A Sempre-Virgem

Mãe de Deus

Arcipreste George Florovsky

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.

 

Conteúdo:

O ensinamento a respeito da Virgem Maria. A natureza de Cristo. Uma relação única. A eleição Divina. Cumpra-se em mim segundo a tua palavra. Uma descendente de Eva também. A perfeição pessoal dela. A Mãe de nós todos.

 

 

O ensinamento a respeito da Virgem Maria.

Todo ensinamento dogmático a respeito da Virgem Maria pode ser condensado nesses dois nomes dela: a Mãe de Deus (Theotokos) e a Sempre-Virgem (aiparthenos). Ambos nomes têm a autoridade formal da Igreja, uma autoridade ecumênica de fato. O Nascimento Virgem é plenamente atestado no Novo Testamento e tem sido parte integral da tradição Católica desde sempre. "Encarnado pelo Espírito Santo no seio de Maria Virgem" (ou "Nascido de Maria Virgem") é uma frase do Credo. Não é meramente uma declaração do fato histórico. É precisamente uma declaração do Credo, uma solene profissão de . O termo "Sempre-Virgem" foi formalmente endossado pelo Quinto Concílio Ecumênico (553). E Theotokos é mais do que um nome ou título honorífico. É mais uma definição doutrinal em uma palavra. Tem sido uma pedra-de-toque da verdadeira fé e um sinal distintivo da Ortodoxia mesmo antes do Concílio de Éfeso (432).

Já São Gregório de Nazianzo previne Cledonius: "se alguém não reconhece Maria como Theotokos, ele é estranho à Deus" (Epíst. 101). Como questão de fato, o nome foi amplamente usado pelos Padres do século quarto e possivelmente até do terceiro (por Orígenes, por exemplo, se nós pudermos confiar em Sócrates, Hist. Eccles., VII, 32, e os textos preservados em Catenas, por exemplo In Lucan Hom. 6 e 7 , ed. Rauer, 44. 10 e 50. 9). Esse termo já era tradicional quando ele foi contestado e repudiado por Nestorius e seu grupo. A palavra não ocorre na Escritura, assim como o termo omousios (coessencial) também não ocorre. Mas seguramente, nem em Nicéia nem em Éfeso a Igreja estava inovando ou impondo um novo artigo de fé. Uma palavra "não escritural" foi escolhida e usada, precisamente para dar voz e salvaguardar a crença tradicional e a convicção comum de séculos. É verdade, lógico, que o Terceiro Concílio Ecumênico estava preocupado principalmente com o dogma Cristológico e por isso não formulou nenhuma doutrina Mariológica especial.

Mas precisamente por essa mesma razão foi verdadeiramente notável que um termo mariológico tenha sido selecionado e colocado como o teste definitivo da Ortodoxia Cristológica, para se usado, como se fosse, como uma contrassenha doutrinal na discussão de Cristologia. "Esse nome," diz São João Damasceno, "contém todo mistério da Encarnação" (De Fide Orthod., 3. 12). O motivo e o propósito de tal escolha são óbvios. A doutrina Cristológica nunca poderá ser acurada e adequadamente estabelecida a menos que um ensinamento muito definido sobre a Mãe de Cristo tenha sido incluído. De fato, todas as dúvidas mariológicas e erros dos tempos modernos dependem, em última análise, precisamente de uma completa confusão Cristológica. Eles revelam uma desesperança no ‘conflito na Cristologia.’

Não há espaço para a Mãe de Deus numa "Cristologia reduzida." Os teólogos protestantes simplesmente não têm nada a dizer a respeito dela. No entanto, ignorar a Mãe significa mal interpretar o Filho. De outro lado, a pessoa da Bendita Virgem pode ser apropriadamente entendida e descrita corretamente somente numa colocação e contexto Cristológico. Mariologia tem que ser um capítulo no tratado da Encarnação, nunca sendo estendido em um "tratado" independente. Não, lógico, num capítulo opcional ou ocasional, não num apêndice. Ela pertence ao próprio corpo da doutrina. O mistério da Encarnação inclui a Mãe do Encarnado. Algumas vezes, no entanto, essa perspectiva Cristológica tem sido obscurecida por um exagero devocional, por um pietismo desbalanceado. Piedade tem que ser sempre guiada e conferida por dogma. De novo, deve haver um capítulo Mariológico no tratado da Igreja. Mas a doutrina da Igreja em si não é mais do que uma "Cristologia estendida," a doutrina do "Cristo total," totus Christus, caput et corpus.

A natureza de Cristo.

