Os Limites da
Igreja
Arcipreste George Florovsky ( 1893-1979)
Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.
Padre George Florovsky foi um proeminente teólogo russo. Ele deixou a Rússia depois da Revolução e foi perseguir uma carreira acadêmica distinguida, primeiro como Professor de estudos Patrísticos (1926-1939) e Dogmática (1939-1948) no Instituto São Sérgio de Paris, depois como Reitor do Seminário São Vladimir em Nova York (1950-1955), e a seguir como Professor de Divindade na Universidade Harvard.
É
muito difícil dar uma definição exata e firme de ‘seita’ ou ‘cisma’ ( eu distingo a definição teológica da simples descrição canônica), já que a seita na Igreja é sempre algo contraditório e não natural, um paradoxo e um enigma. pois a Igreja é unidade, e o todo do seu ser está nessa unidade e união, de Cristo e em Cristo. ‘Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo’ (I Cor. 12:13) e o protótipo dessa unidade é a Trindade coessencial. A medida dessa unidade é catolicidade ou comunidade (sobornost), onde a impenetrabilidade da consciência pessoal é amolecida — e até mesmo removida — em unidade de pensamento e alma, e a multidão dos que crêem é uma só coração e alma (cf. Atos 4:32). Uma seita, de outro lado, é separação, solidão, a perda e negação da comunidade. O espírito sectário é o opositor direto do espírito da Igreja.A questão da natureza e significado das divisões e seitas na Igreja foi posta em toda sua agudeza tão cedo quanto as antigas disputas batismais do século terceiro. Naquele tempo, São Cipriano de Cartago desenvolveu com corajosa consistência uma doutrina da completa ausência de graça em todas as seitas, precisamente como uma seita. O significado completo e toda ênfase lógica de seu arrazoado está na convicção de que os sacramentos são estabelecidos na Igreja. Isso quer dizer que, eles são efetivados e só podem ser efetivados na Igreja, em comunhão e em comunidade. Assim, qualquer violação da comunidade e unidade em si conduz imediatamente para além de da última barreira para algum decisivo ‘estar fora.’ Para São Cipriano todo cisma é uma partida para fora da Igreja, para fora da terra santa e santificada onde só nela nasce a primavera batismal, as águas da salvação, quia una est aqua in ecclesia sancta ( Epístola, lxxi,2).
O ensinamento de São Cipriano quanto à ausência de graça nas seitas é só o lado oposto de seu ensinamento acerca da unidade e comunidade. Esse não é o lugar nem momento para recolher e relatar as deduções e provas de São Cipriano. Cada um de nós se lembra delas e as conhece, e é levado a conhece-las e levado a se lembrar delas. Elas não perderam a força nesses dias atuais. A influência histórica de São Cipriano foi contínua e poderosa. Falando estritamente, em suas premissas teológicas o ensinamento de São Cipriano nunca foi desaprovado. Mesmo Agostinho não estava muito longe de São Cipriano. Ele argumentou com os Donatistas, não com o próprio São Cipriano, e não tentou refutar esse último; na verdade, seu argumento foi mais sobre medidas e conclusões práticas. Em seu arrazoado sobre a unidade da Igreja, sobre a unidade de amor como uma condição necessária e decisiva para o poder salvador dos sacramentos, Agostinho, na verdade, simplesmente repete São Cipriano com novas palavras.
Mas as conclusões práticas tiradas por São Cipriano não foram aceitas e sustentadas pela consciência da Igreja. Pode-se perguntar como isso foi possível, se suas premissas nunca foram nem disputadas nem postas de lado. Não há necessidade de se entrar em detalhes das relações canônicas da Igreja com sectários e heréticos; é uma história imprecisa e envolvente o suficiente. É suficiente afirmar que há ocasiões em que, por suas próprias ações, a Igreja dá a entender que os sacramentos dos sectários — e mesmo dos heréticos —são válidos, que os sacramentos podem ser celebrados fora dos estritos limites canônicos da Igreja. A Igreja costumeiramente recebe aderentes vindos de seitas — ou mesmo de heresias — não por meio do batismo, significando ou supondo por isso, que obviamente eles já foram realmente batizados em suas seitas ou heresias. Em muitos casos a Igreja recebe aderentes até mesmo sem crisma, e às vezes até clero em suas ordens existentes. Além de tudo isso tem que ser entendido e explicado como reconhecimento da validade ou realidade dos correspondentes ritos realizados ‘fora da Igreja.’
