Aos Livros do Novo Testamento

 

Monsenhor Cassiano, Bispo de Catane,

Reitor de Instituto de Teologia Ortodoxa de São Sérgio

 

Arcipreste Koulomzine

 

Tradução do inglês e do francês de todos os livros do

Novo Testamento por Padre João-Arcediago

Digitação do texto Diácono Eugenio Braha – São Paulo – Brasil

 

 

Prefácio

Introdução Ortodoxa aos Livros do Novo Testamento.

O Caráter Único e Comum dos Versículos dos Evangelhos Sinópticos:

Os Três Evangelhos Sinópticos.

O Evangelho Segundo São Mateus. O Caráter Hebraizante Deste Evangelho: Realização da Antiga Lei. O Reino dos Céus em Seu Aspecto Terrestre. A Igreja. O Evangelho Segundo São Marcos. O Evangelho de São Marcos e a Catequese da Igreja Primitiva. A Verdade Histórica de São Marcos. As Grandes Etapas da Revelação. O Evangelho Segundo São Lucas. Subida a Jerusalém. Teologia de São Lucas: a Salvação. Cooperação do Espírito Santo na Obra da Salvação. Aspecto Universalista e Escatológico da Salvação.

O Evangelho Segundo São João.

O Simbolismo de São João; O Plano. A Teologia do Prólogo. Teologia Trinitária de São João: Cristo Filho de Deus. Unidade do Pai e do Filho. O Filho: Revelação do Pai. Glorificação do Filho e a Promessa do Espírito Santo.

Introdução ao Livro dos Atos dos Apóstolos.

O Autor, o Texto, a Composição. A Primeira Comunidade de Jerusalém. O Kerigma da Igreja Primitiva. Promessa do Espírito Santo. Pentecostes, O Dom Do Espírito Santo. A Teologia Do Espírito Santo. O Hino Da Igreja Ortodoxa Ao Espírito Santo. Expansão Da Boa-Nova No Mundo Pagão.

Introdução Às Epístolas de São Paulo.

O Ensinamento de São Paulo Sobre a Igreja Através da Etapas da Sua Vida. A Igreja Nas Epístolas aos Tessalonicenses e as Quatro Grandes Epístolas (1 E 2 Cor., Gál., Rom):

Diversas "Imagens" da Igreja no Novo Testamento.

A Igreja Nas Epístolas do Cativeiro. A Kenose (Filipenses 2:6-11). A Adoção; Igreja Como a Família de Deus. A Igreja nas Epístolas Pastorais. Conclusão. Epístola aos Hebreus. Cristologia da Epístola. Cristo Sumo-Sacerdote. Os Fiéis.

Introdução Às Epístolas Católicas;

Denominação e Lugar do Canon: Epistola de São Tiago.

As Obras e a Fé.

Primeira Epístola de São Pedro.

A Doutrina da Salvação. Provações e Sofrimentos. O Espírito Santo. Segunda Epístola de São Pedro.

As Epístolas de São João o Teólogo.

Epístola de São Judas Tadeu.

O Livro do Apocalipse.

O Gênero Apocalíptico. O Simbolismo Joanino do Apocalipse. Simbolismo Do Número "Sete". A Futura Jerusalém Celeste. Teologia Trinitária.

 

 

 

Prefácio

Por vezes, ouvimos chamar aos cristãos de "Povo do Livro"; designação que englobaria, igualmente, judeus e muçulmanos.

Trata-se de uma visão demasiado simplista e, por isso mesmo, falsa, além de tomar como ponto de partida uma abordagem "ecumênica" da questão religiosa, inaceitável para qualquer cristão ortodoxo.

De fato, o Cristianismo não se baseia nem se reduz a um livro, ou melhor, a um conjunto de livros reunidos que se convencionou chamar de "Bíblia." O fundamento da sua Verdade nunca poderia ser a letra morta de um texto, mas sim a Palavra viva, o Verbo Encarnado, ao qual somente se acende de uma única maneira: na Igreja, iniciado no "ministério que esteve oculto desde de todos os séculos, e em todas as gerações, e que agora foi manifesto aos seus santos" Col. 1:26). É exatamente o que lemos no início desta "Introdução aos Livros de Novo Testamento": "A Igreja submete-se não a um livro mas a uma Palavra viva, porque enraizada e brotada da Tradição."