O nome Theotokos enfatiza o fato de que a Criança Que nasceu de Maria não foi um "simples homem," não uma pessoa humana, mas o Filho Único-gerado de Deus, "Um da Santíssima Trindade," ainda que Encarnado. Essa é obviamente a pedra-de-toque da fé Ortodoxa. lembremos da fórmula de Calcedônia: "Seguindo, então, os santos Padres, nós confessamos um e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo...gerado do Pai como Divindade antes de todos os séculos, mas nos últimos dias, para nós e para nossa salvação, o próprio, nascido de Maria, a Virgem Mãe de Deus, como Homem [a tradução para o inglês é do Dr. Bright]. Toda ênfase é absoluta identidade da Pessoa: o Mesmo, o Próprio, unus idemque em São Leão. Isso implica numa geração dupla do Verbo divino (mas enfaticamente não uma duplicidade de Filho: essa seria precisamente a perversão Nestoriana). Não há mais do que um só Filho: o Um nascido da Virgem Maria é no mais completo sentido possível o Filho de Deus. Como diz São João Damasceno, a Santa Virgem não deu à luz "um homem comum, mas o verdadeiro Deus," contudo "não nu, mas encarnado." O Mesmo, Que por toda eternidade nasceu do Pai, "nesses últimos dias" nasceu da Vigem, "sem qualquer modificação" (De Fide Orth., 3. 12). Não há aqui confusão de naturezas. A "segunda" é justamente a Encarnação. Nenhuma pessoa nova veio a ser quando o Filho de Maria foi concebido e nasceu, mas sim o Filho Eterno de Deus Que foi feito homem. Isso constitui o mistério da divina Maternidade da Virgem Maria. Pois realmente Maternidade é uma relação pessoal, uma relação entre pessoas. Mas, o Filho de Maria foi, na realidade, uma Pessoa divina. O nome Theotokos é uma conseqüência inevitável do nome Theanthropos, o Deus-Homem. Ambos permanecem e caem juntos.

A doutrina da União Hipostática implica em e exige a concepção da divina Maternidade. O mistério da Encarnação tem sido tratado nos tempos moderno com muita infelicidade, com muita freqüência de uma maneira completamente abstrata, e como se fosse não mais do que um problema metafísico ou mesmo um enigma dialético. Se é complacente muito facilmente com a dialética do Finito e Infinito, do Temporal e do Eterno, etc., como se eles não fossem mais do que termos de uma relação lógica ou metafísica. Pode-se assim correr o risco de olhar por cima e perder o verdadeiro foco: a Encarnação foi precisamente um ato poderoso do Deus Vivo, Sua intervenção mais pessoal na existência das criaturas, na verdade, a "descida" de uma Pessoa divina, de Deus em pessoa. De novo, há um sutil mas real sabor docético em muitas tentativas recentes de recolocar a fé tradicional nos tempos modernos. Há uma tendência de superenfatizar a iniciativa divina na Encarnação em tal extensão que a vida histórica co Encarnado em si empalidece dentro do "o Incógnito do Filho de Deus." A identidade direta do Jesus da história e do Filho de Deus é explicitamente negada. O impacto todo da Encarnação é reduzido a símbolos: o Senhor Encarnado é entendido mais com um expoente de algum augusto princípio ou idéia (seja ela Ira de Deus ou Amor, Cólera ou Alegria, Julgamento ou Perdão) do que como uma Pessoa viva. Em ambos os casos as implicações pessoais do Encarnado são olhadas superficialmente ou negligenciadas — quero dizer, nossa adoção na verdadeira filiação de Deus no Senhor Encarnado. Mas , algo muito real e definitivo aconteceu com os homens e para os homens quando o Verbo de Deus "Se fez carne e habitou entre nós," ou ainda "tomou Sua morada no meio de nós" — uma virada muito pictórica de fato: eskinosen em imim (Jo. 1:14).

 

Uma relação única.

"Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher,..." (Gal. 4:4). Essa é uma afirmação escriturística do mesmo mistério com que os Padres estiveram se debatendo em Calcedônia. Mas, qual é o completo significado e propósito da frase: "nascido de mulher"? Maternidade, em geral, não é de modo nenhum exaurida pelo mero fato da procriação física. Seria uma lamentável cegueira se nós ignorássemos o seu aspecto espiritual. De fato, a procriação em si estabelece uma íntima relação espiritual entre a mãe e a criança. Essa relação é única e recíproca, e sua essência é afeição ou amor. Estamos nós autorizados a ignorar essa implicação do fato que nosso Senhor "nasceu da Virgem Maria"? Seguramente, nenhuma redução docética é permissível nesse caso, assim como qualquer aspecto docético deve ser evitado em qualquer outro lugar da Cristologia. Jesus era (e é) o Deus Eterno, e no entanto Encarnado, e Maria foi Sua Mãe no mais completo sentido. De outra forma a Encarnação não teria sido genuína. Mas isso significa precisamente que para o Senhor Encarnado há uma particular pessoa humana com quem Ele tem uma relação muito especial, — em termos precisos, uma para quem Ele não é somente o Senhor e Salvador, mas também Filho.