Se sacramentos são realizados, no entanto, isso só pode ser por virtude do Espírito Santo, e regras canônicas então estabelecem ou revelam um certo paradoxo místico. Baseado no fato de que a Igreja dá testemunho da extensão de seu território até além dos seus limites canônicos, conclui-se que o ‘mundo exterior’ não começa imediatamente. São Cipriano estava certo: os sacramentos só são realizados na Igreja. Mas ele definiu isso ‘apressadamente’ e muito estreitamente. Não deveríamos, então, argumentar na direção oposta? Onde os sacramentos são realizados, lá está a Igreja. São Cipriano começou da suposição silenciosa de que os limites canônicos e carismáticos da Igreja invariavelmente coincidem, e é essa não provada equação que não foi confirmada pela consciência comunitária da Igreja.
Como um organismo místico, como o Corpo Sacramental de Cristo, a Igreja não pode ser adequadamente descrita somente em termos ou categorias canônicas. É impossível estabelecer ou discernir os verdadeiros limites da Igreja, simplesmente por sinais ou marcas canônicas. Com muita freqüência as fronteiras canônicas determinam as fronteiras carismáticas também, e o que é ligado na terra é ligado por uma indissolúvel ligação ao céu. Mas nem sempre. E ainda com mais freqüência, não imediatamente. Em seu ser sacramental, misterioso, a Igreja ultrapassa todas as normas canônicas. Por essa razão, um corte canônico não significa imediatamente empobrecimento místico e desolação. Tudo que São Cipriano disse sobre a unidade da Igreja e dos sacramentos pode e deve ser aceito. Mas não é necessário desenhar com esses elementos o contorno final ao redor do corpo da Igreja somente por meio de pontos canônicos.
Isso levanta uma questão geral e uma dúvida. São todas essas regras e atos canônicos sujeitos a uma generalização teológica? É possível estabelecer para eles bases teológicas ou dogmáticas? Ou eles, na verdade, representam somente prudência pastoral e indulgência? Não deveríamos entender o modo de ação canônico como um silêncio indulgente a respeito da ausência-de-graça, mais do que como um reconhecimento da realidade ou validade dos ritos cismáticos? E se for assim, é então razoavelmente prudente citar ou introduzir fatos canônicos em um argumento teológico?
Essa objeção é ligada com a teoria do que é chamado de ‘economia’ (oikonomia). No uso geral eclesiástico ‘economia’ é um termo de muitos significados. Em seu sentido mais amplo a palavra abarca e significa o trabalho todo de salvação (cf. Coloss. 1:25; Efes. 1:10; 3:2-9). A Vulgata normalmente traduz esse termo por dispensatio. Em linguagem canônica ‘economia’ não se tornou um termo técnico. É mais uma palavra descritiva, uma espécie de característica geral: ‘economia é oposto a ‘severidade’(na Igreja, em português ‘acribia,’ akribeia) como uma espécie de afrouxamento da disciplina da Igreja, uma isenção ou exceção da ‘regra estrita’ (ous strictum) ou da regra geral. O motivo determinante da ‘economia’ é precisamente ‘filantropia,’ paciência pastoral, um cálculo pedagógico — a dedução é sempre de utilidade prática. ‘Economia’ é um aspecto da consciência pedagógica mais do que da consciência canônica. ‘Economia’ pode e deve ser aplicada por cada pastor individual em sua paróquia, ainda mais por um bispo ou concílio de bispos. Pois ‘economia’ é pastoral e pastoral é ‘economia.’ Nisso está toda a força e vitalidade do princípio ‘econômico’ — e também suas limitações. Nem toda questão pode ser colocada e respondida em termos de ‘economia.’
Deve-se perguntar, então, se é possível tratar a questão do batismo dos sectários e heréticos como uma questão somente de ‘economia.’ Certamente, enquanto for uma questão de salvar almas perdidas para a verdade Católica, de traze-las para o ‘mundo da verdade,’ então qualquer curso de ação deve ser ‘econômico’; isto é, pastoral, compassivo, amoroso. O pastor deve deixar os noventa e nove e procurar a ovelha perdida. Mas por essa razão mesmo, a necessidade é pela maior e completa sinceridade e clareza direta. Não só é requerida inequívoca acurácia, rigor e clareza — na verdade, acribia (akribeia) — na esfera do dogma (como, de outra forma, pode ser obtida unidade de mente?), mas acurácia e clareza são necessárias acima de tudo em diagnóstico místico. Precisamente por essa razão a questão dos ritos dos sectários e heréticos deve ser perguntada e respondida em termos da mais estrita acribia. Pois aqui não tanto uma quaestio iuris (questão jurídica) quanto uma quaestio facti (questão de fato), e, na verdade, um fato místico, uma realidade sacramental. Não é uma questão de ‘reconhecimento’ tanto quanto uma questão de diagnóstico; é necessário identificar e discernir realidades místicas.
