da sabedoria e da fé monoteísta do povo de Israel e, por outro, que este acontecimento inaudito iria ter efeitos visíveis sobre esta mesma história - a fundação da Igreja, símbolo vivo da vida humana novamente possível. Notar-se-á, enfim, que o conjunto da composição indo dos representantes do Antigo Testamento, à esquerda, passando pelas montanhas - presença do cosmos - até aos apóstolos do Novo Testamento, à direita, inscreve-se num círculo do qual Cristo é o centro. O círculo simboliza a comunhão restabelecida entre os homens e as criaturas pela presença de Deus encarnado, "comunhão dos santos" realizada para além do tempo e do espaço, e prefigurando a reconciliação de toda a humanidade entre si, até entre o homem e a natureza animada e inanimada.

    Assim, a Igreja oriental inscreve-se no seguimento da Igreja primitiva que reconheceu em Jesus de Nazaré, nascido e morto no princípio da nossa era, a manifestação do divino no homem concreto. Já ao nível dos Evangelhos, este mistério é descrito de maneiras diversas mas complementares. Se, para o Evangelho de Marcos, Jesus aparece antes de tudo como um homem que receberá, no decurso da sua vida, a plenitude da presença de Deus - o Espírito Santo, - para o Evangelho de João, a própria origem de Jesus é logo de natureza divina, ele é "o Verbo de Deus feito carne (Jo. 1:14). É sobre a descrição que João faz do mistério de Cristo que a Igreja ortodoxa, na sequência da escola teológica de Alexandria, fundamenta a sua meditação do papel insubstituível da vida de Cristo para a evolução e o futuro da humanidade. Os concílios dos primeiros séculos, refletindo embora as tensões entre as numerosas interpretações possíveis, muitas vezes diferentes porque o espírito humano não chega a descrever adequadamente o mistério de Deus, acabaram por chegar, entretanto, a formulações dogmáticas que, pelo seu próprio catáter paradoxal, deviam garantir a fé da Igreja contra toda a doutrina que abertamente ou implicitamente negasse a realidade da Encarnação de Deus. Assim, o Concílio de Calcedónia (451) acabará por circunscrever os limites do mistério sem poder definir, primeiro, que Cristo é verdadeiramente Deus, segundo, que ele é também verdadeiramente homem, enfim, que estas duas realidades não existiram nele de forma separada, mas que uma e outra se manifestaram através da vida da única e mesma pessoa de Jesus de Nazaré. Não é possível abordar aqui a discussão da terminologia de origem grega - "natureza," "hipóstase," etc, - utilizada pela Igreja dos primeiros séculos para analizar este mistério, terminologia que apresenta para muitos dos nossos contemporâneos sérios inconvenientes pelo seu caráter ontológico. Basta-nos verificar que a Igreja oriental viveu séculos de debates muitas vezes dramáticos a este respeito, para impedir que seja obscurecido ou negado o fato a seus olhos fundamental para a revelação evangélica: Deus tornou-se homem. É esta realidade fundamental que se esforçam por descrever os termos que designam Jesus de Nazaré como "Filho de Deus," "Verbo de Deus," "Deus encarnado," etc. Em grande parte, além disso, esta formulação não resultou de discussões intelectuais, mas da piedade popular, dos textos litúrgicos poéticos através dos quais os crentes exprimiram a sua adoração da presença divina manifestada como uma proximidade infinita no humano.

    É na liturgia da Páscoa que ressalta esta exclamação que não deve ser analisada racionalmente mas, antes de mais, ser vivida na oração: "Por amor dos homens, o Rei do céu apareceu sobre a terra e viveu uma vida de homem. Encarnou através de uma virgem da qual nasceu assumindo a carne humana. O Filho é único se bem que divino e humano, tendo vivido como uma só e mesma pessoa. Eis por que, reconhecendo nele o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem, nós confessamos Cristo, nosso Deus" (Citado por Emst Benz: Geist und Leben der Ostkirche - Hamburgo, 1957, p. 54). Assim, como diz o padre Bulgakoff, "a fé em Cristo, como filho de Deus, não é para a Ortodoxia uma doutrina cristológica (= sobre Cristo) mas a própria vida. Esta fé penetra a vida de parte a parte. Cada pessoa lança-se aos pés do Salvador com o grito alegre da fé 'meu Senhor e meu Deus,' cada pessoa nasce no nascimento dele, sofre com a sua paixão na cruz, conressuscita com Ele, espera com temor o seu regresso glorioso. Sem esta fé, não há nada de cristianismo. E verdadeiramente os cristãos sem Cristo, querendo tornar científica a religião, alcançaram apenas um resultado: tornaram o cristianismo, que conquista pelo fogo, fastidioso e medíocre. O cristianismo é a fé em Cristo. Filho de Deus, Nosso Senhor, Salvador e Redentor" (Serge Bulgakoff: L'Église Orthodoxe; Paris, 1932, p. 142-143).

    Se a vida de Jesus é de um alcance de tal forma vital para o crente ortodoxo, é porque ela é a confirmação de que Deus efetivamente entrou no homem, e não somente no homem Jesus de Nazaré, e que assim, do interior, a humanidade foi reconduzida ao caminho para a sua realização. Cristo "recapitula" (O termo é de Ireneu de Lião (séc. II): Contre les héretiques, PG 7) todo o destino do homem e, por esse fato, cumpre-o já em potência. "Em Deus, a natureza divina e a natureza humana começaram a entroncar-se de tal sorte que a comunhão com a natureza divina permite à natureza humana tornar-se divina, não só no próprio Jesus, mas também em todos aqueles que acreditam nele e vivem uma vida conforme sua doutrina" (Contra Célsio 3/28 citado pelo autor em: La doctrine de Ia déifecation de 1'homme d'après les Pères grecs en géneral et Grégoire Palamas en particulier. Tese policopiada, Genebra, 1965, p. 25). O que Orígenes (185-254) afirma neste passo será retomado pelo conjunto do pensamento cristão oriental: o simples fato do "contato" em Jesus, misterioso mas real, do Inefável com o humano, relança o dinamismo interrompido pela revolta do homem. "O Filho único tornou-se um de nós, afirma Cirilo de Alexandria, isto é, um simples homem, a fim de livrar o nosso corpo terrestre da corrupção... deste modo, ele é, por assim dizer, a raiz e as primícias daqueles que serão restaurados (pela presença do Inefável) numa vida nova, na imortalidade do corpo e numa completa segurança em Deus" (De l'Jncarnation du Fils unique, PG 75, col. 1213). É verdadeiramente a união de Deus com o homem. Esta união é de tal modo íntima que o Inefável se torna a própria qualidade do humano, que a dimensão vertical e o futuro, para o qual o homem está orientado pelo fato da sua vocação desde as origens, se inscrevem desde então na natureza do homem: "Cristo, ensina Gregório de Nissa, misturou-se com a nossa natureza, a fim de que, graças à sua mistura com o divino, a nossa natureza se tornasse divina" (Contre Apollinarius, PG 45, col. 65 D). Embora não se tendo revoltado contra Deus, não tendo "pecado," realizando assim o destino profundo do homem, Cristo - e o Inefável através dele - assumiu, para lhe dar a sua verdadeira realidade e significado, toda a existência humana e cósmica. Como dirá João Damasceno, "é todo inteiro que o Todo [Deus] me assume e que ele se une como totalidade a toda a realidade, a fim de salvar todas as coisas, porque o que não é assumido não é sarado" (Des deux volontés, PG 94, col. 1005. Ver também Gregório de Nazianzo: Epitre 101, PG 37, col. 181 e 184). Para o crente ortodoxo, toda a sede, toda a fome, todo o desejo de vida, todo o movimento de paz e de amor para a verdadeira identidade do humano encontra em Cristo efetivamente a sua satisfação, o seu ponto de fuga e de integração. "Em Cristo, nós atingimos o termo de toda a 'religião,' porque ele é a resposta para toda a religião, a toda a fome humana de 'Deus,' nele a vida perdida pelo homem - que apenas podia ser simbolizada e desejada pela religião foi restituída ao homem" (Alexander Schmemann: For the Life of the World. Nova'lorque, 1963, p. 9). A encarnação de Deus em Cristo não acrescenta à humanidade um "extra divino," sem o qual, no fim de contas, se poderia passar - erro no qual a "religião organizada" parece cair muitas vezes, - mas ela confere à vida humana o seu verdadeiro significado, constitui o sinal eficaz de que, apesar da revolta do homem, apesar da sua recusa em se realizar plenamente, a vocação humana já foi efetivamente e realmente vivida até ao fim em e por Jesus de Nazaré. "O Filho de Deus, afirma João Damasceno, tornou-se homem, a fim de dar ao homem o porque da sua criação... Depois de nos ter criado à sua imagem e permitido participar no seu espírito, dons que nós não soubemos conservar, Deus participa Ele mesmo da fraqueza e da pobreza da nossa humanidade a fim de nos tornar íntegros e... nos permitir assim participar na sua divindade" (La Foi orthodoxe, PG 94, col. 1008 e 1137). O movimento interrompido pela "queda" é assim relançado pelo próprio Deus, onde o homem empedernido na prisão da sua recusa, já não era capaz de se libertar sozinho. É interessante notar entretanto que, para alguns Padres orientais, entre os quais Máximo, o Confessor, parece que Deus se teria reunido ao homem por uma encarnação histórica, mesmo que este não se tivesse revoltado contra a sua vocação. Isto acentua ainda até que ponto, para a Igreja ortodoxa, a comunhão com Deus faz parte da natureza, do destino concreto do homem, seja ele pecador ou não. Para ilustrar o que acaba de ser dito, eis alguns extratos do opúsculo Da Encarnação do Verbo, de Atanásio de Alexandria, teólogo oriental do século IV, ao qual, ainda que ele se tenha expressado numa terminologia corrente na sua época, a Igreja ortodoxa não deixará de se referir para meditar o mistério da encarnação.