De outro lado, Maria foi a verdadeira mãe de sua Criança — a verdade de sua maternidade humana não é de menor relevância e importância que o mistério de sua maternidade divina. Mas a Criança era divina. Ainda assim as implicações espirituais de sua maternidade não pode ser diminuída pelo caráter excepcional do caso, nem poderia Jesus falhar em ser verdadeiramente humano em Sua resposta filial para a afeição maternal daquela de quem Ele nasceu. Essa não é uma vã especulação. Seria impertinente de fato se intrometer no sagrado campo dessa intimidade sem paralelo entre a Mãe e a divina Criança. Mas seria ainda mais impertinente ignorar o mistério. Em todo caso, teria sido uma idéia muito pobre se olhar para a Virgem Mãe meramente como um instrumento para nosso Senhor tomar carne. Além disso, tal má interpretação está formalmente excluída pelo ensinamento explícito da Igreja, atestado desde os primeiros tempos: ela não foi simplesmente um "canal" através do qual o Senhor Celestial veio, mas verdadeiramente a mãe de quem Ele tomou Sua humanidade. São João Damasceno sumariza precisamente nessas palavras o ensinamento Católico: Ele não veio como se fosse "através de um tubo," mas assumiu dela (eks avtis), uma natureza humana consubstancial à nossa (De Fide Orth., 3,12).

A eleição Divina.

Maria "achou graça diante de Deus" (Lucas 1:30). Ela foi escolhida e ordenada para servir no mistério da Encarnação. E por esse mistério eterno ou predestinação ela foi num certo sentido posta à parte e recebeu um privilegio e posição únicos no todo da humanidade, não só isso, mas no todo da criação. Foi-lhe dado um nível, como se fosse, transcendente. Ela foi ao mesmo tempo uma representante da raça humana e posta à parte. Há uma antinomia aqui, implicada na divina eleição.Ela foi posta à parte. Ela foi posta numa relação única e sem paralelo com Deus, com a Santíssima Trindade, mesmo antes da Encarnação, como a Mãe prospectiva do Senhor Encarnado, simplesmente porque não foi um acontecimento histórico ordinário, mas uma momentosa consumação do decreto eterno de Deus. Ela tem uma posição única mesmo no divino plano de salvação. Através da Encarnação a humanidade foi restaurada no companheirismo com Deus que havia sido destruído e abrogado pela Queda. A sagrada humanidade de Jesus foi a ponte sobre o abismo do pecado. Porém, essa humanidade foi tomada da Virgem Maria. A Encarnação em si foi um novo começo no destino do homem, o começo de uma nova humanidade.

Na Encarnação o "novo homem" nasceu, o "Último Adão," Ele foi verdadeiramente homem, mas Ele foi mais do que um homem: ‘...o segundo homem, o Senhor é do céu" (1 Cor. 15:47). Como Mãe desse "Segundo Homem," a própria Maria esteve participando do mistério da recriação redimidora do mundo. Seguramente, ela tem que ser contada entre os redimidos. Ela obviamente estava necessitada de salvação. Seu Filho é seu Redimidor e Salvador, assim como Ele é o Salvador do mundo. No entanto, ela é o único ser humano de quem o Redimidor do mundo é também Filho, sua própria Criança a quem ela verdadeiramente deu à luz. Jesus, na verdade, nasceu ‘...nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus" (Jo. 1:13; esse versículo se relaciona tanto à Encarnação quanto à regeneração batismal), mas ainda assim Ele é "o fruto do ventre" de Maria. Seu nascimento sobrenatural é o padrão e a fonte da nova existência, do novo e espiritual nascimento de todos os fiéis, que nada mais é do que uma participação em Sua sagrada humanidade, uma adoção na filiação de Deus — no "segundo homem’, no "último Adão."