Se a igreja canonizou, entre dezenas de outros, os textos dos quatro Evangelistas, "foi porque a confissão da Fé inscrita nesses mesmos textos era o eco da Tradição que a Igreja constatou perpassar através deles."

"É a Tradição da Igreja que vai selecionar aqueles textos que veiculam fielmente aqueles textos que lhe dera vida. Todos os demais são rejeitados, precisamente porque neles se não vislumbra a marca indelével da Tradição."

"Só a Tradição da Igreja nos pode dar a medida justa, correta e certa da plenitude de interpretação da Mensagem do Mestre. Sem o sopro vivificante que a Tradição confere à Sagrada Escritura, a letra do livro permaneceria morta, inerte. É a Tradição que vai tornar o Evangelho operante."

Tocamos aqui num ponto que dificilmente pode ser aceito ou sequer compreendido por quem não vive a Tradição da Igreja exatamente como ela é: "um sopro de vida que faz ouvir a Palavra ao mesmo tempo que o silêncio de que se serve... Uma comunicação do Espírito de Verdade fora do qual não se pode saber a Verdade"- como definiu o teólogo Vladimir Lossky.

É preciso que isso fique muito claro: a Igreja podia passar sem Escrituras, mas não poderia existir sem Tradição; se os textos das Sagradas Escrituras desaparecessem da face da Terra, a Tradição poderia reconstituí-los. Porque a Tradição é precisamente a vida do espírito Santo na Igreja, comunicando a cada membro do Corpo de Cristo a faculdade de ouvir, receber, conceber a Verdade" na Luz que lhe é própria e não segundo a luz natural da razão humana" (V. Lossky).

Desse modo, não nos é possível "idolatrar" a Sagrada Escritura e fazer dela a única fonte da revelação, excluindo a tradição oral; aliás, o próprio texto do evangelho de São João o afirma, dizendo: "Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escritas, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem" (Jo. 21:25). Ou seja, a Sagrada Escritura não contêm tudo, explicitamente, o que Cristo fez e disse (ensinou), porque a Tradição oral, não escrita, contêm e guardou o que o texto não refere. Não podemos, por outro lado, deixar a interpretação de passagens da Sagrada Escritura ao critério arbitrário de cada um por si. Uma advertência que já Santo Irineu de Lyon fazia no século II:

"Convém refugiar-se na Igreja e ser educado no seu grêmio, construído com as Santas Escrituras do Senhor. Pois a Igreja está plantada neste mundo como o Paraíso. 'Comereis de todo o fruto de toda a árvore do Paraíso,' diz o espírito de Deus; isto é, comei de toda a escritura do Senhor, não comais, porém, com um senso mais elevado do que convém, nem vos envolveis nas dissenções dos hereges, que pretendem possuir o conhecimento do bem e do mal, lançando sobre Deus, que os criou, suas ímpias proposições. Pretendem compreender acima da medida da compreensão. Diz, pois, o Apóstolo (Rom. 12:3) ‘não saber mais do que convém saber, mas saber com temperança’."

E Orígenes, um século depois, acrescentou ("Comentário ao Evangelho de São João"): "De todas as Escrituras, os Evangelhos, são as primícias e, entre os Evangelhos, as primícias são o Evangelho de João, cujo sentido ninguém pode captar se não se reclinou sobre o peito de Jesus e se não recebeu de Jesus a Maria por Mãe." "Será necessário dizer que entendimento será preciso para se interpretar dignamente a palavra depositada nos tesouros frágeis da linguagem comum, a letra que todos lêem, a palavra tornada sensível e que todos podem ouvir? para se entender esse Evangelho é preciso poder-se dizer com verdade: ‘Nós temos a mente de Cristo e é assim que conhecemos a graça de Deus’."

É, então, o magistério da Igreja, através da palavra inspirada (e fiel à Tradição) dos Seus Bispos, quem nos conduz seguramente pelos mistérios da Palavra de Deus transmitida pelo próprio Deus aos Seus discípulos, aos Apóstolos e, por estes, aos seus sucessores. Seguindo a cadeia da Tradição sem quaisquer quebras.

 

Arcipreste Atanásio

 

Introdução Ortodoxa aos Livros do Novo Testamento.