    O Verbo de Deus incorporal, incorruptível, imaterial, vem para as nossas regiões, se bem que ele antes não andasse longe, pois não deixou nenhuma parte da criação vazia dele, e encheu tudo, pois que está unido ao Pai. Mas vem por condescendência, por causa do seu amor para connosco, e manifesta-se. Vendo que os seres racionais se perdem e que a corrupção da morte reina sobre eles; vendo que a ameaça lançada por Deus contra a transgressão guarda nesta corrupção toda a sua força contra nós, e que seria absurdo que esta lei fosse violada antes de ser cumprida; vendo que não convinha que as obras de que ele era autor fossem destruídas; vendo que a maldade dos homens se tornava excessiva e que, pouco a pouco, eles a aumentavam contra si próprios e a tornavam intolerável; vendo que todos os homens estavam submetidos à morte, teve compaixão da nossa raça e fez-se misericordioso para com a nossa fraqueza; ele condescendeu com a nossa corrupção e não suportou que a morte dominasse sobre nós, para que a sua criatura não perecesse e para que a obra realizada por seu Pai ao criar homens não fosse inútil. Pois ele não quis simplesmente estar num corpo, não quis somente mostrar-se. Pois que, se tivesse querido somente mostrar-se, teria podido realizar esta teofania num ser mais poderoso do que o homem. Ele toma portanto o nosso corpo, e não se contenta em tomá-lo, mas de uma virgem sem falta nem mancha, que não conhecesse homem, ele toma um corpo puro e verdadeiramente estranho a qualquer união humana. Sendo todo-poderoso e criador do universo, nesta virgem ele construiu para si próprio este corpo como um templo, apropria-se dele como de um instrumento, fazendo-se conhecer e habitando nele. E, assim, ele toma de nós uma natureza semelhante à nossa, e como todos estamos submetidos à corrupção e à morte, por todos, ele entrega o seu corpo à morte, apresentando-o ao Pai, e fazendo isto por amor. Assim, pois que todos morrem nele, a lei da corrupção proclamada contra os homens será quebrada, depois de ter exercido todo o seu poder sobre o corpo do Senhor, e não tendo mais, desde então, que castigar os homens que tinham regressado à corrupção, vivifica-os ligando-os à morte, apropriando-se de um corpo e, pela graça da ressurreição, faz desaparecer a morte para longe deles, como uma palha no fogo.

    O Verbo via, pois, que a corrupção dos homens não podia ser de todo destruída senão pela morte. Mas não era possível que o Verbo morresse sendo imortal e filho do Pai; toma também para si um corpo capaz de morrer, afim de que, participando no Verbo que está acima de tudo, este corpo seja capaz de morrer por todos e que, graças ao Verbo que habita nele, permanece incorruptível, e de futuro faça cessar em todos a corrupção pela graça da ressurreição. Assim como um sacrifício e uma vítima sem mancha alguma, ele oferece à morte este corpo que tomou para si, e logo faz desaparecer a morte em todos os seus semelhantes pela oferenda de uma vítima que se lhes assemelha. É justo que o Verbo de Deus, que é superior a todos, oferecendo o seu templo e o instrumento do seu corpo em resgate por todos, pague a nossa dívida na sua morte. Assim, unido a todos os homens por um corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente revestir todos os homens de incorruptibilidade e prometer-lhes a ressurreição. E a própria corrupção da morte não mais tem poder contra os homens, por causa do Verbo que habita entre eles num corpo semelhante ao deles. Quando um grande rei entra numa grande cidade e habita numa das suas casas, esta cidade sente-se extremamente honrada, de futuro nem inimigos nem salteadores marcharão mais sobre ela para a danificar, e julgam-na digna de todos os cuidados por causa do rei que habita numa só das suas casas. O mesmo se passa com o rei do universo: quando veio à nossa terra e habitou num corpo semelhante ao nosso, cessou qualquer ação dos inimigos contra os homens, desapareceu a corrupção da morte, que durante tanto tempo os molestava. O género humano teria desaparecido completamente se o Filho de Deus, senhor do Universo e Salvador não tivesse vindo para pôr termo à morte.

    Assim pois, uma vez que os homens se tornaram insensatos e que a intrujice dos demônios espalhava por toda a parte a sua sombra e ocultava o conhecimento do verdadeiro Deus, que era preciso que Deus fizesse? Manter silêncio perante uma tal situação e deixar os homens, enganados pelos demônios, ignorarem Deus? Mas então para que serviu criar desde o princípio o homem à imagem de Deus? Era preciso muito simplesmente criá-lo sem razão, ou, então, uma vez criado racional, não o deixar viver a vida dos animais irracionais. Para quê então ainda dar-lhe desde o princípio a noção de Deus? Se agora ele já não é digno de a receber não convinha ter-lha dado desde o principio. Que utilidade para Deus criador e que glória para ele, se os homens que ele criou não o adoram, mas pensam que foram feitos por outros que não ele? Foi, portanto, para outros e não para si mesmo que ele os criou. Além disso, um rei que não passa de um homem, não deixa as cidades que fundou entregarem-se a outro e tornarem-se escravas dele: mas adverte os seus súbditos por cartas, envia-lhes mensagens pelos amigos e, se necessário, vai ele em pessoa para os comover com a sua presença, e isto unicamente para que elas não sirvam outro senhor e para que o seu trabalho não tenha sido inútil. Com muito mais forte razão. não terá Deus compaixão da sua criatura, para não a deixar errar longe dele e servir demônios que não existem? E isto tanto mais quanto este erro é para os homens causa de ruína e de perdição e não convêm que pereça aquele que uma vez participou da imagem de Deus. Que era preciso que Deus fizesse? Sim, que precisaria ele de fazer, senão renovar aquilo que neles era ainda imagem de Deus, para que, por ela, os homens pudessem ainda conhecer a Deus'' E como podia isto fazer-se, senão pela presença da imagem do próprio Deus, nosso salvador Jesus Cristo? Porque isto não podia ser feito por homens, uma vez que eles também tinham sido criados à imagem; pelos anjos também não, uma vez que eles não são imagens. Assim, veio o próprio Verbo de Deus para que, sendo a imagem do Pai, possa recriar o homem segundo a imagem. De mais, isto não se poderia fazer sem a destruição da morte e da corrupção; também convinha que tomasse um corpo mortal para poder destruir nele a morte, e renovar os homens segundo a imagem. Para isso ninguém mais era preciso senão a imagem do Pai.

    Quando uma figura traçada sobre a madeira foi apagada por manchas vindas do exterior, para que se possa renovar esta imagem sobre a mesma matéria, é necessária a presença daquele cujos traços estão representados. Por causa desta figura não se rejeita a matéria sobre a qual ela foi traçada mas forma-se de novo nela a imagem. Da mesma forma, o Filho santíssimo do Pai, sendo a imagem do Pai, veio aos nossos domínios, para renovar o homem que tinha sido feito segundo ele e, como estava perdido, para o reencontrar perdoando-lhe os pecados, como diz a Escritura: "Eu vim para procurar e salvar o que estava perdido" ( Luc.19) (Atanásio de Alexandria: Sur l'Jncarnation du Verbe. Tradução de Th. Camelot, O. P.; Paris, 1947, p. 221-224 e 230-233). Dizia também aos judeus: "Se alguém não renascer" (Jo. 3:5); ele não se referia a um nascimento da mulher, como pensavam os judeus, mas ao renascimento e à recriação da alma segundo a imagem. E uma vez que a loucura da idolatria e da impiedade possuíam a terra, e que o conhecimento de Deus estava escondido, a quem viria ele ensinar na terra o conhecimento do Pai? A um homem, dir-se-á. Mas não era possível aos homens irem por toda a terra que está debaixo do sol, não tinham naturalmente a força capaz de os levar a todo o lado, nem o poder de os fazerem acreditar, não eram capazes de se oporem por si mesmos aos enganos e imaginações dos demônios. Uma vez que todos estavam tocados e perturbados na sua alma pelos enganos diabólicos e pela vaidade dos ídolos, como teriam eles podido fazer mudar a alma e o espírito dos homens, quando nem sequer eles os podiam ver? Como converter a quem não se vê? Dir-se-á talvez que a criação bastava. Mas se a criação tivesse bastado, não teria havido tantos males. A criação existia; e contudo os homens não se envolviam menos nos erros a respeito de Deus. Ainda uma vez mais, de que haveria necessidade senão do Deus Verbo que vê a alma e o espírito, que move todos os seres da criação e por eles torna conhecido o seu Pai? A Ele que pela sua providência própria e pela ordem que faz reinar no universo faz conhecer o Pai, pertencia renovar esta doutrina. Como se faria isso: Dir-se-á talvez que era possível fazê-lo pelo mesmo meio, mostrando de novo Deus pelas obras da criação. Mas isso ainda não era seguro. Mas não, porque os homens já tinham negligenciado este meio: mantinham os olhos virados não para o alto, mas para baixo. Assim, querendo salvar o homem, convinha que ele viesse ao homem, tomando um corpo semelhante ao dele, e agindo por meio de coisas desta terra, quero dizer pelas obras do seu corpo. Desta sorte, os que não tivessem querido reconhecê-lo na sua providência e no seu domínio universais reconhecê-lo-iam nas suas obras feitas pelo corpo, o Verbo de Deus que está no corpo e, por ele, o Pai.

    Notar-se-á nestes textos o papel na realização da Encarnação que Atanásio atribui a Maria, a mãe de Jesus, "uma virgem sem falta nem mancha que não conhecesse homem... um corpo puro e verdadeiramente estranho a qualquer união humana" (Ibid. p. 222). Esta crença na virgindade de Maria, que será a da Igreja oriental até aos nossos dias, assinala de fato uma intuição mais importante do que a constatação simples de um fato biológico: a disponibilidade do homem, através de Maria, à invasão de Deus em Cristo. "Na pessoa da Virgem, a humanidade deu o seu consentimento a que o Verbo se fizesse carne e viesse habitar entre os homens, pois, segundo o adágio patrístico, "se a vontade divina foi única a criar o homem, ela não pode salvá-lo sem o concurso da vontade humana." A tragédia da liberdade resolve-se pelas palavras "eis a serva do Senhor" (Vladimir Lossky: Théologie mystique de l'Église d'Orient. Paris, 1944, p. 137). O consentimento de Maria indica que, tendo Deus criado o homem livre, a liberdade humana, ainda que ela esteja na origem da revolta, tem de ser condição para a invasão humanizante de Deus. O padre Bulgakoff di-lo explicitamente: "O homem permaneceu homem, um ser livre e espiritual que, ajudado por um auxílio especial de Deus, é capaz de retomar a sua norma primitiva. O caminho desta ascensão já está aberto entre os homens: o cume desta ascensão é a Virgem Maria que fez resplandecer a santidade humana suprema e que atestou que a humanidade, mesmo em estado de decadência causado pelo pecado, guardou a sua verdadeira natureza capaz e digna de [participação de Deus] capaz e digna da Encarnação" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 149) "Maria não é simplesmente o instrumento, mas a condição direta e positiva da Encarnação, o seu aspecto humano; Cristo não podia encarnar fazendo violência à natureza humana, mecanicamente" (Ibid. p. 165). Compreender-se-á, pois, a veneração dos fiéis ortodoxos pela "mãe de Deus" em quem vêem o "nosso protótipo glorificado" (Nicolas Arseniev: La Piété Russe. Neuchâtel, 163) aquela que "cumpriu a feminilidade da criação... e toda a maternidade porque ela é a realização do amor na obediência e na disponibilidade para com Deus" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 61 e 64). Mas, mesmo quando a própria piedade popular russa e grega não o faz sempre aparecer abertamente, a veneração de Maria estará sempre associada à de Cristo, a irrupção do amor de Deus, certamente através da sua disponibilidade, permanecerá o fato central. Por esta razão, o Oriente cristão, contrariamente à Igreja latina, não promulgou dogmas mariológicos oficiais (Imaculada Conceição ou Assunção). A seus olhos, em Maria aparece aquilo de que cada homem é chamado a tomar consciência: "Ela aceitou a única verdadeira natureza de toda a criatura e de toda a criação, a saber, a de descobrir o significado, e por isso a realização da sua vida em Deus" (Ibid. p. 61).