A Mãe do "segundo homem" necessariamente tem seu caminho próprio e peculiar na nova vida.Não é muito se dizer que para ela a Redenção foi, num certo sentido, antecipada pelo fato da própria Encarnação, — e antecipada de maneira peculiar e pessoal. "Descerá sobre ti o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra..." (Lucas 1:35). Essa foi uma verdadeira "presença teofânica" — na totalidade da graça e do Espírito. A "sombra’ é exatamente um símbolo teofânico. E Maria ficou verdadeiramente "cheia de graça," gratia plena, keharitomeni. A Anunciação foi, para ela, como se fosse, um Pentecostes antecipado. Somos forçados a arriscar esse ousado paralelismo pela lógica inescrutável da eleição divina. Pois de fato não podemos olhar a Encarnação simplesmente como um milagre metafísico que não se relacionaria com o destino pessoal e existência das pessoas envolvidas. O homem nunca é tratado por Deus como se não fosse mais do que uma ferramenta nas mãos do mestre. Pois o homem é uma pessoa viva. De maneira nenhuma poderia ser simplesmente uma graça "instrumental," quando Maria foi "ensombrada" com o poder do Altíssimo. A posição única da Virgem Maria não é, obviamente, sua conquista própria, nem simplesmente uma "recompensa" por seus "méritos" — nem mesmo, talvez, a totalidade da graça foi dada a ela em "previsão" de seus méritos e virtudes. Isso foi supremamente o dom livre de Deus , no mais estrito sentido — gratia gratis data. Foi uma eleição absoluta e eterna, apesar de não incondicional — pois ela foi condicionada por e relacionada ao mistério da Encarnação. Maria sustenta sua posição única e tem uma "categoria dela própria" não como simples Virgem, mas com a Virgem-Mãe, parthenomitir,como a predestinada Mãe do Senhor. Sua função na Encarnação foi dupla. De um lado, ela assegura a continuidade da raça humana. Seu Filho é, em virtude de Seu "segundo nascimento," o Filho de Davi, o Filho de Abrahão e de todos os "antepassados" (isso é enfatizado pelas genealogias de Jesus, em ambas versões).

Na frase de santo Irineu, Ele "recapitulou em si próprio os longos anais da humanidade" (Adv. Haeres., 3, 18, 1: longam hominum expositionem in se ipso recapitulavit), "reunindo em si próprio todas as nações, dispersas como estavam desde Adão" (ibid 3, 22, 3) e "tomou sobre Si o modo velho da criação" (ibid 4, 23, 4). Mas, de outro lado, Ele "exibiu um novo tipo de geração" (ibid 5, 1, 3). Ele foi o Novo Adão. Essa foi a mais drástica quebra de continuidade, a verdadeira reversão do prévio processo. Essa "reversão" começa precisamente com a Encarnação, com a Natividade do "Segundo Homem." Santo Irineu fala de uma "recirculação" de Maria para Eva (3, 22, 4). Como a Mãe do Novo Homem Maria teve a sua participação antecipada nessa completa novidade.

Por certo, Jesus o Cristo é o único Senhor e Salvador. Mas Maria é Sua Mãe. Ela é a estrela da manhã que anuncia o nascer do sol., o nascer do verdadeiro Sol salutis: astir emfenon ton Ilion. Ela é "a aurora do dia místico," (ambas as frases são do hino Akatiste). E em certo sentido, até a Natividade de nossa Senhora em si, pertença ao mistério da salvação. "O teu nascimento,ó Puríssima Virgem Mãe de Deus, anunciou a alegria a todo o universo, pois de ti nasceu o Sol de Justiça, o Cristo nosso Deus..." (tropário da Natividade da Virgem Maria). O pensamento Cristão move-se sempre na dimensão de personalidades, não no reino de idéias gerais. Ele compreenda o mistério da Encarnação como um Mistério da Mãe e da Criança. Essa é a salvaguarda definitiva contra qualquer docetismo abstrato. É uma salvaguarda de solidez evangélica. O ícone tradicional da Abençoada Virgem, na tradição Oriental, é precisamente um ícone de Encarnação: a Virgem está sempre com o Bebê. E seguramente nenhum ícone de Encarnação é possível sem a Virgem Mãe.

Cumpra-se em mim segundo a tua palavra.

De novo, a Anunciação é "o começo da nossa salvação e a revelação do mistério eterno : o Filho de Deus torna-Se Filho da Virgem e Gabriel anuncia a graça..." (Tropário da Festa da Anunciação). A vontade divina foi declarada e proclamada pelo Arcanjo. Mas a Virgem não ficou silenciosa. Ela respondeu para o chamado divino, com humildade e fé. "Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra...." A vontade divina é aceita e correspondida. E essa resposta humana é altamente relevante nesse ponto. A obediência de Maria contrabalança a desobediência de Eva. Nesse sentido a Virgem Maria é a Segunda Eva, como seu Filho é o Segundo Adão.