Dos quatro Evangelhos canônicos que contam a "Boa Nova," (sentido da palavra Evangelho), trazida por Cristo, os três primeiros apresentam entre si inúmeras semelhanças, o que permite apelidá-los de "Sinópticos." A Tradição eclesiástica, confirmada desde o século II, atribui-os, respectivamente, a São Mateus, São Marcos e São Lucas.

Segundo esta Tradição, São Mateus, o publicano, do Colégio dos Doze (Mt. 9:9; 10:3), escrevera o primeiro, na Palestina, para os cristãos convertidos do judaísmo; e a sua obra, composta em "língua hebraica," isto é, em aramaico, fora em seguida trazida para o grego. João - Marcos, um discípulo de Jerusalém (Act. 12:12), que acompanhou são Paulo (Act. 15:37-39), seu primo (Col. 4:10) e São Pedro (1 Ped. 5:13), do qual era " o interprete ," redigira em Roma a catequese (o ensinamento) oral deste último. Um outro discípulo, São Lucas, médico (Col. 4:14), de origem pagã, o que não sucede com São Mateus e São Marcos (Col. 4:10-14), nasceu em Antioquia segundo alguns, companheiro de São Paulo nas suas Segunda (Act.16:10s). e terceira (Act.20:5s) viagens apostólicas e, ainda, durante as suas duas prisões em Roma (Act. 27: 1s; 2 Tim. 4:11), fora o terceiro a escrever o Evangelho, o qual se poderia recomendar de São Paulo (cf. talvez 2 Cor. 8:18), como o de São Marcos se pode recomendar de São Pedro; escrevera também uma Segunda obra, os "Atos dos Apóstolos." A língua original dos segundo e terceiro Evangelhos é o grego.

Estes dados que a Tradição nos apresenta são atestados e precisados pelo exame interno destes três livros; mas antes de o mostrarmos convém discutir o problema de suas relações literárias, o que nós chamamos a Questão Sinóptica. Diversas soluções para este problema foram apresentadas, que são insuficientes se as tomarmos isoladamente, mas que contêm qualquer coisa de verdade e podem servir para elaboração de uma explicação de conjunto. Uma tradição oral comum, que os três sinópticos teriam posto por escrito de forma independente, logo forçosamente variada, é por si só verossímil para não dizer certa; contudo, ela não poderia, por si própria, dar-se conta das semelhanças tão numerosas e marcantes, tanto no detalhe dos textos como na ordem das perícopas, que ultrapassam as possibilidades da memória, mesmo antiga e oriental. Uma tradição escrita, única ou múltipla, justificaria melhor estas semelhanças; mas se mantém que os três Evangelistas nela se basearam de maneira paralela e independente, não se explica que as sua semelhanças e, igualmente, as suas divergências possam negar o seu mútuo conhecimento, o seu segmento ou a sua mútua correção. É também necessário admitir entre eles interdependências diretas. Mas se é claro que o Evangelho de São Lucas depende do de São Marcos, é menos certo que o de São Marcos dependa do de São Mateus (como durante muito tempo se admitiu), uma vez que inúmeros indícios sugerem o contrário. Para os Evangelhos de São Mateus e de São Lucas, uma dependência direta, num ou noutro sentido, parece pouco provável e os seus paralelismos, que não vislumbramos em São Marcos, devem explicar-se tendo em atenção uma ou mais fontes comuns, distintas do segundo Evangelho (o de São Marcos).

É a partir destas observações que a crítica moderna edificou a teoria das Duas Fontes: uma delas seria São Marcos, do qual São Mateus e São Lucas dependeriam para as suas narrativas; para as Palavras ou discursos (os "logia"), muito reduzidos em São Marcos, o primeiro e o terceiro Evangelhos ter-se-iam servido de uma outra fonte, desconhecida mas postulada, que designamos por Q (inicial da palavra alemã "Quelle").

Por muitíssimo sugestiva que seja, esta teoria não oferece por isso menos dificuldades. Não somente ela abandona a tradição que nos apresenta o Evangelho de são Mateus como sendo de origem aramaica e anterior em relação a de São Marcos, como ainda desconhece os fatos literários que sustentam esta tradição, sugerindo que o Evangelho de São Mateus, mesmo nas suas narrativas, não está puramente dependente do de São Marcos, parecendo por momentos refletir um estado mais primitivo do texto. Por outro lado, o documento Q pode dificilmente existir tal como o reconstituem (de forma, aliás, muito variável) e não se dá verdadeiramente conta das complexas relações que se observam entre o primeiro e o terceiro Evangelhos.