Muito menos é a aplicação de ‘economia’ para tal questão compatível com o ponto-de-vista radical de São Cipriano. Se além dos limites canônicos da Igreja, o deserto sem graça começa imediatamente, e se os cismáticos não foram batizados e ainda habitam nas trevas que precedem o batismo, então, perfeita clareza, severidade e firmeza são ainda mais necessárias e indispensáveis nos atos de julgamento da Igreja. Aqui nenhuma ‘indulgência’ é apropriada ou mesmo permissível. É de fato concebível que a Igreja devesse receber sectários ou heréticos em seu próprio corpo não por meio do batismo, simplesmente para tornar seus passos decisivos mais fáceis? Isso certamente seria uma complacência muito temerária e perigosa. Pois, ela seria conivente com a fraqueza humana, com amor-próprio, e falta de fé, uma conivência ainda mais perigosa por criar a aparência de um reconhecimento pela Igreja que os sacramentos e ritos cismáticos são válidos, não só na mente dos cismáticos ou pessoas de fora, como na consciência da maioria das pessoas da Igreja e até mesmo de seus líderes.
Além disso, esse modo de ação é aplicado porque ele cria essa aparência. Se de fato, a Igreja estivesse completamente convencida de que nas seitas e heresias o batismo não é realizado, para que fim ela receberia cismáticos sem batismo? Seguramente não para simplesmente salva-los por esse passo, da falsa vergonha de confessarem abertamente que eles não tinham sido batizados. Pode esse motivo ser considerado honorável, convincente e de boa reputação? Pode ele beneficiar os que chegam, reunindo-os através de ambigüidades e supressão da verdade? Para a razoável pergunta se seria ou não possível, por analogia, unir judeus e muçulmanos à Igreja por ‘economia’ e sem batismo, o Metropolita Anthony (Khrapovitsky) respondeu com completa candura: ‘Ah! mas todos tais neófitos — e até mesmo aqueles batizados no nome de Montanus e Priscilla — não iriam eles mesmos pleitear entrar na Igreja sem imersão e sem a proclamação das palavras: ‘Em nome do Pai etc...’ Tal pleito só poderia ser feito por um confuso entendimento da graça da Igreja por aqueles sectários e cismáticos cujo batismo, louvação e sistema hierárquico diferissem externamente pouco daqueles da Igreja. Seria muito insultante para eles, por sua vez, que em seu retorno à Igreja, tivessem que se sentar com pagãos e judeus. Por essa razão, a Igreja, indulgente com a fraqueza deles, não realizou com eles o ato externo do batismo, mas deu a eles sua graça pelo segundo sacramento.’ (Fé e Razão,1916, 8-9, pgs. 887-888).
Do argumento do Metropolita Anthony, o senso comum tiraria precisamente a conclusão oposta. para conduzir ‘neófitos’ fracos e sem raciocínio para o ‘claro entendimento da graça da Igreja’ que eles não têm, seria, mais do que tudo, necessário e apropriado realizar com eles o ato externo do batismo, ao invés de dar a eles, e a muitos outros, por uma fingida acomodação à suas ‘suscetibilidades,’ não só uma desculpa mas também um campo eles próprios se iludirem através do fato equívoco que seu ‘batismo, louvação e sistema hierárquico pouco externamente daqueles da Igreja.’