    Em Cristo, o Inefável faz realmente a experiência da vida humana para lhe conferir assim a verdadeira qualidade, e isto até aos seus limites e ao objeto da angústia de todo o homem: o sofrimento e a morte. Isto significa a importância, tanto para a fé ortodoxa como para a dos crentes ocidentais, da cruz do Gólgota sobre a qual Jesus de Nazaré foi pregado numa certa sexta-feira provavelmente do ano 33. Muitas interpretações deste acontecimento vividas, na adoração, pelos fiéis ortodoxos, nomeadamente no decorrer dos ofícios de Sexta-Feira Santa. À partida, há, e muito simplesmente, o sofrimento de Cristo, - o sofrimento de Deus! - por se ver traído pelos homens a quem testemunhou tanto amor. "Meu povo, que te fiz eu? Em que te contristei? Eu dei vista aos teus cegos, limpei os teus leprosos, fiz andar o homem paralítico. Meu povo, que te fiz eu? E que me deste tu em troca? Pelo maná, o fel; pela água, o vinagre; em lugar de me amar, cravaste-me na cruz" (E. Mercier e G. Bainbridge, La Prière des Églises de Rite byzantin - " Les fêtes fixes", vol. II/1 Chevetogne, 1953, p. 179). Além disso, é sobre a cruz que resplandece no grande dia até onde vai o amor de Deus, isto é, o seu desejo de ver o homem viver uma existência verdadeiramente humana. É sobre a cruz - sinal espantoso do amor de Deus e da sua recusa pelo homem - que aparece plenamente que "Deus foi quem amou primeiro" (Paul Evdokimov: Les Áges de Ia lie spirituelle. Paris, 1964, p. 45) e que, por esta razão, "todo o grande amor é sempre amor crucificado... na sua espera de uma [resposta] de uma imensidade igual, o amor não pode senão sofrer e ser sacrifício puro até à morte e descida aos infernos" (Ibid). O acontecimento é, a bem dizer, escandaloso, incompreensível: o Inefável, a origem e o fim de todas as coisas, assume efetivamente o sofrimento e a morte do homem, o seu afastamento de Deus, as suas dúvidas, a sua solidão e a sua angústia. "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" exclama Cristo crucificado, e segundo o ofício ortodoxo da paixão, o ladrão, crucificado ao lado de Jesus, "vendo o senhor da vida pendente na cruz, exclamou:" "Se não fosse ele o Deus encarnado, Aquele que assim está crucificado connosco, o Sol não teria escondido os seus raios e a terra aterrorizada não teria estremecido. Mas vós que envolveis todas as coisas, lembrai-vos de mim, Senhor, no vosso reino" (E. Mercier e G. Bainbridge, op. cit. p. 208). O acontecimento é de ordem cósmica porque, no seu amor, o Ser reentrou no nada, a vida na morte, a certeza na dúvida, a plenitude no sofrimento, e assim o homem foi atingido no mais profundo da sua queda e da sua fraqueza.

    Para a ortodoxia, meditando este mistério através da linguagem mítica, é pois pelo seu "contato" com as "forças" do nada, da morte, do mal, que Deus, fonte e fim de toda a vida, "alcançou a vitória," corrigiu a corrida desenfreada da humanidade para o abismo. "Sobre a vossa cruz, Senhor, vós rasgastes a sentença de acusação lavrada contra nós; contado entre os mortos, acorrentastes o tirano que reinava sobre eles..." Conforme nota Cirilo de Alexandria: "O Verbo de Deus fez-se carne e habitava entre nós unicamente para sofrer a morte da carne e triunfar por ela sobre os principados e as potestades... para livrar da corrupção, tirar por meio dela igualmente o pecado que nos tiraniza, tornar também inoperante a antiga maldição que a natureza humana sofreu em Adão" (Commentaire de 1'épitre aux Romains, PG 74, col. 781 D). Sem dúvida que a Igreja oriental conhece também as interpretações da cruz mais correntes no Ocidente que vêem na crucifixão de Cristo um "resgate pago ao Diabo" (Ver, por exemplo, Basílio: Homélie sur de Psaume 48, PG 29, col. 60-65) ou um "sacrifício oferecido a Deus em expiação dos pecados dos homens" (Ver, por exemplo, João Damasceno: La Foi orthodoxe, PG 94, col. 1093 AB, etc), mas, de maneira geral, mostrando repugnância por explicações de caráter demasiado jurídico, prefere ver, no acontecimento de Sexta-Feira Santa, a invasão de Deus no mais profundo do nada do homem e da criação, tendo em vista o triunfo da vida. "A Cruz leva à morte o nosso carrasco," leva à morte a nossa mortalidade, nota Olivier Clément. Pela união do verdadeiro Deus e do verdadeiro homem, a vida divina brotou na humanidade e tudo o que se opunha a esta união, a esta "teofania," é de qualquer modo destroçado, evacuado pelo interior, consumido no fogo da divindade que não cessa de penetrar o torturado de Sexta-Feira Santa, como o morto de Sábado. Pela sua humilhação, sua paixão, sua morte sobre a Cruz, sua descida aos infernos isto é, até ao afastamento extremo de Deus e do próximo, Cristo deixa entrar em si toda a desdita do mundo decaído, todo o inferno da condição humana escravizada pela mentira e pelo ódio... mas então a desdita, a separação, o inferno e a morte são aniquilados por Aquele em que não podem ter lugar; o abismo aberto pela liberdade humana extraviada volatiliza-se como uma irrisória gota de ódio no abismo de amor da divindade" (Olivier Clément: L'Église Orthodoxe. Paris, 1961, p. 42). Decerto, a cruz atesta o perdão oferecido ao homem pecador, mas o seu alcance é ainda maior: o obstáculo que impede a humanidade de descobrir a sua verdadeira identidade em Deus está literalmente e realmente afastado.

    É por esta razão que, sobretudo na piedade russa, a contemplação da cruz desempenha um papel central, tal como se infere de diferentes "vidas de santos" da Idade Média russa. Aí se encontra um estilo de vida da dor voluntariamente aceite por causa de Cristo sofredor tal como aparece, por exemplo, na lenda dos santos Boris e Gleb os quais, como se diz, morreram assassinados pelos criados do seu irmão mais velho, porque este receava vê-los subir ao trono paterno. "Não eram mártires que davam a vida pela sua fé, mas no entanto morreram conscientemente por Cristo, receberam a morte violenta, os seus sofrimentos, como uma participação na morte de Cristo. Eis como o autor antigo da narração da morte dos dois jovens príncipes... faz orar Boris perante a sua morte: 'Senhor Jesus Cristo, que na terra te mostraste sob esta forma, para nossa salvação, e deixaste voluntariamente cravar as tuas mãos sobre a cruz, e sofreste a tua paixão pelos nossos pecados, concede-me também que suporte a minha. Recebo-a não dos meus inimigos, mas do meu irmão. Senhor, não lha imputes como pecado. É pois na morte do Senhor que este jovem encontra a força para sofrer' (Citado por Nicolas Arseniev, op. Cit. p. 70). O sofrimento é suportável porque ele mesmo pode ser uma descoberta da identidade profunda do homem-Deus. Este, como o revela a cruz, encontra-se tanto no sofrimento como na alegria e na plenitude.

    Se, em Cristo, Deus foi até este extremo, foi para fazer triunfar a vida, mesmo no íntimo da recusa do homem em viver, e no interior da consequência desta recusa, a morte. Para Deus, julgam os fiéis ortodoxos, o último limite humano - a morte - não é intransponível. Ele pode ultrapassá-lo e levar consigo o humano neste salto para além dos seus próprios limites em direção à sua verdadeira natureza. É o mistério da Ressurreição de Cristo, da Páscoa, três dias depois do Gólgota, mistério inseparável do de Sexta-Feira Santa. Através da Páscoa aparece aquilo que permite ao homem alegrar-se verdadeiramente: a sua libertação dos hábitos estereotipados de recusa e de dúvida, do tédio e das mesquinhices de todos os dias; Páscoa é a lufada de ar fresco, é o grande futuro aberto diante de qualquer homem e de qualquer criatura, é a possibilidade oferecida para se levantar e caminhar. "Pela sua ressurreição, sublinha Gregório de Nissa, Cristo ressuscita (literalmente: põe de pé) tudo o que existe, porque se tornou ele próprio, para aqueles que se aviltam na obscuridade e na sombra da morte, a sua vida, a sua ressurreição, a sua ascensão e o seu dia esplendoroso" (Sur Ia résurrection du Christ, Sermon 1, PG 46, col. 601). Basta assistir a um ofício ortodoxo da Páscoa para sentir imediatamente a alegria e o fervor dos fiéis que, ao grito de "Cristo ressuscitou! - ressuscitou verdadeiramente!" atestam com força a inversão extraordinária da situação. Não há nada que interprete melhor esta espantosa certeza de ter sido literalmente restabelecido em tudo o que a vida tinha de tortuoso e de falso do que este sermão de João Crisóstomo lido durante a vigília pascal, meditação que sublinha que todo o homem, qualquer que seja a sua fé e a sua qualidade humana, é apanhado por este acontecimento:

    Que todo o homem piedoso e que ama a Deus se alegre nesta bela e luminosa festa. Que todo o servidor fiel entre jubiloso na alegria do seu Senhor. Que aquele que se entregou ao sacrifício do jejum receba agora o prémio que lhe é dado. Que aquele que trabalhou desde a primeira hora receba agora o seu justo salário. Se alguém veio depois da terceira hora. que celebre esta festa no reconhecimento. Se alguém se atrasou até depois da sexta hora, que não tenha qualquer hesitação, pois nada perderá. Se houver alguém que se demorou até à nona hora, que se aproxime sem hesitação. Se houver alguém que tardou até à hora undécima, que não receie a sua indolência, porque o Senhor é generoso e recebe o último tal como recebe o primeiro. Ele aceita no repouso tanto o da décima primeira hora como o da primeira. Do último tem piedade, e cuida do primeiro. A este dá, àquele faz mercê. Ele recebe o trabalho e acolhe com amor a boa vontade. Ele honra a ação e louva o bom propósito. Assim, pois, entrai todos na alegria do vosso Mestre, e tanto os primeiros como os segundos, todos recebereis a recompensa. Ricos e pobres misturai-vos. Abstinentes e preguiçosos, honrai este dia. Vós os que jejuastes e vós que não jejuastes, alegrai-vos hoje. A mesa está farta, saciai-vos todos sem preconceitos. Não falta o veado gordo; que ninguém se vá embora com fome. Saboreai todos as riquezas da misericórdia. Que ninguém se lamente da sua pobreza: porque chegou o nosso reino comum. Que ninguém se lamente dos seus pecados, pois o perdão brotou do túmulo. Que ninguém receie a morte, porque a morte do Salvador nos libertou. Ele apagou-a depois de ter estado retido por ela. Despojou os infernos Aquele que desceu aos infernos. Ele tornou-o amargo por ter provado a sua carne. E isto, Isaías o predissera: O inferno, diz ele, o inferno tornou-se amargo uma vez que Ele Vos encontrou sob a terra. Tornou-se amargo porque foi reduzido a nada; tornou-se amargo porque Ele foi jogado; tornou-se amargo porque Ele foi levado à morte; tornou-se amargo porque Ele foi aniquilado. Ele tomara um corpo, e encontrou-se perante um Deus; tomara-o da terra e encontrou o céu; tomara o que tinha visto, e caiu por causa do que não tinha visto. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde a tua vitória, ó inferno'? Cristo ressuscitou e tu foste precipitado. Cristo ressuscitou e os demónios caíram. Cristo ressuscitou e os anjos alegram-se. Cristo ressuscitou e a vida governa. Cristo ressuscitou e não há mais morte no túmulo. Porque Cristo ressuscitou dos mortos, Ele tomou-se primícia dos defuntos. A Ele glória e poder pelos séculos dos séculos. Amém! (E. Mercier e G. Bainbridge, op. cit. p. 279-281)

    Nesta alegria transbordante frente ao triunfo da vida, tudo o que separa o homem do seu próximo e de si próprio, tudo o que o aliena é superado, transcendido, ultrapassado, na plenitude de vida oferecida a todos e a cada um. "Dia da ressurreição! Estejamos radiantes de alegria e abracemo-nos uns aos outros. Chamemos irmãos mesmo àqueles que nos odeiam. Perdoemos tudo por causa da ressurreição, e exclamemos: Cristo ressuscitou dos mortos; pela sua morte ele esmagou a morte, e àqueles que estavam no túmulo ele deu a vida" (Canon de João Damasceno da noite de Páscoa, cit., ibid. p. 279). Esta admiração perante o dinamismo divino que transforma o nada em realidade, a morte em vida, o sofrimento degradante em sofrimento humanizante, portanto pleno de alegria, este louvor diante da irrupção de Deus no homem para o elevar até Ele será a nota dominante dos cultos e da piedade ortodoxa. Certamente que há Sexta-Feira Santa, o sofrimento e a morte de Deus por causa do sofrimento e da morte do homem. Mas, contrariamente ao Ocidente cuja piedade estará centrada sobre a cruz, o Oriente cristão vive mais intensamente as possibilidades inauditas que esta abre ao homem, uma vida verdadeiramente humana e livre, no amor e na realização de todas as suas faculdades criadoras, uma vida vivida plenamente, orientada por e para um futuro infinito, por causa do acontecimento incompreensível mas real da Páscoa.

    Depois de tudo o que se tem vindo a dizer, verifica-se que, para a Igreja ortodoxa, Cristo não só perdoa o pecado do homem lhe suprime a culpabilidade, mas sobretudo permite-lhe realizar positivamente a sua vocação, recapitulando a natureza humana, penetrando-a até ao sofrimento, à dúvida e à morte. Distinguindo-se neste ponto do pensamento ocidental que utiliza facilmente uma linguagem jurídica (justificação, perdão, remissão da dívida, etc). para descrever o mistério, a fé oriental vê na Encarnação que termina na Ressurreição, "a realização da natureza humana à semelhança de Deus" (Cyrilo de Alexandria: Commentaire de Jean 16, PG 74, col. 432). Isto implica a realização de tudo o que contém a razão de ser, a vocação do homem: ser uma pessoa, gozar de um equilíbrio interior construtivo e dinâmico; viver relações autênticas com os outros; ser um organizador e criador do seu espaço vital para o desabrochar da vida de, todos; numa palavra: ser verdadeiramente livre sabendo-se participante da "pessoa," da harmonia dinâmica, do amor, da liberdade e da criatividade do próprio Deus. A salvação não é, pois, simplesmente a remissão de uma dívida, mas uma cura, um pôr-se de pé. O homem, por causa de Cristo, tem o direito de viver de pé. Assim o explica Paul Evdokimov: "À luz da Revelação (bíblica), a salvação nada tem de jurídico, não é uma sentença de tribunal: o verbo hebraico que a designa significa "estar ao largo," à vontáde; no sentido mais geral, quer dizer livrar, salvar de um perigo, de uma doença, da morte, enfim, o que define e precisa o significado muito particular de restabelecer o equilíbrio vital, de curar. O substantivo hebraico "salvação" designa a total libertação com a paz "schalom" no fim... Os pecadores são doentes ameaçados pela morte espiritual mais terrível do que a da carne. Pode pois precisar-se o sentido terapêutico da salvação: é a cura do ser, a eliminação do germe da mortalidade e eis por que o Salvador se intitula a vida, e o salvado recebe a vida eterna isto é, a sua verdadeira vida cujo futuro não tem limites" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 169-170). Para utilizar um termo corrente na teologia ortodoxa, tendo Deus entrado no humano e tendo-o transformado a partir do interior, o homem está a caminho da sua deificação, isto é, da participação cada vez mais íntima na presença de Deus que em Cristo se lhe tornou, "mais próxima do que ele de si mesmo." O termo "deificação" "remete... à possibilidade de o crente regressar às suas relações originais de comunhão com Deus, a fim de revestir a sua humanidade autêntica e de estabelecer uma justa relação com os seus companheiros em todos os domínios da vida social" (N. A. Nissiotis: L'Église et Ia Société dans la Théologie e orthodoxe grecque in L'éthique sociale chrétienne dans un monde en transformation. Église et Société. Genebra, 1966, p. 60). Escusado será dizer que, se esta expressão sublinha que o homem não pode realizar a sua vida senão em comunhão com Deus, isto é, entrando nos espaços infinitos do amor e de liberdade, ele não se torna Deus, mas homem verdadeiro. Em Cristo, "Deus dá-nos a sua própria vida. Recebendo-a, o homem não "possui" a Deus, nem se torna Deus por essência: participa naquilo que lhe é dado, e "agradece a Deus esta graça inefável" (Jean Meyendorfe Orthodoxie et Catholicité. Paris, 1965, p. 1 18). A Igreja oriental, na sua meditação sobre as conseqüências da irrupção de Deus em Cristo, descobre, pois, que isso diz respeito à vida inteira do homem e não somente à sua culpabilidade, sem que, no entanto, seja posto em questão o caráter absolutamente diferente e livre do Inefável que é a origem e o fim de uma existência que vale a pena ser vivida. "A deificação não é de modo nenhum uma idéia ontológica portanto abstrata e estática ou a afirmação da divinização do homem portanto da confusão do divino com o humano mas indica o fim último. A fé torna possível ao homem agir neste mundo como uma criatura nova, transcendendo a conduta normal imposta pela natureza decaída e pelas suas leis" (N. A. Nissiotis, op. cit. p. 60).

     

    A assimilação pessoal

    O fato histórico "Jesus de Nazaré" é pois, para o pensamento oriental, o sinal tangível da irrupção do Divino no Humano, sinal do amor que vai até ao fim e que humaniza todo o sofrimento - a cruz - e da alegria que se comunica a toda a realidade - o mistério da Páscoa. É um movimento no qual cada homem é chamado a entrar pessoalmente. Em Deus, realidade objetiva e realidade subjetiva são inseparáveis, e eis por que o homem individual está envolvido existencialmente pelo fato, aparentemente exterior a ele, da Encarnação. "Tornarmo-nos semelhantes a Deus, tanto quanto isso for possível à natureza humana, eis o que nos é proposto" (Du Saint-Esprit, PG 32, col. 69 B); escreve Basílio, indicando por isso que a irrupção de Deus em Cristo abre a cada homem a possibilidade de realizar a sua verdadeira vocação, sem que, respeitando Deus sempre e ainda a liberdade humana, se trate de um processo automático. Revelando-se, por Jesus, a intimidade estabelecida entre ele próprio e a humanidade, Deus respeitou plenamente a liberdade de Maria, e assim acontecerá com cada ser humano. João Damasceno sublinha-o, citando os diferentes aspectos da assimilação pessoal." Cristo participa ele mesmo na nossa natureza miserável e fraca, a fim de nos purificar... e nos fazer participar de novo na sua divindade. Contudo, foi preciso que não somente Cristo, primícias da nossa natureza, participasse neste grande benefício, mas ainda que todo o homem nascesse de um segundo nascimento... Foi por isso que ele nos deu um segundo nascimento... pela água do batismo e pelo Espírito... sendo nosso alimento o pão de vida Eucaristia." Assim pois, é o rito do batismo que "concretiza," que "representa" simbolicamente, como se vai ver, a existência nova do homem individual que aceita viver uma existência verdadeiramente humana a partir de agora possível em Cristo.