Esse paralelo foi feito bastante cedo. A primeira testemunha é São Justino (Dial., 100) e em São Irineu nós já encontramos uma concepção elaborada, organicamente ligada com sua idéia básica de recapitulação. "Como Eva foi seduzida pela conversa de um anjo, como para fugir de Deus, transgredindo Sua palavra, assim também Maria recebeu as boas-novas por meio de uma conversa de um anjo, como para carregar Deus dentro dela, sendo obediente à Sua palavra. E, apesar de uma ter desobedecido Deus, no entanto a outra foi levada a obedecer Deus; para que da virgem Eva, a Virgem Maria pudesse se tornar a advogada. E, como por uma virgem a raça humana foi condenada à morte, por uma virgem ela é salva, sendo preservado o balanço,uma desobediência de virgem por uma obediência de virgem" (5, 19, 1). E de novo: "E assim o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e para Eva, uma virgem amarrada pela incredulidade, há Maria desatada pela fé" (3,22, 34 — tradução pelo Cardeal Newman ). Essa concepção era tradicional, especialmente no ensino catequético, tanto no Oriente quanto no Ocidente. "É um grande sacramento(magnum sacramentum) que por conta de mulher a morte tornou-se nossa parte, assim também a vida nasceu para nós de mulher,"diz Santo Agostinho (De Agone Christ., 24, em outro lugar ele está simplesmente citando Irineu). "Morte por Eva, vida por Maria" declara São Jerônimo (Epist. 22: mors per Evam, vita per Mariam).

Deixem-me citar também uma passagem admirável e concisa em um dos sermões do Metropolita Philaret de Moscou(1782-1867). Ele estava pregando no dia da Anunciação. " Durante os dias da criação do mundo, quando Deus proclamou Suas vivificantes e poderosas palavras: ‘Que haja...’ as palavras do Criador trouxeram criaturas à existência. Mas no dia, único na existência do mundo, quando a Santa Maria exclamou seu humilde e obediente Seja feito..., eu, com dificuldade ousaria dizer que o que teve lugar então: as palavras da criatura fizeram o Criador descer no mundo. Deus, nesse episódio, expressou também Suas palavras assim: "...e em teu ventre conceberás e darás à luz um filho...Este será grande...E reinará eternamente na casa de Jacó..." (Lc. 1: 31-33). Mas, de novo, o que é divino e incompreensível ocorre — a própria palavra de Deus difere sua ação, permitindo que ela mesmo seja atrasada pela palavra de Maria: "Como se fará isso? O humilde Seja feito...dela era necessário para a realização do poderoso conceberás em teu ventre...de Deus. Que poder secreto está então contido nessa simples palavras: "Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra" — que produziram um efeito tão extraordinário? Esse maravilhoso poder é a auto-dedicação pura e perfeita de Maria à Deus, uma dedicação por sua vontade, por seu pensamento, de sua alma, de seu ser inteiro, de todas as suas faculdades, de todas as suas ações, de todas as suas esperanças e expectativas." [Choix de Sermons et Discours de S. Em. Mgr. Philaret, Metropolite de Moscow, tradução do russo para o francês por A Serpinet (Paris, 1866, T. 1, p.187), a tradução para o inglês é pelo Dr. R. Haugh].

A Encarnação, foi de fato, um ato soberano de Deus, mas foi uma revelação não só do Seu poder onipotente, mas acima de tudo de Seu amor e compaixão paternais. Estava implicado um apelo à liberdade humana mais uma vez, como um apelo à liberdade esteve implicado no ato da própria criação, nomeadamente na criação dos seres racionais. A iniciativa foi logicamente divina. No entanto, como o meio de salvação escolhido por Deus foi a assunção da verdadeira natureza humana por uma Pessoa divina, o homem teve que ter sua participação ativa no mistério. Maria esteve vocalizando esta resposta obediente do homem para o decreto redimidor do amor divino, e assim ela foi representante da raça toda. Ela exemplificou em sua pessoa, como se fosse, o todo da humanidade. A aceitação obediente e jubilosa da proposta redimidora de Deus, tão belamente expressada no Magnificat, foi um ato de liberdade. De fato, foi liberdade de obediência, não de iniciativa — porém uma verdadeira liberdade,liberdade de amor e adoração, de humildade e confiança — e liberdade de cooperação (cf. St. Irineu, Adv. Haeres. , 3, 21, 8: "Maria cooperando com a economia") — sendo justamente isso a liberdade humana. A graça de Deus não pode nunca ser simplesmente adicionada, como se fosse mecanicamente. Ela tem que ser recebida em livre obediência e submissão.

Uma descendente de Eva também.