Pode-se perguntar quem deu à Igreja esse direito de não somente mudar, mas simplesmente abolir o ato externo do batismo, realizando-o em tais casos só mentalmente, por implicação ou intenção na celebração do segundo ‘sacramento’ (isto é, crisma) sobre o não-batizado. Admissivelmente, em casos especiais e excepcionais o ‘ato externo,’ a ‘forma,’ pode, de fato, ser abolida; tal é o caso do batismo do mártir em sangue, ou mesmo do assim chamado baptisma flaminis (batismo nas chamas). Mas isso é admissível somente em casu necessitatis (caso de necessidade). Além disso, não há nenhuma analogia entre esses casos e uma conivência sistemática com a sensibilidade e auto-ilusão dos outros. Se ‘economia’ é paciência pastoral que leva a vantagem da salvação das almas humanas, então nesses casos só se poderia falar de ‘economia reversa.’ Seria um deliberado retrocesso para o equívoco e obscuridade por conta de um sucesso puramente externo, já que a recepção na Igreja de ‘neófitos’ não pode ter lugar com tal encobrimento. É escassamente possível atribuir à Igreja intenção tão perversa e ladina. E de qualquer forma, o resultado prático dessa ‘economia’ deve ser considerado totalmente inesperado. Pois na própria Igreja surgiu a convicção entre a maioria de que sacramentos são realizados mesmo entre cismáticos, e que mesmo nas seitas, há uma hierarquia válida, apesar de proibida. A verdadeira intenção da Igreja em seus atos e regras pareceria ser muito difícil de discernir, e desse ponto-de-vista assim como das explicações ‘econômicas’ dessas regras não pode ser encarada como convincente.
A explicação econômica cria ainda maiores dificuldades quando nós consideramos suas premissas teológicas. Só se pode atribuir escassamente à Igreja o poder e o direito, como se fosse, de converter o ‘não-tem sido’ em ‘tem-sido,’ para mudar o ‘sem-sentido’ em ‘válido,’ como o Professor Diovuniotis o expressa (Church Quarterly Review, nº 231 [abril 1931, p. 97] ‘de acordo com a economia.’ Isso daria uma particular agudeza para a questão se é ou não possível receber clero cismático ‘em suas posições preexistentes.’ Na Igreja Russa aderentes do Catolicismo ou dos Nestorianos,etc., são recebidos em comunhão ‘através de retratação da heresia,’ isto é, através do sacramento do arrependimento. Ao clero é dada uma absolvição por um bispo, e por ai, a inibição que há num clérigo cismático é removida. Pergunta-se se é concebível que nessa liberação e absolvição de pecado haja também, realizados silenciosamente — e mesmo secretamente —batismo, confirmação, ordenação como diácono ou presbítero, e às vezes até mesmo sagração de bispo, sem nenhuma ‘forma’ ou claro e distintivo ‘ato externo’ que pudesse nos habilitar a notar e considerar, que sacramentos estão sendo realizados.
Aqui há um duplo equívoco, tanto da posição do motivo quanto da posição do fato em si. Pode alguém, em resumo, celebrar um sacramento em virtude só de ‘intenção’ e sem um ato visível? Lógico que não. Não porque pertença à ‘forma’ algum efeito auto-suficiente ou mágico, mas precisamente porque na celebração de um sacramento o ‘ato externo’ e o jorrar da graça são, em substância, indivisíveis e inseparáveis. certamente, a Igreja é a ‘despenseira da graça’ e à ela é dado o poder de preservar e ensinar esses dons de graça. Mas o poder da Igreja não se estende até as próprias bases da existência Cristã. é inconcebível que a Igreja possa ter o direito, ‘por conta da economia,’ de admitir para funções clericais sem ordenação o clero de confissões cismáticas, até daqueles que não preservaram a ‘sucessão’ apostólica, remediando não só todos os defeitos mas também uma completa falta de graça, e concedendo poder e reconhecimento por meio de uma ‘intenção’ não expressada.
Em tal interpretação o sistema sacramental todo da Igreja torna-se muito frouxo e elástico. Khomiakov, também, não foi suficientemente cuidadoso, quando, defendendo a nova prática grega de receber Latinos pelo batismo, ele escreveu a Palmer que ‘todos os sacramentos são completados somente no seio da verdadeira Igreja e não interessa se eles serão completados de uma forma ou outra. Reconciliação (com a Igreja) renova os sacramentos ou os completa, dando um completo e Ortodoxo significado para o rito que foi antes, fosse insuficiente ou heterodoxo, e a ‘repetição’ dos sacramentos precedentes está virtualmente contida no rito ou fato da reconciliação. Portanto, a repetição visível do batismo ou confirmação, apesar de desnecessária, não pode ser considerada com errônea, e só estabelece uma diferença ritual sem qualquer diferença de opinião’ (Russia and the English Church, cap. VI, p. 62). Isso é impossível. A ‘repetição’ de um sacramento é não só supérflua como impermissível. Se não havia sacramento ou o que havia sido realizado previamente fora em um rito imperfeito, herético, o sacramento deve ser realizado pela primeira vez — e com completa sinceridade e candura. Em todo caso, os sacramentos Católicos não são simples ‘ritos’ e não é possível tratar o aspecto externo de uma celebração sacramental com tal relativismo disciplinar.