    O batismo, como a Eucaristia, é um gesto simbólico muito próximo dos gestos da vida de todos os dias. Na Igreja ortodoxa, a criança, ou o adulto em caso de conversão, é inteiramente mergulhado pelo padre na água das fontes batismais, para em seguida ser entregue à comunidade dos fiéis que assistem à cerimónia. Enquanto tal, este rito é um resumo muito denso da vida futura do batizado que é chamado, na sua vida quotidiana, a realizar aquilo que o batismo prefigura. "A imersão total, nota Paul Evdokimov, significa a morte muito real para o passado culposo, e a emersão a vitória definitiva, a ressurreição na vida nova... Além disso, o padre reproduz o ato divino, sopra sobre o rosto do "morto" o sopro da vida, análogo ao insuflar da vida no momento da criação do homem. Voltado ao Ocidente, reino do príncipe deste mundo (Satanás) onde a luz do dia desaparece, o candidato ao batismo renuncia ao passado, colocado sob o poder do inimigo. Ele representa simbolicamente a luta a sustentar ao longo de toda a sua vida espiritual; voltando-se para o Oriente onde o dia nasce, confessa a sua fé e recebe a graça. O ritual contém em germe o essencial da nova existência.

    Negativamente, é o combate incessante; positivamente, é a metamorfose pedida na oração final do batismo: "Ó Deus, despoja-o do homem velho, renova-o e enche-o do poder do teu Espírito Santo, na união de Cristo" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 64). Por si só, o rito manifesta, pois, os diferentes aspectos da vida daquele que aceita ver-se "Reerguido" pela presença do Inefável e adquirir uma humanidade real que fará dele um homem autêntico para os seus semelhantes: a aceitação consciente do seu verdadeiro destino em Deus - a "conversão" ou "arrependimento;" a certeza de que assim ele entra no dinamismo de Deus realmente ativo neste exato momento e em toda a sua vida - o "Espírito Santo;" a tomada de consciência de que toda a sua vida será uma incessante passagem da "morte" de uma vida "inautêntica" e sem esperança real, para a "ressurreição," uma vida alegre, equilibrada, livre, criadora e aberta sobre os outros e sobre o mundo - passagem simbolizada pela imersão na água e a emersão; enfim, o reconhecimento de que tudo isto o introduz na totalidade do mundo, o insere verdadeiramente "em linha direta" na sociedade humana e, em última análise, no cosmos, representados um e outro pela água, elemento indispensável como é, tanto para a vida da sociedade humana como para a das criaturas.

    Confrontado pela irrupção da vida em Cristo, o homem é posto entre a espada e a parede: irá ele persistir na sua recusa dá verdadeira felicidade, ou vai "dar uma volta" de 180 graus, "arrepender-se," "converterse?" Para o crente ortodoxo, esta "conversão" implica muito mais do que uma emoção religiosa: ela é o desejo de se ultrapassar a si mesmo na luta interior. "O primeiro ato da vida cristã, escreve o padre Schmemann, é renunciar a si mesmo, é aceitar um desafio. Ninguém se pode reclamar de Cristo, a menos que enfrente o mal e esteja pronto a combatê-lo. Esta afirmação está muito afastada da maneira como nós proclamamos, ou melhor, para usar uma expressão mais em moda, como nós "vendemos" o cristianismo. Não é este sempre apresentado como um conforto, uma ajuda, um descanso um investimento razoável de tempo, de energia e de dinheiro'? Basta ouvir... as prédicas dominicais para se ter a impressão de que a religião é sempre apresentada como um meio de as pessoas se desembaraçarem de alguma coisa - ansiedade, medo, frustrações - mas nunca como a salvação do homem e do mundo... Não se vê muito bem como é que o termo "combater" pode encontrar o seu lugar nas colunas de um jornal paroquial, entre os anúncios relativos aos "chás," às vendas paroquiais e sessões recreativas" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 50-51). arrependimento é pois a coragem que é preciso ter para se ser lúcido consigo próprio e a respeito das suas fraquezas e limitações. "Aquele que vê o seu pecado é maior do que aquele que ressuscita mortos," afirma Isaac o Sírio, sublinhando assim a importância da instrospecção salutar. É a auto-análise tal como, por exemplo, a sabía praticar o padre Yelchaninov (1881-1934), capelão dos estudantes russos em França: "Tais são os componentes normais da nossa alma: 1) a vida misteriosa do espírito, e, sem que seja possível isolá-las do resto, as primícias da salvação que nos provêm do batismo, dos sacramentos, da inspiração do Espírito Santo; 2) a neblina difusa das nossas virtudes aparentes, deformadas e atacadas pelo ácido do orgulho: as nossas chamadas boas obras, as nossas chamadas orações, honestidade, sinceridade; estas qualidades aparentes obscurecem o nosso estado de revolta real e impedem o verdadeiro arrependimento; 3) a nuvem negra das nossas faltas que nós perdoamos facilmente a nós mesmos: os juízos que nós fazemos a cada passo a respeito dos outros, os nossos sarcasmos, desprezos, friezas e cóleras; 4) enfim, no mais fundo de nós mesmos, o ninho antigo da corrupção hereditária que partilhamos com toda a humanidade - o animal comum que destila, semelhantes a odores deletérios, pensamentos e impulsos de blasfêmia. perversões monstruosas e destrutivas" (Citado por A Treasury of Russian spirituality, ed. por G. P. Fedotov, Londres, 1952, p. 426). Esta lucidez corajosa joeira igualmente os impulsos religiosos aparentemente mais puros. "Muitas vezes, nota o padre Yelchaninov, confundimos a religião com uma vaga mistura de recordações de infância, de emoções sentimentais vividas na igreja, de ovos de Páscoa e de gulodices" (Ibid). Entretanto, o homem perante o qual Cristo abriu o seu futuro não é chamado a comprazer-se no deleite ao fim e ao cabo narcísico da sua própria pessoa, dos seus problemas e fraquezas. Como o nota Paul Evdokimov: "A visão deve ser breve, um instantâneo, a fim de evitar qualquer complacência na dor ou no desespero. O pecado nunca é um objeto de contemplação, é preciso lançar o olhar sobre aquilo que o cobre: a graça. Mas a alma pode agora soltar o verdadeiro grito: "Do abismo da minha iniqüidade, eu invoco o abismo da Tua misericórdia" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 439).

    Este realismo frente a si mesrrio é a própria definição da humildade. No fim de contas, ela consiste em realizar que não se pode... ser humilde, mas que só a irrupção de Deus e a visão da nova perspectiva que nos coloca no nosso verdadeiro lugar nos permitem ultrapassar o nosso orgulho. "É humildemente que vos peço, irmãos, escreve o staretz Siluan do Monte Atos, a vós que reconhecestes o amor de Cristo, que rezeis por mim, para que o espírito de orgulho que me anima seja substituído pela humildade de Cristo." A humildade é o dom de poder ultrapassar o seu egocentrismo: "[enquanto] o egocentrismo é sintomático de toda a neurose histérica que faz girar todo o universo em redor do ego humano, "eu, eu, e nada mais do que eu.".. a humildade... coloca o eixo do ser humano em Deus" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 154). Esta atitude de receptividade ao que o ultrapassa infinitamente "despreocupa" o homem de si mesmo, liberta-o da obsessão das suas próprias penas e sofrimentos. "A alma do homem humilde é semelhante ao mar; uma pedra que se lhe deite agita a superfície da água durante alguns instantes, depois afunda-se. É assim que os cuidados desaparecem no coração dos humildes, porque a força de Deus habita neles" (Staretz Siluan, op. cit. p. 244). Em última análise, o homem humilde não se orgulha mesmo da sua fé; não a julga superior à dos outros. O homem verdadeiro, que se sabe empenhado no movimento de Deus que o ultrapassa e que o coloca assim no seu verdadeiro lugar, está perfeitamente consciente da sua pobreza "espiritual," do seu vazio interior que espera ser preenchido por Deus. Tal é a conclusão, nota a este propósito o Padre Yelchaninov, a que cheguei, lendo os Padres da Igreja: os períodos de aridez espiritual são coisas absolutamente normais; devemos aceita-los pacientemente e sem nos culpabilizarmos. Estes períodos de secura permitem-nos tomar consciência da nossa pobreza, e obrigam-nos a colocar só em Deus a nossa esperança de ver os nossos corações renovados" (Citado por G. P. Fedotov, op. cit. p. 441).

    A humildade assim compreendida dá a sua verdadeira proporção às coisas e assgura o discernimento indispensável á uma ação justa e eficaz, a relações humanas verdadeiramente construtivas e baseadas numa apreciação concreta da sua própria situação e da dos outros. Orgulho = solidão = trevas do inferno. Do orgulho decorre a ambição, daí um espírito partidário. incapaz de se julgar a si mesmo; daí a futilidade. O homem orgulhoso é animal, mesmo que tenha recebido a inteligência de um gênio. Inversamente o humilde é sábio, mesmo que não seja "inteligente"; a verdadeira sabedoria - ter a intuição do verdadeiro e não se vangloriar disso - é-lhe acessível" (Journal du Père Yelchaminov citado por Fedotov, p. 447-448). Compreende-se porque a Igreja ortodoxa, particularmente a "Igreja russa" foi tocada em todos os tempos pelas lições da humildade que constitui a vida dos seus santos. Assim, Sérgio de Radonege (século XIV), iniciador do renascimento monástico russo, e do qual esta breve história ilustra "a humilde doçura." Sérgio trabalhava um dia no jardim vestido como um simples trabalhador de campo. Um camponês que desejava encontra-lo mas que não podia "crer que um homem tão mal vestido que cavava com tanta aplicação fosse o célebre abade do grande mosteiro, insultava Sérgio. O santo acolheu-o cheio de bondade e de amabilidade, e convidou-o para a mesa do convento fazendo-o sentar a seu lado, no lugar de honra" (Citado por Nicolas Arseniev, op. cit. p. 122). Tal é a atitude de um homem que, precisamente porque se sabe orientado, "convertido" na boa direção, é capaz de verdadeiro discernimento, e por isso, em condições de ver em qualquer homem um irmão.