Maria foi escolhida e eleita para tornar-se Mãe do Senhor Encarnado. Devemos assumir que ela estava ajustada para o terrível ofício, que ela estava preparada a excepcional chamada — preparada por Deus. Podemos definir apropriadamente a natureza e caráter dessa preparação? Estamos aqui frente a uma antinomia crucial (à qual nós aludimos antes). A Abençoada Virgem foi representante da raça, isto é, da raça humana decaída, do "velho Adão." Mas ela foi também a segunda Eva; com ela começa a "nova geração." Ela foi posta à parte pela decisão eterna de Deus, mas esse "pôr à parte" não foi para destruir sua essencial solidariedade com o resto da humanidade. Podemos resolver esse mistério antinômico por qualquer esquema lógico? O dogma Católico Romano da Imaculada Conceição (Concepção), é uma nobre tentativa de sugerir a tal solução. Mas essa solução só é valida no contexto de uma doutrina particular e altamente inadequada do pecado original e não se sustenta fora desse particular contexto. Falando estritamente, esse "dogma" é uma complicação desnecessária, e uma terminologia infeliz que só obscurece a indisputável verdade da crença Católica. Os "privilégios" da Maternidade divina não dependem de uma "liberação do pecado original."

A totalidade da graça foi verdadeiramente concedida à Abençoada Virgem e sua pureza pessoal foi preservada pela contínua assistência do Espírito. Mas isso não foi uma abolição do pecado. O pecado só foi destruído na árvore da Cruz, e nenhuma "exceção" foi possível, já que essa era simplesmente a condição geral e comum da existência humana. Ele não foi destruído nem pela própria Encarnação, apesar da Encarnação ter sido a verdadeira inauguração da Nova Criação. A Encarnação foi somente a base e o ponto-de-partida do trabalho redentor de nosso Senhor. E o próprio "Segundo Homem"entra em Sua glória total através do portão da morte. A redenção é um ato complexo, e temos que distinguir cuidadosamente seus momentos, apesar deles estarem supremamente integrados na única e eterna decisão de Deus.Sendo integrados no plano eterno, na disposição temporal eles são refletidos em cada éter e a consumação final já é prefigurada e antecipada em todos os estágios iniciais. Houve um progresso real na história da Redenção. Maria teve a graça da Encarnação , como a Mãe do Encarnado, mas essa não era ainda a graça completa, já que a Redenção ainda não havia sido realizada. No entanto, sua pureza pessoal foi possível mesmo no mundo não redimido, ou ainda num mundo que estava em processo de Redenção. O verdadeiro assunto teológico é o da eleição divina. A Mãe e a Criança são inseparavelmente ligados no decreto único da Encarnação. Como um evento, a Encarnação é o próprio ponto-de-virada da história — e o ponto-de-virada é inevitavelmente antinômico: ele pertence ao mesmo tempo ao Velho e ao Novo. O resto é silêncio. Demos permanecer em temor e tremor no limiar do mistério.

A perfeição pessoal dela.

A experiência íntima da Mãe do Senhor está escondida de nós. E ninguém foi capaz jamais de partilhar dessa experiência única, pela própria natureza do caso. É o mistério da pessoa. Essa é a causa da reticência da Igreja na Doutrina Mariológica. A Igreja fala dela mais na linguagem da poesia devocional , na linguagem de metáforas e imagens antinômicas. Não existe necessidade, nem razão, para assumir que a Abençoada Virgem realizou de uma vez toda totalidade e todas as implicações desse privilégio único a ela concedido pela graça de Deus. Não existe necessidade, nem razão, para interpretar a "totalidade" da graça num sentido literal como incluindo todas as possíveis perfeições e toda variedade de dons espirituais. Foi uma totalidade para ela, ela estava cheia de graça. Porém foi uma totalidade "especializada," a graça da Mãe de Deus, da Virgem Mãe, da "Esposa Inesposada." Na verdade, ela teve seu próprio caminho espiritual, seu próprio crescimento em graça. O total significado do mistério da salvação foi apreendido gradualmente por ela. E ele teve sua parte própria no sacrifício da Cruz: "e uma espada traspassará também a tua própria alma" (Lc. 2:35).