Foi a estas duas dificuldades que a crítica mais recente tentou dar resposta. Primeiramente, mantendo a existência de um estado primitivo aramaico do primeiro Evangelho, distinto do seu estado grego, ela encontra o meio de explicar melhor as relações complexas entre o Evangelho de São Mateus e aquele de São Marcos: o Evangelho de São Mateus no seu estado grego dependeria do de São Marcos, mas este, por sua vez, dependeria do Evangelho de São Mateus no seu estado aramaico. A Tradição não nos permite assinalar uma data precisa no que concerne á feitura dos três Evangelhos Sinópticos; podemos, todavia, situar a sua redação entre os anos 40 e 80 da era cristã. Os apóstolos escreveram textos de circunstância ás comunidades que fundavam, visitavam e dirigiam de longe. Estes textos, conservados pelos seus destinatários, eram em seguida comunicados a outros, sendo trocados, constituindo pouco a pouco um conjunto de textos apostólicos que se liam e comentavam nas comunidades cristãs. Sabemos que muito cedo antologias de textos veterotestamentários e a sua interpretação cristã foram constituídos. Estes textos que continham um grande número de "palavras de Cristo," citações mais ou menos desenvolvidas de sermões do Senhor, serviam de guia á pregação cristã nas diferentes comunidades da Igreja que começava a florescer.

O acontecimento decisivo para a constituição e o surgimento do N.T. é, sem sombra de dúvida, a partida para os Céus da primeira geração cristã e o "atraso da Parusia" (Segunda vinda de Cristo). Por que razão se haveria de Ter uma outra S.E. que não o A.T., enquanto os apóstolos estavam ali para dizer "quem era o Verbo Encarnado, quem era Cristo"? Numa perspectiva de uma vinda próxima do Reino, o seu testemunho direto bastava plenamente. Mas acontece que, decididamente, o Reino dos Céus, a Nova Jerusalém Celeste, a Segunda Vinda de Cristo tardam em vir e os Apóstolos começam a partir para junto do Mestre. Como urgia conservar a mensagem das testemunhas diretas da Encarnação do Verbo, da Sua vinda neste mundo, da Sua morte e ressurreição, iniciou-se uma recolha de mensagens, textos e testemunhos nas diversas comunidades com o fim de preservar a sua autenticidade e veracidade. Todavia, o A.T. não é relegado para um plano em que de alguma forma pudesse ser tido como documento arqueológico: ele á a Palavra de Deus transmitida através do Profetas. Quanto ao N.T., continuando a ser a Palavra de Deus tal como o A.T., existe contudo uma diferença que deve ser assinalada, já não é a Palavra de Deus que nos é transmitida pelos Profetas, mas sim pelo próprio Deus. Esta Palavra que nos chega diretamente por Deus, vai, depois da Ressurreição e Ascensão do Verbo Encarnado, nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, ser guardada e transmitida ao povo, pelos seus discípulos, os Apóstolos, e pelos sucessores destes, os Bispos. Vamos, pois, encontrar a Tradição da Igreja que precede a redação do N.T., informando-o quanto ao seu conteúdo de uma forma única.

Assim, a Igreja submete-se não a um livro mas a uma Palavra viva, porque é enraizada e brotada da Tradição. Se a Igreja canonizou, entre dezenas de outros que então existiam, os textos que hoje possuímos que, inspirados por Deus, os Evangelistas nos legaram, os quais, abordando diretamente a Mensagem do Mestre, nos deram quatro vertentes da mesma realidade, foi porque a confissão da fé inscrita nestes mesmos textos era o Eco da Tradição que a Igreja constatou perpassar através deles.

 

O Caráter Único e Comum dos Versículos dos Evangelhos Sinópticos:

Para fins de informação, o trabalho estatístico revela alguns pontos interessantes no respeitante aos versículos dos Evangelhos Sinópticos. Assim temos:

Evangelho de São Mateus, que conta com 1086 versículos;

Evangelho de São Marcos, que conta com 661 versículos:

Evangelho de São Lucas, que conta com 1150 versículos.