    "A falta de fé provém sempre do orgulho. O homem orgulhoso quer compreender tudo com a sua razão, enquanto que Deus só se revela aos humildes. Ao homem modesto o Senhor manifesta a sua ação que a nossa razão não chega a captar, mas que nos aparece como real graça do Espírito Santo" (Staretz Siluan, op. cit. referido e publicado pelo Arquimandrita Sophronius. Dusseldorf, 1959, p. 266). O arrependimento e a humildade, na medida em que elas não centram o homem sobre si mesmo, fazem parte integrante da fé, da disponibilidade a respeito do Outro-Todo entrado, através de Cristo, na nossa humanidade. Ela é confiança feita no Inefável, certeza de que em Cristo a humanidade inteira está efètivamente a caminho da sua realização, portanto, que se está por si próprio empenhado no movimento. "Livre aceitação de Cristo" (Gregório de Nissa: Sermon Cathéchétique, PG 45, col. 77 BC), a fé é, assim, a atitude de humildade e de espera pela qual "aquele que nasceu de novo por um nascimento espiritual reconhece Aquele de quem nasceu e que espécie de criatura é chamado a tornar-se" (Ibid. col. 97 CD). Ela é ato livre por excelência, a realização da verdadeira liberdade humana que se sabe inserida na liberdade de Deus, "única forma de 'nascimento' (tendo) o poder de escolher o que ela quer ser e ser aquilo que escolheu (Ibid. col. 97 D), Ela é esperança, isto é, certeza de que a irrupção de Deus, se bem que escondida ainda ao olhar superficial, constitui bem a primeira e a última palavra de toda a criatura e de todas as coisas. "Com efeito, isto é a fé, segundo nota ainda Gregório de Nissa: que os bens prometidos por Deus, por muito que sejam inacessíveis aos olhos do corpo, sejam tidos por mais dignos de crédito do que os bens que são patentes e caem sob os nossos olhares" (Catéchèse baptismale, citado pelo autor, op. cit. p. 188). Assim, como afirma Evdokimov, "a fé aparece como um ultrapassar da razão, comandada pela própria razão desde que atinge o seu limite. A fé diz: "Dá a tua razão pequenina e recebe o Razão [Deus]." Ela é uma transcendência para as evidências, para a realidade escondida que se revela. A sua experiência é desde logo uma revelação. Ela suprime qualquer demonstração, todo o imediato, toda a noção abstrata de Deus e torna imediatamente presente esse Alguém que é o mais intimamente conhecido" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 46). No fim de contas, a fé é a certeza do espírito humano, na sua consciência e no seu subconsciente, de ser incompleto, de ser inumano tanto quanto ele se situa fora da dimensão vertical do homem manifestada em Cristo. Ela decorre de uma escolha existencial, de um sim ou de um não, que se faz no mais profundo da psicologia humana.

    Ateísmo e fé situam-se muito perto: "Quando, longe da amorfa indiferença, o ateísmo e a fé são levados à sua "perfeição," podem, para além da tagarelice inepta, recolher-se em conjunto no silencioso combate do anjo e de Jacob, da graça e do desespero" (Ibid, p. 80). A fé, abertura sobre Deus, sinal de humildade e de realismo perante si próprio (arrependimento!), é um empenhamento que custa tanto quanto o verdadeiro ateísmo; um e outro exigem uma concentração sobre o essencial, sobre a vida no que ela tem de profundo; chamando a uma decisão, fé e ateísmo autêntico exigem a recusa do fútil e do superficial. "Resposta à questão corrente das pessoas superficiais que pedem lhes seja dada imediatamente uma "prova" da existência de Deus: vós mesmos não tentaríeis demonstrar uma verdade científica ou matemática a um bêbado. Da mesma forma, e acima de tudo, parai de ser intoxicados pelo mundo, pela sua agitação, pelo seu nervosismo, pela sua vaidade, e então poderemos encetar o diálogo e vós compreendereis o que queremos dizer" (Padre Yelchaninov, citado por G. P. Fedotov, op. cit. p. 437). No mais profundo dela mesma - a fé, e é só isso que a distingue do ateísmo precisamente na medida em que o secundário e o fútil terão sido substituídos pelo que importa verdadeiramente, vida, as relações com os outros e o sentido da existência, a fé, "confiança total só em Deus" (Nicolas Cabasillas, citado por Boris Bobrinskoy, in: Nicolas Cabasillas et Ia Spiritualité hésychaste in " La Pensée orthodoxe," N.° 1966/1. Paris, p. 12) será o reconhecimento de que esta confiança é ela própria um dom, que é irrupção de Deus na pessoa humana. "Eu tenho fé:" esta afirmação é a das pessoas que se iludem a si mesmas e não têm verdadeira confiança. Os apóstolos pediram a Cristo: "Aumenta a nossa fé" (Père Yelchaninov, op. cit. p. 475).

    Em extremo, esta disponibilidade total a respeito do Inefável pode implicar uma confiança total igualmente no plano das necessidades materiais, confiança que animava alguns santos russos cuja vida, por esta razão, impressionou particularmente os seus contemporâneos. Como este episódio da vida de São Teodósio, fundador do mosteiro das cavernas de Kiev (século IX): Depois de ter recebido a vocação de se tornar monge, "o bem-aventurado Teodósio deixou a casa paterna sem levar outra bagagem além do seu fato e um pouco de pão, por causa da fraqueza do seu corpo. Era assim que ele queria dirigir-se a Kiev, cidade onde tinha ouvido dizer que havia conventos famosos. Como não conhecia o caminho para a cidade, pediu a Deus que lhe deparasse companheiros de jornada que pudessem indicar-lhe a boa direção. E eis que, graças à providência do Senhor, encontrou mercadores que, com os seus pesados carros se dirigiam para a cidade dos seus sonhos. Tendo-se apercebido disso, o bem-aventurado alegrava-se em seu coração e deu graças ao Senhor por ter ouvido a sua oração" (Chronique de Nestor, citado por Ernst Benz: Russische Heiligenlegenden. Zurique, 195? p. 92) Trata-se aqui de um exemplo que bem ilustra até onde pode ir a disponibilidade à irrupção de Deus na vida quotidiana. Se não deve ser tomado à letra, sublinha o que é a fé para o pensamento ortodoxo: antes de ser uma formulação dogmática, é confiança, abandono ao Inefável no qual o homem, qualquer que seja a sua situação material e moral, pode encontrar uma existência digna de ser vivida. "O contrário do pecado, nota a este propósito Paul Evdokimov, não é a virtude, mas a fé dos santos" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 150).

    Arrependimento - ruptura com o seu passado humildade - atitude realista perante si mesmo - portanto fé - confiança em que a possibilidade oferecida para avançar é real: a tomada de consciência de que em Cristo, Deus é o futuro do homem, a sua humanidade real, apoia-se sobre a certeza de que este mesmo Deus, que é manifestado na pessoa histórica de Jesus de Nazaré, é uma presença atual, contemporânea, que anima o dinamismo do homem e do mundo e no qual é possível ter fé - aqui e agora. Esta presença, designada com a ajuda do termo bíblico "Espírito Santo, é Deus enquanto cumpre, vivifica, dá ao mundo a realidade" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 146).

    A Encarnação de Deus em Cristo e a presença do seu Espírito no homem são um só e o mesmo movimento. "Deus fez-se sarcóforo (= portador da carne) para que o homem pudesse tornar-se pneumatóforo" (Citado por Olivier Clément: L'Égiise orthodoxe. Paris, 1961, p. 48) (= portador do Espírito) afirma Atanásio, sublinhando assim que a intervenção de Deus no homem Jesus de Nazaré é o sinal, a antecipação da sua entrada em todo o homem pelo Espírito Santo. Muito concretamente, a descoberta de si no arrependimento e na humildade, a descoberta da dimensão divina inscrita no homem e abrindo-lhe o seu verdadeiro futuro, esta mesma descoberta é presença de Deus, ação divina através de toda a vida psíquica da pessoa humana. "Se, por impossível, nota Cirilo de Alexandria, nos acontecesse ficarmos privados do Espírito, não suspeitaríamos sequer o que Deus faz em nós" (Sur Jean, PG 44, col. 545 A). Da mesma forma, é a presença atual de Deus que permite discernir em Cristo o exemplo da verdadeira humanidade, da realização do homem por causa da presença divina. "Não se concebe o Filho sem o Espírito Santo, nota Gregório de Nissa; é impossível dizer o nome de Jesus Senhor a não ser no Espírito Santo" (Contre les Macédoniens, PG 44, col. 1316). Eis porque o culto, no decorrer do qual os crentes "assimilam" o alcance existencial do Evangelho e da Ceia, só é verdadeiro - dizer isto é um ato de fé - na medida em que o "Espírito" é ele próprio o seu revelador. Apenas na medida em que a presença de Deus é real, "a liturgia oferece o método de meditação eclesial em que a Palavra é proclamada, cantada, rezada, e vivida... que ela está na fonte do ser e da sua perfeição" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 208).

    Utilizando uma linguagem simbólica, pode dizer-se que a palavra "Espírito Santo" designa, para a Igreja ortodoxa, a presença de Deus junto de cada homem em particular, ao passo que Cristo o encarna para toda a humanidade em geral. É "no Espírito," "através do que ele distribui por cada um" (Atanásio: Lettre à Sérapion, PG 26, col. 600 B) que cada homem se torna a pessoa verdadeiramente humana, livre, aberta aos outros, equilibrada interiormente e criadora que ele é chamado a tornar-se. O Espírito, "formando e educando o homem à semelhança de Deus" (Ireneu: Démonstration de Ia Prédication apostolique, citado pelo autor, op. cit. p. 46) concede, para retomar uma expressão de Basílio, "cumula das coisas desejáveis, a deificação" (Du Saint-Esprit, PG 32, col. 108 C-109 C), isto é, a verdadeira humanidade só possível, se a dimensão profunda do homem e do seu futuro - Deus - for assumida plenamente. Cada homem - eis aí uma consequência capital desta presença - é assim personalizado, vivendo o mistério da sua vida de forma única, irredutível a qualquer espécie de esquematização, de nivelamento dogmático, sociológico, psicológico ou moral. O homem "animado do Espírito Santo" é único, absolutamente diferente de todos os outros, mas intimamente ligado a eles pela inabitação do Inefável que lhes é comum. "O Espírito está totalmente presente em cada um e por toda a parte. Dividindo-se, ele não sofre a divisão... derrama sobre todos a graça total de que gozam todos aqueles que nele participam segundo a medida das suas próprias capacidades, pois não há medida para as possibilidades do Espírito" (Ibid. col. 109 A).