A luz total brilhou só na Ressurreição. Até esse ponto o próprio Jesus não estava glorificado. E após a Ascensão encontramos a Abençoada Virgem entre os Doze, no centro da Igreja crescente. Um ponto está além da dúvida. A Abençoada Virgem sempre esteve impressionada, se essa palavra é adequada aqui, com a saudação e anúncio angélico e pelo chocante mistério do parto virgem. Como ela poderia estar impressionada? Outra vez, o mistério de sua experiência está escondido de nós. Mas podemos nós realmente evitar esse pio trabalho de conjectura sem trair o próprio mistério? " Mas Maria guardava todas essas coisas, conferindo-as em seu coração" (Lc. 2: 19). Sua vida interior teve que ser concentrada nesse evento crucial de sua história. Pois, de fato, o mistério da Encarnação foi para ela, também o mistério de sua própria existência pessoal. Sua situação existencial foi única e peculiar. Ela teve que se adequar para a dignidade sem precedente dessa situação. Essa é talvez a verdadeira essência de sua dignidade particular, que é descrita como sua "Permanente Virgindade." Ela é a Virgem. Porém virgindade não é simplesmente um estado corporal ou uma característica física particular em si. Acima de tudo é a atitude espiritual e interior, e sem isso um estado corporal seria completamente sem sentido. O título "Sempre-Virgem" significa seguramente muito mais do que meramente uma afirmação "psicológica." Ele não se refere somente ao Parto Virgem. Ele não implica somente na exclusão de qualquer intercurso marital posterior (o que seria totalmente inconcebível se nós realmente acreditarmos no Parto Virgem e na Divindade de Jesus). Ele exclui antes de tudo qualquer envolvimento "erótico," quaisquer desejos ou paixões sensuais ou egoístas, qualquer dispersão de seu coração e mente. A integridade ou incorrupção corporal não é mais do que um sinal exterior da pureza interna. O ponto mais importante é precisamente a pureza de coração. que é a condição indispensável para "ver Deus."

Isso é estar libertado das paixões, a verdadeira apathia, que tem sido normalmente descrita como a essência da vida espiritual. Libertação das paixões e de "desejos," epithimia—impermeabilidade para maus pensamentos, como São João Damasceno coloca. A alma dela era governada só por Deus, era supremamente ligada a Ele. Todos os seus desejos eram dirigidos para coisas dignas de desejo e afeição (São João diz: tetammeni, atraída, gravitando). Ela não tinha paixão, thymon. Ela sempre preservou virgindade da mente, da alma e do corpo (Homilia 1, in Nativitatem B.V. Marie 9 e 5 , Migne, Ser.Gr. XCVI, 676 A e 668 C). Era uma orientação imperturbável de toda vida pessoal para Deus, uma completa auto-dedicação.Ser verdadeiramente uma "serva de Deus" significa precisamente ser sempre-virgem, e não ter qualquer preocupação carnal. Virgindade espiritual é impecabilidade, mas ainda não "perfeição," e não é livre de tentações. Mas mesmo o próprio nosso Senhor foi num certo sentido sujeito a tentações e foi realmente tentado por Satã no deserto.

Nossa Senhora teve talvez suas tentações também, mas as superou em sua firme fidelidade ao chamado de Deus. Mesmo um amor maternal comum culmina numa identificação espiritual com a criança, que implica tão freqüentemente em sacrifícios e auto-negação. Nada menos pode ser assumido no caso de Maria; sua Criança era para ser grande e ser chamada o "Filho do Altíssimo" (Lc. 1:32). Obviamente, Ele foi "Aquele Que havia de vir" (Lc. 7:19). Isso é abertamente professado por Maria no Magnificat, um hino de louvação e agradecimento Messiânico. Maria não poderia falhar em compreender tudo isso, ainda que obscuramente por um tempo e gradualmente, enquanto ela ponderava todas as gloriosas promessas em seu coração. Esse foi o único meio concebível para ela. Ela tinha que ser absorvida por esse único pensamento, em uma fidelidade obediente ao Senhor que "olhou para a humildade de Sua serva" e "Ele fez nela grandes coisas." Esse é exatamente o modo pelo qual São Paulo descreve o estado e privilégio da virgindade: "a virgem e a solteira, cuidam nas coisas do Senhor para serem santas, tanto no corpo como no espírito"(1 Co. 7:34). O clímax dessa aspiração virginal é a santidade da Virgem Mãe puríssima e imaculada.

A Mãe de nós todos.

O Cardeal Newman em sua admirável "Letter addressed to the Ver. E. B. Pusey, D.D., por ocasião do seu Eirenicon" (1865) diz muito a propósito: " A teologia é preocupada com assuntos supranaturais, e está sempre correndo para mistérios, que não podem ser explicados, nem ajustados pela razão. Suas linhas de pensamento chegam num fim abrupto, e persegui-las ou completá-las é mergulhar no abismo. Santo Agostinho nos previne que, se nós tentarmos encontrar e ligar os fins das linhas que correm para o infinito, nós só conseguiremos em nos contradizendo (Difficulties felt by Anglicans in Catholic Teaching, 5ª ed., pg. 430). É largamente aceito que as considerações definitivas que determinam uma verdadeira estimativa de todos os pontos particulares da tradição Cristã são doutrinais. Nenhum argumento puramente histórico, seja por antigüidade ou silêncio, nunca é decisivo. Eles são submetidos a um posterior escrutínio e revisão teológicos na perspectiva do total da fé Cristã., tomada como um todo. A questão definitiva é simplesmente a seguinte: se realmente se mantém a fé das Escrituras e da Igreja, se se aceita e recita o Credo Católico exatamente no sentido em que ele foi desenhado e suposto ser tomado e entendido, realmente se acredita na verdade da Encarnação?