A interpretação ‘econômica’ dos cânones tem que ser provável e convincente, mas só na presença de provas diretas e perfeitamente claras, visto que é geralmente apoiada por dados indiretos e muito freqüentemente por intenções e conclusões indiretas. A interpretação econômica não é o ensinamento da Igreja. É somente uma ‘opinião teológica’ privada, muito tardia e controversa, que surgiu num período de confusão e decadência teológica num esforço apressado para se dissociar, tanto quanto possível, da teologia Romana.
A teologia romana admite e reconhece que permanece em seitas uma hierarquia válida e até, num certo sentido, a ‘sucessão apostólica,’ de maneira que, sob certas condições, sacramentos podem ser realizados — e realmente são realizados — entre cismáticos e até mesmo entre heréticos. As premissas básicas dessa teologia sacramental já haviam sido estabelecidas com suficiente definição pelo Bem aventurado Agostinho, e os teólogos Ortodoxos têm toda razão para levar a teologia de Agostinho em conta, em sua síntese doutrinal.
A primeira coisa a notar em Agostinho é o modo orgânico pelo qual ele relaciona a questão da validade dos sacramentos com a doutrina da Igreja. A realidade dos sacramentos celebrados pelos cismáticos significa para Agostinho a continuação de suas ligações com a Igreja. Ele afirma diretamente que nos sacramentos dos sectários a Igreja está ativa: alguns ela engendra em si própria, outros elas engendra fora de si própria, de sua virgem-serva, e o batismo cismático é válido por essa razão, tanto quanto o batismo realizado pela Igreja (de bapt. i, 15, 23). O que é válido nas seitas é o que nelas é da Igreja, o que permanece com elas como uma parte do sagrado núcleo interno da Igreja, através do que elas estão com a Igreja. In quibusdam rebus nobiscum sunt.
A unidade da Igreja é baseada em uma dupla ligação — a ‘unidade do Espírito’ e a ‘ligação de paz’ (cf. Efes. 4:3). Nas seitas e cismas a ‘ligação de paz’ está quebrada e partida, mas a ‘unidade de Espírito’ nos sacramentos não está inteiramente quebrada. Esse é o único paradoxo da existência sectária: a seita permanece unida com a Igreja na graça dos sacramentos, e isso torna-se uma condenação já que amor e mutualidade comunitária secaram e morreram.
A segunda distinção básica de Agostinho é ligada com isso, a distinção entre a ‘validade’ ou ‘realidade’ dos sacramentos e sua ‘eficácia.’ Os sacramentos dos cismáticos são válidos; isto é, eles são sacramentos genuínos, mas eles não são eficazes em virtude do cisma e divisão. Pois em seitas e cismas o amor seca, e sem amor a salvação é impossível. Há dois lados para a salvação: a ação objetiva da graça de Deus, e o esforço subjetivo do homem ou fidelidade. O santo e santificador Espírito ainda respira nas seitas, mas na teimosia e impotência dos cismas a cura não é realizada. Não é verdade que nos ritos cismáticos nada é realizado, pois, se eles são considerados ser somente atos e palavras vazias, destituídos de graça, pela mesma marca não só eles são vazios, como eles são convertidos em uma profanação, uma sinistra imitação. Se os ritos dos cismáticos não são sacramentos, então eles são uma caricatura blasfema, e nesse caso nem supressão ‘econômica’ de fatos nem polimento ‘econômico’ sobre os pecados é possível. O rito sacramental não pode ser só um rito, vazio mas inocente. O sacramento é realizado na realidade.