    Assim, a experiência existencial de Deus realiza cada hómem em particular e, ao mesmo tempo, funda a comunidade dos homens entre si. É no Espírito que cada um em particular realiza a sua pessoa, a sua liberdade: "A liberdade do Filho identifica-se e coincide com o Dom do Pai que é o Espírito Santo" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 44). E, por outro lado, é por causa desta mesma presença que o indíviduo plenamente humano pode sair das suas próprias preocupações e estabelecer com outros relações de liberdades partilhadas, ultrapassar assim as relações de senhores com servos. É a razão pela qual a comunidade por excelência, a Igreja, é constituída pela presença do Espírito nos seus membros. "Onde está a Igreja aí se encontra o Espírito; e onde há o Espírito, há a Igreja" (Citado por Carnegie Samuel Calian: The Role of the Holy Spirit in Eastern Orthodoxy. Policopiado. Genebra, 1964, p. 7). Esta afirmação de Ireneu de Lião sublinha que a experiência existencial da presença humanizante de Deus, certamente anima o movimento do indivíduo para a sua própria identidade, mas que ela lhe permite, por esta razão, viver em comunidade real com o seu semelhante. O batismo, sinal da presença de Deus junto do batizado, é portanto símbolo da personalização do crente e, ao mesmo tempo, o índice da sua inserção na comunidade da Igreja.

    Depois de ser batizado, o crente ortodoxo recebe a unção do óleo: é o rito da "confirmação," sinal precisamente de uma vida plena, transbordante, em movimento constante para uma maior plenitude, mais vida ao mesmo temo no plano pessoal e comunitário. Tal como o afirma o padre Schmemann, resumindo assim o caráter existencial da presença atual de Deus: "Ser verdadeiramente homem, é ser plenamente si-mesmo. A "confirmação" é a confirmação do homem na sua "personalidade" única. Este ato é a minha consagração a ser eu próprio, a tornar-me no que Deus quer que me torne, a tornar-me a pessoa que Ele amou em mim desde toda a eternidade. É o dom da vocação. Se a Igreja é verdadeiramente "novidade de vida" - o mundo e a natureza regenerados por Cristo - ela não pode ser uma instituição puramente religiosa no interior da qual, para se ser "piedoso," para se ser um "membro fiel," seja preciso abandonar a sua verdadeira personalidade e substituí-la por uma maneira de ser afetada, impessoal, neutra, "muito cristã." A piedade apresenta muitas vezes um grande perigo: o de se opor ao Espírito Santo,' que é doador de Vida - de alegria de movimento, de criatividade, - e não doador desta "boa consciência" que reage perante todas as coisas com suspeição, receio e indignação moralizante" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 55).

    É à luz do alcance existencial do Espírito que deve ser "saboreado," em toda a sua profundidade este episódio da vida de Serafim de Sarov (1759-1883), famoso "staretz" russo do último século e cuja espiritualidade está particularmente centrada sobre a certeza da presença de Deus junto de cada homem. Citamos o relato que um tal Motovilov fez do seu encontro com o santo:

    "Numa certa quinta-feira, por um cinzento dia de inverno, - o chão estava coberto de neve e esta caía ainda - o padre Serafim permitiu-me conversar com ele, quando estávamos num campo próximo do seu eremitério... Mandou-me sentar sobre o tronco de uma árvore que acabava de ser abatida e ele mesmo se acocorou diante de mim. "Deus revelou-me, disse, que desde a infância vós tínheis desejado ardentemente conhecer o objetivo da vida cristã, e que, por muitas vezes, interrogastes a este respeito homens importantes da Igreja." Com efeito, devo reconhecer que, desde a idade dos 12 anos, este pensamento me preocupou, sem que os numerosos eclesiásticos que consultei tivessem podido responder às minhas perguntas. Isso, o 'staretz' não o sabia. "Entretanto, prosseguiu o padre Serafim, ninguém vos deu uma resposta precisa. Diziam-vos: "Ide à igreja, rezai, cumpri os mandamentos de Deus, fazei o bem - tal é o objetivo da vida cristã!" Alguns deviam indignar-se com a vossa curiosidade, na sua opinião, desagradável a Deus. Diziam: "Não te interrogues sobre o que te transcende!" Mas não falaram como deviam. O pobre Serafim vai agora explicar-vos o objetivo real da vida humana. A oração, os jejuns, a vigilância, são coisas boas, mas não constituem a nossa razão de ser. Eis a verdadeira finalidade da nossa vida: a aquisição do Espírito Santo. Notai que só as ações realizadas em nome de Cristo nos permitem participar do Espírito..." - Mas o que é que esta aquisição implica? perguntei ao padre Serafim; não vejo muito bem o que isso significa - "Adquirir," respondeu ele, significa "ganhar." Vós ganhais dinheiro?... É o mesmo para o Espírito Santo... o qual se adquire por... ações realizadas em nome de Cristo... e pela oração... Esta vida dada pelo Espírito Santo, é preciso difundi-la como uma vela acesa transmite a sua chama a outras velas e, sem diminuir a intensidade do seu próprio brilho, contribui assim para alumiar vastos espaços. Se tal é o caso para um fogo terrestre, como descrever os efeitos do fogo do Espírito?" - "Padre, disse eu então: vós dizeis pois que a aquisição do Espírito Santo é o objetivo da vida cristã; mas onde e como posso eu discernir este dom? As boas obras são visíveis, mas podemos nós ver o Espírito Santo? Como posso saber se Ele está em mim?" O padre Serafim agarrou-me pelos ombros e disse-me: "Neste mesmo momento, nós estamos no Espírito de Deus. Olhai para mim." Eu respondi: "Não posso olhar para vós, padre, porque os vossos olhos lançam raios. O vosso rosto tornou-se mais luminoso do que o sol, doem-me os olhos." O padre Serafim, retorquiu: "Nada temais. Vós tornastes-vos tão brilhante como eu. Vós próprio entrastes na plenitude do Espírito, porque, se assim não fosse, não poderíeis ver-me tal como pareço." Inclinando a sua cabeça para mim, murmurou ao meu ouvido: "Agradecei ao Senhor pela sua misericórdia inefável para connosco... E agora porque não me olhais nos olhos? Olhai com toda a simplicidade e sem receio: Deus está connosco." A estas palavras olhei-o no rosto e fiquei ainda mais maravilhado. Imaginai o Sol no zénite, ao meio-dia, e no seu centro o rosto do homem que fala convosco. Vedes mexer de lábios, modificar-se 'a expressão dos olhos, ouvis a sua voz, sentis que agarra pelos ombros. E, entretanto, não só não vedes as mãos que vos tocam, mas ainda não vos vedes a vós mesmos, nem o rosto do interlocutor; só vedes uma esfera luminosa vibrante com um diâmetro de muitos pés, inundando,da sua luz o solo coberto de neve, a neve que cai, eu próprio e o "staretz." É fácil imaginar em que estado eu me encontrava então. "Como vos sentis? Perguntou-me o padre Serafim." "Extraordinariamente bem," respondi. "Que sentis exatamente?" - "Há na minha alma uma calma e uma paz tais que não sou capaz de as descrever." - "Esta paz, retomou o "staretz," foi-te dada pelo próprio nosso Senhor, é a paz de Deus. Que sentis mais?" - "Uma doçura maravilhosa," respondi. "Sim, é a doçura de que se fala na Escritura que diz: "Eles se embriagarão da plenitude da tua casa porque Tu lhes permites beber nas torrentes do teu prazer." Sentis ainda outra coisa?" - "Uma alegria transbordante no meu coração." O padre Serafim observou então: "Quando o Espírito de Deus desce sobre o homem e lhe infunde a plenitude de vida, a alma é animada de uma alegria indizível, porque o Espírito de Deus torna alegre tudo aquilo que Ele toca... Agora, a nossa tarefa é, de esforço em esforço, elevar-nos de vigor em vigor para atingir a medida plena da nossa pessoa em Cristo... de forma que, exercendo nós mesmos a atividade do Senhor, possamos ser úteis aos outros. Que eu seja monge e que vós sejais leigo, isso não faz diferença nenhuma: o que Deus pede é que nós confiemos nele, nele e em Cristo... Assim o que pedis a Deus recebe-lo-eis com a condição de que isso sirva para glória de Deus ou para a vida do vosso próximo. Com efeito, tudo o que ajuda os nossos semelhantes exalta a glória de Deus" (Citado por G. P. Fedotov, op. cit., p. 265-279. Extractos).

    Este texto relata uma experiência certamente particular que, sob esta forma, não pode ser vivida por cada um, mas isso não significa menos que, estando Deus realmente presente pelo Espírito, a época atual seja tão importante, no plano da "história da salvação," como a encarnação histórica de Deus, por assim dizer exemplar, em Jesus de Nazaré. É a razão profunda pela qual a Igreja oriental recusou a afirmação dogmática ocidental segundo a qual o Espírito Santo provém "de Deus Pai e do Filho" (Filiogue em latim). Sem dúvida que a presença de Deus se manifesta plenamente através de Cristo, mas ela revela-se com uma intensidade igual através da presença do Inefável junto de cada pessoa. Esta experiência existencial feita efetivamente pelos ortodoxos leva-os a dar uma importância igual à Encarnação de Deus na natureza humana em Cristo e à encarnação do mesmo Deus - designado pelo "Espírito" em cada pessoa, sem subordinar uma à outra estas formas de intervenção divina. Ora, uma tal subordinação parece-lhes inevitável se se afirmar que a presença atual de Deus depende, de forma absoluta, da sua manifestação em Jesus de Nazaré. "É capital, observa um teólogo grego contemporâneo (N. A. Nissiotis: What is revealed by the Revelation in Christ?, in "Theology and Life," vol. 6, 1963, p. 45), que os teólogos tomem a sério as conseqüências de textos bíblicos como este: "É conveniente para vós, diz Jesus, que eu vá, porque se eu não for, o consolador (o Espírito) não virá até vós... (Jô. 16:17) Se a encarnação do Inefável em Cristo torna visível, num homem concreto, a possibilidade oferecida a todo o homem de realizar a sua verdadeira humanidade pela participação em Deus, e constitui assim um ponto de referência, um "modelo" válido universalmente, a realização concreta por cada homem, no arrependimento, na humildade e na fé, da presença atual do Inefável - o Espírito Santo - confere à nossa época e a todas as épocas, mesmo as mais afastadas da de Jesus de Nazaré, uma profundeza, uma "densidade" inteiramente "divinas." Não há momentos privilegiados na história da salvação: todo o instante é um "hoje de Deus."