Deixem-me cotar mais uma vez o Cardeal Newman. "Eu digo a eles," ele prossegue, " uma vez que tenhamos dominado a idéia, de que Maria carregou, amamentou , e manuseou o Eterno, na forma de uma criança, que limite é concebível para a investida e fluxo de pensamentos que tal doutrina envolve? Que temor e surpresa deve corresponder ao conhecimento de que, uma criatura foi trazida para tão perto da Divina Essência"? (obra citada, pg. 431). Felizmente um teólogo Católico não é deixado sozinho com lógica e erudição. Ele é conduzido pela fé; credo ut intelligan. A fé ilumina a razão. E erudição, a memória do passado, é vivificada na contínua experiência da Igreja.

Um teólogo Católico é guiado pela autoridade professoral da Igreja, por sua viva tradição. Mas acima de tudo, ele próprio vive na Igreja, que é o Corpo de Cristo. O mistério da Encarnação é ainda, como se fosse, continuamente ordenado na Igreja, e suas "implicações" são reveladas e abertas em experiência devocional e participação sacramental. Na Comunhão dos Santos, que é a verdadeira Igreja Universal e Católica, o mistério da Nova Humanidade é aberto como uma nova situação existencial. E nessa perspectiva e contexto vivo do Corpo Místico de Cristo a pessoa da Abençoada Virgem Mãe aparece em plena luz e plena glória. A Igreja a contempla agora em estado de perfeição. Ela agora é vista como inseparavelmente unida com seu Filho, Que "senta à mão direita de Deus Pai Todo Poderoso." Para ela a consumação final da vida já veio — em antecipação. "Tu foste transferida para a vida, sendo a Mãe da Vida," reconhece a Igreja, "Nem o túmulo nem a morte tiveram poder sobre a Mãe de Deus...Ela é a Mãe da Vida, Aquele Que repousou em seu seio virginal, a transferiu para a vida" (Tropário e kondakion da festa da Dormição da Virgem Maria).

De novo, não é tanto uma recompensa celestial pela pureza e virtude dela, como uma "implicação" de seu sublime oficio, dela ter sido a Mãe de Deus, a Theotokos. A Igreja Triunfante é acima de tudo a Igreja adorante, sua existência é uma viva participação no ofício de Cristo de intercessão e de Seu amor redentor. Incorporação em Cristo, que é a essência da Igreja e de toda existência Cristã, é antes de tudo uma incorporação em Seu amor sacrificial pela humanidade. E aqui há um lugar especial para ela que é unida com o Redentor na intimidade única da afeição e devoção maternal. A Mãe de Deus é verdadeiramente a mãe comum de todos os vivos, da raça Cristã toda, nascidos ou renascidos no Espírito e verdade. Uma identificação afeiçoada com a criança, que é a essência espiritual da maternidade, é aqui consumada em sua definitiva perfeição. A Igreja não dogmatiza muito a respeito desses mistérios da existência dela própria. Pois o mistério de Maria é exatamente o mistério da Igreja. Mater Ecclesia e Virgo Alater, são ambas paridoras da Nova Vida. E ambas são orantes.

A Igreja convida os fiéis e os auxilia a crescer espiritualmente nesses mistérios da fé que são também mistérios da própria existência dos fiéis e de seu destino espiritual. Na Igreja eles apreendem a contemplar e adorar o Cristo vivo junto com a assembléia toda e Igreja dos primogênitos, que estão inscritos no céu (Hb. 12:23). E nessa gloriosa assembléia eles discernem a eminente pessoa da Virgem Mãe do Senhor e Redentor, cheia de graça e amor, de caridade e compaixão — "mais venerável que os querubins, incomparavelmente mais gloriosa que os serafins, deste à luz o Verbo de Deus, conservando intacta a glória de tua virgindade." Na luz dessa contemplação e no espírito de fé o teólogo deve completar seu ofício de interpretação para fiéis e para aqueles que buscam a verdade do opressivo mistério da Encarnação. Esse mistério ainda é simbolizado, como se fosse na época dos Padres, por um único e glorioso nome: Maria Theotokos, a Mãe do deus Encarnado.

Folheto Missionário número P095h

Copyright © 2004 Holy Trinity Orthodox Mission

466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011

Redator: Bispo Alexandre Mileant

(maria_florovsky_p.doc 05-15-2004)

 

 

Edited by

Date