No entanto, é impossível, argumenta Agostinho, dizer que nas seitas os sacramentos são de utilidade, são eficazes. Os sacramentos não são atos mágicos. Na verdade, a Eucaristia em si pode também ser tomada ‘para julgamento ou condenação,’ mas isso não refuta a realidade ou ‘validade’ da Eucaristia. O mesmo pode ser dito do batismo: a graça batismal deve ser renovada em incessantes esforço e serviço, de outra forma, ela se torna ‘ineficaz.’ Desse ponto-de-vista São Gregório de Nissa atacou com grande energia a prática de postergar o batismo para a hora da morte, ou ao menos para anos avançados, para evitar a poluição da veste batismal.Ele transferiu a ênfase. Batismo não é só o final de uma existência pecaminosa, e sim, é o começo de tudo. A graça batismal, não é simplesmente a remissão de pecados, mas um presente ou garantia. O nome do batizado pode entrar na lista do exército, mas a honra de um soldado está em seu serviço, não só em seu chamado. O que o batismo significa sem feitos espirituais?
Agostinho quis dizer a mesma coisa em sua distinção entre ‘caráter’ e ‘graça.’ Em todo caso, fica em todo batizado um ‘sinal’ ou ‘selo,’ mesmo que ele falhe e parta, e cada um será testado em relação a esse ‘ ‘sinal’ ou ‘garantia’ no Dia do Juízo. Os batizados são distinguidos dos não-batizados mesmo que a graça batismal não tenha florescido em seus trabalhos e feitos, mesmo quando eles tenham corrompido e desperdiçado a sua vida toda. essa é a indelével conseqüência do toque de Deus. Essa clara distinção entre os dois fatores inseparáveis da existência sacramental, graça divina e amor humano, é característica do todo da teologia sacramental de Agostinho. Os sacramentos são realizados por graça não por amor, no entanto o homem é salvo em liberdade e não em compulsão, e por essa razão a graça não se acende com uma chama vivificante fora de comunidade e amor.
Uma coisa permanece obscura. Como a atividade do Espírito continua além dos limites canônicos da Igreja? Qual é a validade do sacramento sem comunhão, das vestes roubadas, dos sacramentos em mãos de usurpadores? Recente teólogo romano responde a essa questão pela doutrina da validade dos sacramentos ex opere operato. Em Agostinho essa distinção não existe, mas ele entendeu a validade dos sacramentos realizados fora da unidade canônica no mesmo sentido. De fato ex opere operato aponta para a independência do sacramento da ação pessoal do ministro. A Igreja realiza o sacramento e, nela, Cristo o Sumo Sacerdote. Os sacramentos são realizados pelas orações e atividades da Igreja, ex opere orantis et operantis ecclesiae. É nesse sentido que a doutrina da validade ex opere operato, deve ser aceita. Para Agostinho não era tão importante que os sacramentos os cismáticos fosse ‘ilegal’ ou ‘ilícito’ (illicita); muito mais importante era o fato de que o cisma era uma dissipação de amor. Mas o amor de Deus pode superar a falha do amor no homem. Nas próprias seitas — e mesmo entre os heréticos — a Igreja continua a realizar seu trabalho salvador e santificador. Não pode seguir daí, talvez, que nós devamos dizer que os cismáticos ainda estão na Igreja. Em todo caso isso não seria preciso e soaria equivocadamente. Seria mais verdadeiro dizer que a Igreja continua a trabalhar no cisma na expectativa daquela hora misteriosa quando o coração teimoso será derretido no calor da graça proveniente de Deus, quando a vontade e sede por comunidade e unidade finalmente acenderá a chama. A ‘validade’ dos sacramentos entre os cismáticos é a misteriosa garantia de seu retorno à plenitude e unidade Católica.
A teologia sacramental de Agostinho não foi recebida pela Igreja Oriental na Antigüidade nem pela teologia Bizantina, mas não porque tenham visto nela alguma coisa estranha ou supérflua. Agostinho simplesmente não era bem conhecido no Oriente. Nos tempos modernos a doutrina dos sacramentos tem, com uma certa freqüência, sido exposta no Oriente Ortodoxo, e na Rússia, num modelo romano, mas ainda não tem havido uma apropriação criativa da concepção de Agostinho.
A teologia contemporânea Ortodoxa deve expressar e explicar a prática canônica tradicional em relação a heréticos e cismáticos na base daquelas premissas gerais que foram estabelecidas por Agostinho.