    O realce dado por Serafim de Sarov no fim do seu diálogo com Motovilov, ao esforço a que é chamado cada homem que se abre à dimensão do Espírito sublinha, por outro lado, que a realização da vocação agora possível, torna o homem essencialmente ativo, tornando-se a sua mesma atividade o índice da sua humanidade. O homem reposto por Deus no caminho para a sua liberdade real, para a sua verdadeira identidade pessoal, para relações construtivas com os outros e com o mundo, está empenhado num dinamismo interior que vai dar a realizações concretas = uma atividade criadora de relações, de objectos e de obras de arte. Para a Igreja oriental, uma vez que é no decorrer deste dinamismo que o homem se realiza, a "colaboração do homem com Deus é o sinal da própria presença de Deus, e não compromete em nada o caráter absolutamente suficiente da intervenção divina. Assim, "as "obras da fé" não são nem meios, nem "méritos," mas sintomas da saúde-salvação" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 170). Precisamente porque Deus, na manifestação da sua presença na natureza humana em Cristo e em cada homem no Espírito, visa à humanização completa do homem - de um homem livre, equilibrado interiormente, comunitário e criador, - a atividade humana construtiva é o sinal de que está em vias de realizar a sua vocação. "A soberania [de Deus], nota o padre Meyendorff, não exclui a participação humana no ato da salvação. Não se trata, com efeito, de acrescentar ações humanas ao ato divino, como se este não bastasse para salvar o homem. O verdadeiro problema não é jurídico nem utilitário - o que basta ou não basta: é a questão do destino humano original que é estar com Deus e em Deus" (Jean Meyendorff, op. cit. p. 118). Contrariamente à Igreja do Ocidente que, na sequência do conflito entre Agostinho e Pelágio, - este último pondo em questão a omnissuficiência da graça, - verá um problema teológico maior numa aparente "concorrência" entre a atividade de Deus e a do homem na realização da "salvação," a Igreja oriental, sem debater longamente esta questão, tem vivido até hoje muito espontaneamente da intuição segundo a qual o homem pode ativamente, corpo e alma, atuar em vista da sua "deificação" - da realização da sua vida profunda verdadeiramente humana, porque aberta sobre o futuro, a imanência e a transcendência do Inefável. O homem é ativo precisamente porque Deus está totalmente e incondicionalmente presente em Cristo e no Espírito Santo. Sendo "o dinamismo humano desencadeado pela presença de Deus" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 150) os espirituais ortodoxos podem sem receio descrevê-lo como um "esforço" - assim Serafim de Sarov - ou ainda como uma "luta espiritual" (Staretz Siluan, op. cit. p. 316). É nesta atividade que o homem realiza o seu verdadeiro destino de homem. "A visão patrística oriental do homem como ser criado com o objetivo de ter parte na vida divina, com o objetivo de corresponder ativamente à sua própria vocação, tal como Deus a determina, exclui uma atitude puramente passiva do homem na sua própria salvação. Cristo tem duas naturezas e duas vontades que se unem para agir numa sinergia = colaboração divina humana. Em Cristo, a nossa vontade é ativa, mas de uma maneira nova, resgatada: ela não deve somente receber, ela age, não para remediar uma falha que Deus deixou subsistir, mas para realizar em si mesma a imagem do Criador, que foi obscurecida pela queda, mas que, agora, se encontra restaurada em Cristo na sua primitiva beleza" (Jean Meyendorff, op. cit. p. 121). Mas, convém sublinhá-lo, sendo este dinamismo humano precisamente dinamismo de Deus no homem, realizar-se-á sempre no arrependimento, na humildade e na confiança - portanto na fé - isto é na certeza de que o Inefável é a origem, o fim e o fundamento último da minha atividade que será cada vez mais livre e humana. A deificação - tornar-se plenamente humano em Deus - "é a apropriação deste dom por um esforço pessoal, porque a deificação não é uma ação física ou mágica sobre o homem, mas uma ação interior, uma obra da graça no homem. Esta obra realiza-se, pois com o concurso da liberdade humana e não a nosso capricho" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 150). Sim, porque Deus é a sua realidade última, o homem disponível à sua presença está efetivamente a caminho de si mesmo, da profundidade última do seu destino, e está empenhado nesta caminhada - ele caminha - com todo o seu ser. "Evitemos, nota o padre Yelchaninov, viver superficialmente, e vivamos até ao máximo das nossas forças físicas e espirituais. Quando empenhamos o máximo das nossas forças, não nos esgotamos, mas, ao contrário, aumentamos a nossa força" (Citado por G. P. Fedotov, op. cit. p. 431).

    O novo nascimento [o batismo] marca o princípio de uma vida nova para nós, um selo, uma garantia, uma iluminação. Por isso é necessário que nos esforcemos por nos guardarmos a todo o preço de cometer ações vis, a fim de que não voltemos atrás como o cão para sua imundície" (sic La Foi orthodoxe, PG 94, eol. 1121 CD). João Damasceno sublinha aqui, não sem ironia, que o batismo - imersão e emersão na água - não tem verdadeiro alcance senão em função daquilo que se lhe segue: uma vida inteira, porque animada pela presença de Deus, vivida no esforço como uma passagem sempre renovada da morte de uma existência desumana para uma plenitude de vida. Como nota o padre Schmemann, "na sua auto-suficiência, o mundo e tudo o que nele se encontra não tem significado. Assim, por muito que façamos da nossa vida um fim em si, não subsiste nenhuma das razões de viver, porque todas terminam com a morte. É só quando renunciamos livremente, totalmente e sem condições a bastar-nos a nós próprios e descobrimos assim o sentido profundo da nossa vida em Cristo que a novidade de vida - nova tomada de posse do mundo - nos é dada. O mundo torna-se, então, o sacramento da presença de Cristo, o dinamismo do Reino e da vida eterna... O batismo marca, assim, a morte da nossa auto-suficiência, uma morte que é "semelhante à de Cristo," porque a Cruz de Cristo é a manifestação deste abandono total de si. E uma vez que a morte de Cristo "esmagou a morte" no momento em que ela revela o significado e a força última da vida, a nossa "morte" a nós mesmos nos une à vida nova, "vida em Deus." O significado desta "nova existência" ressalta do fato de o batizado ser revestido, após o seu batismo, com uma veste branca. É a indumentária de um rei. O homem é de novo rei da criação. O mundo tornou-se outra vez a sua vida e não a sua morte, porque agora ele sabe o que fazer dele. Recebeu de novo a alegria e o poder da sua verdadeira natureza humana" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 54). A passagem incessante para uma vida autêntica é vivida pelo crente no arrependimento sempre renovado nos cultos - deles vimos já que constituem em si mesmos um resumo deste caminhar para a verdadeira humanidade - e a oração pessoal - abertura sempre renovada ao Inefável - no amor do seu próximo provado em atos, na criação de uma sociedade e de um mundo à medida do homem. Este, assim relançado para a realização do seu destino está, por isso, em peregrinação, em constante busca. "Procurar-se a si e ao outro: eis o fim da vida tal como nós a atingimos já em Deus" (Rudolf Biach: Das Geheimnis des heiligen Berges. Viena, 1949, p. 27), afirma um monge atonita contemporâneo.

    Esta busca constante na fé que se centra em redor da oração e do amor deu lugar, nos países ortodoxos, particularmente na Rússia, a uma transposição, por assim dizer geográfica, deste movimento espiritual: as peregrinações. Elas são a "expressão materializada de uma grande nostalgia de Deus, do desejo de O encontrar, de receber a sua bênção, seja através de um lugar santo, seja por intermédio de um dos seus servidores" (Bemard Schultze, S. J. e Johannes Chrysostomus O.S.B.: Die Glaubenswelt der orthodoxen Kirche. Salzburgo, 1961, p. 37). O itinerário percorrido pelo peregrino sobre a terra torna-se símbolo do itinerário profundo da morte à vida, do ódio ao amor, da esterilidade à criação, da ausência de equilíbrio interior à harmonia. "Quando deixamos as nossas aldeias e lançamos o olhar em redor de nós, escreve uma simples aldeã russa do século passado, descrevendo a emoção que sentiu na sua primeira peregrinação - pois bem, pareceu-nos que o mundo de Deus não tinha limites nem fim. Que graça divina resplandece ao alto, das moradas celestes! E em baixo, a meus pés, a erva verde e, as espigas doiradas e a floresta que parece invencível. Quando se caminha no silêncio ou quando se descansa sobre a terra, julga-se ouvir todo o tempo contos cheios de doçura. Tudo isto sussurra, fervilha, murmura, escorre em redor de ti, como se o próprio Senhor te conduzisse pela voz de toda a criação" (Citado por Nicolas Arseniev, op. cit. p. 18). E um outro peregrino acrescenta: "Muitos aldeãos com calçado de casca de árvore vagueiam neste mundo, em busca da verdade" (Ibid. p. 19).

    Hoje ainda, mesmo que não subsista já o espetáculo de peregrinos "no terreno" (Sabe-se entretanto que hoje, na Rússia soviética, um certo numero de padre, aos quais o governo recusou autorização para exercerem oficialmente o seu ministério, percorrem o país pregando e dialogando com as pessoas pelos caminhos e pelas aldeias) a peregrinação é bem a expressão da situação do homem disponível para o dinamismo de Deus entrado na humanidade em Cristo e animando cada um pelo Espírito Santo: o ser humano está de novo a caminho da realização da sua vocação profunda, na atividade intensa de todas as suas faculdades e na inteira confiança na presença de Deus. Esta certeza é a origem de um dinamismo social - a Igreja e a sua missão - e psicológico - a oração, - dinamismo que se torna preciso examinar mais de perto.

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    Folheto Missionário número P108b

    Edição da Igreja da Proteção de Nossa Senhora

    Holy Protection Russian Orthodox Church

    2049 Argyle Ave. Los Angeles, California 90068

    Editor: Bishop Alexander (Mileant).

     

    (igreja_ortodoxa_2.doc, 09-08-2000).

     

    Edited by

    Date

    Jose Arimatea

    09-08-2000