É necessário manter firmemente na mente que em afirmando a ‘validade’ dos sacramentos e da própria hierarquia nas seitas, Agostinho de modo nenhum relaxou ou removeu o limite dividindo seita e comunidade. Isso não é tanto um limite canônico como um limite espiritual: amor comunal na Igreja e separatismo e alienação no cisma. Para Agostinho esse era o limite da salvação, já que a graça opera fora da comunidade, mas não salva. ( É apropriado notar que aqui, também, Agostinho segue de perto Cipriano, que afirmava que não sendo na Igreja, nem mesmo martírio por Cristo valeria.) Por essa razão, apesar de toda ‘realidade’ e ‘validade’ da hierarquia cismática, é impossível falar-se em estrito senso em retenção da ‘sucessão apostólica’ além dos limites da comunidade canônica. Essa questão foi investigada exaustivamente e com grande discernimento no notável artigo de C.G. Turner, ‘The Apostolic Sucession,’ em Essays on the Early History of the Church and the Ministry, editado por H. B. Swete (1918).
Disso segue sem dúvida que a assim chamada teoria dos ‘ramos’ é inaceitável. Essa teoria pinta as partições do mundo Cristão de modo muito complacente e confortável. O observador pode não ser capaz de discernir imediatamente os ‘ramos’ cismáticos do tronco Católico. Em sua essência, além disso, um cisma não é simplesmente um ramo. Ele é também a vontade de ser um cisma. É a misteriosa e até enigmática esfera além dos limites canônicos da Igreja, onde os sacramentos ainda são celebrados e onde corações, com freqüência, ainda ardem com fé, em amor e obras. Devemos admitir isso, mas devemos lembrar que o limite é real, que a unidade não existe. Khomiakov parece que estava falando disso quando disse: ‘Desde que a Igreja terrena e visível não é a totalidade e perfeição da Igreja toda que o Senhor apontou para aparecer no julgamento final de toda criação, ela age e conhece somente dentro de seus próprios limites; e (de acordo com as palavras do Apóstolo Paulo aos Corintios, I Cor. 5:12) não julga o resto da humanidade, e somente olha aqueles como excluídos, quer dizer, não pertencentes a ela, que excluíram a si próprios. O resto da humanidade, seja estranho à Igreja, ou unido à ela por ligações com Deus não reveladas à Igreja, essa deixa para o Julgamento do grande Dia’ (Russia and the English Church, cap.xxiii, p. 194).
No mesmo sentido, o Metropolita Philaret de Moscou decidiu falar de Igrejas que ‘não eram puramente verdadeiras’: ‘Anotai vós, eu não pretendo chamar de falsa qualquer Igreja que acredita que Jesus é o Cristo. A Igreja Cristã só pode ser puramente verdadeira, confessando a verdade e divinos ensinamentos salvadores sem as falsas misturas e opiniões perniciosas de homens, ou não puramente verdadeira, misturando com a verdade e os ensinamentos salvadores da fé em Cristo, as falsas e perniciosas opiniões de homens’ (Conversation between a Seeker and a Believer Concerning the Ortodoxy of the Greco-Russian Church. Moscou 1831, pgs. 27-29). Vós esperais agora que eu emita julgamento sobre a outra metade do Cristianismo atual,’ o Metropolita disse na conversação de encerramento, ‘mas eu simplesmente olho para eles; em parte eu vejo como o Cabeça e Senhor da Igreja cura as muitas feridas profundas feitas pela antiga serpente em todas as partes e membros de Seu Corpo, aplicando às vezes remédios delicados, às vezes remédios fortes, até mesmo fogo e ferro, para amaciar a dureza, eliminar o veneno, limpar as feridas, extirpar crescimentos malignos, restaurar espírito e vida nos membros entorpecidos e semi-mortos. Desse modo eu atesto a minha fé de que, no fim, o poder de Deus triunfará abertamente sobre a fraqueza humana, o bem sobre o mal, a unidade sobre a divisão, vida sobre a morte’ (ibid. p. 135).
Essas colocações do Metropolita Philaret são só um começo. Nem tudo está claro e completamente expressado neles. Mas a questão é colocada verdadeiramente. Existem muitas ligações, ainda não partidas, pelas quais os cismas são mantidos juntos em uma certa unidade com a Igreja. O todo de nossa atenção deve ser concentrada e dirigida para a remoção de teimosia da dissensão. ‘Nós não procuramos conquistar,’ diz São Gregório de Nazianzo, ‘mas o retorno de nossos irmãos, cuja separação de nós está nos arrancando à parte.’
Folheto Missionário número P95b
Copyright © 2004 Holy Trinity Orthodox Mission
466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011
Redator: Bispo Alexandre Mileant
(limits_church_p.doc, 04-29-2004)
Edited by |
Date |