Há em São Marcos 330 versículos comuns aos três Evangelhos e, na mesma ordem, 280 versículos que encontramos seja em São Mateus, seja em São Lucas, e 51 versículos próprios a São Marcos.

Há ainda:

230 versículos que são comuns a São Mateus e São Lucas;

á volta de 330 versículos próprios a São Mateus:

e uns 600 versículos próprios a São Lucas.

Por que razão temos três – e mesmo quatro – Evangelhos que se completam e se elucidam reciprocamente, mas que também se repetem, se duplicam e por vezes se contradizem (cf. entre inúmeros exemplos: a cronologia da Paixão, o lugar das aparições de Cristo após a Ressurreição, etc).

Desde de muito cedo que se ensaiaram várias tentativas de cariz harmonizante com o intuito de substituir os quatro Evangelhos por um só texto, alegando as necessidades de suprimir as divergências. Pretendia-se Ter dos Evangelhos uma leitura na qual se pudesse espelhar a "harmonia e a sintonia."

A mais célebre das "harmonias " fora a do Padre sírio Taciano, o qual, no fim do século II (170), compusera um "Diatessaron," com o propósito de reencontrar e trazer a luz do dia o fio condutor que perpassa através dos quatro Evangelhos. Esta empresa, com a qual já havia sonhado São Justino, mártir (+165), mestre de Taciano, teve grande sucesso inicialmente, tendo sido o "Diatessaron," (fusão dos quatro Evangelhos num só) lido em algumas igrejas durante o século II e prolongando-se a sua leitura por mais alguns séculos. Também São Jerônimo, no século IV, o Codex Fuldensis, conservou-nos uma, estabelecida a partir de um texto da Vulgata, logo, em latim.

Retornando á pergunta inicial – Por que é que a igreja tendo tido a oportunidade de aceitar um só Evangelho (por exemplo o "Diatessaron"), não o fez, selecionando dentre algumas dezenas que existiam no século I e princípio do século II, os quatro Evangelhos que hoje fazem parte do N.T.?

Não existiu nenhuma ordem do Magistério da Igreja (isto é dos Bispos), nem decisão sinodal ou conciliar alguma que obrigasse a enveredar por esta aceitação.

Foram as comunidades cristãs locais que, pela sua vivência plena em Igreja, rejeitaram o "Diatessaron" e todas as "harmonias" que lhes foram sucessivamente propostas.

É a Tradição da Igreja que vai selecionar, da mole imensa de textos que por toda a parte circulavam até os finais do século II, aqueles que veiculam fielmente a Tradição que lhes dera vida. Todos os demais são rejeitados, precisamente porque neles se não vislumbra a marca indelével da Tradição.

O alcance desta atitude é imensa: até o fim dos tempos, para toda a Igreja, o Evangelho será sempre segundo São Mateus; segundo São Marcos; segundo São Lucas e segundo São João. Isto significa que o Evangelho esta contido a um tempo nos evangelhos; e a outro tempo, para além deles. A Igreja recusando toda e qualquer "harmonização," não fez senão confessar que os quatro Evangelhos, veiculados interpretações pessoais bem determinadas da Mensagem de Cristo, de forma nenhuma esgotam o seu conteúdo. As interpretações dos Evangelistas foram, sem dúvida alguma, inspiradas pelo Espírito Santo, mas, todavia, coarctadas na sua expressão plena pelas limitações humanas próprias a cada um deles. Assim sendo, unicamente a Tradição da Igreja nos pode dar a medida justa, correta, certa da plenitude da interpretação da Mensagem do Mestre. Sem o sopro vivificante que a Tradição confere a S.E.; no caso vertente, ao Evangelho a letra do Livro permaneceria morta, inerte. É a Tradição que vai tornar o Evangelho operante.

Sabei primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo (2 Ped. 1: 20-21).

"Toda S.E. é inspirada por Deus" (2 Tim. 3:6). Estas palavras que nós encontramos no N.T. foram pronunciadas a respeito da S.E. da Antiga Aliança, mas elas aplicam-se, evidentemente, a toda a S.E..

Por um lado, é dito que toda a S.E., é inspirada, que os homens que a escreveram não fizeram a sua própria vontade, mas receberam a inspiração do Espírito, agindo neles.

Contudo, não é menos verdade que, se a Escritura é marcada pelo Selo do Espírito que fala ao profeta, ela é também marcada pelo Selo da personalidade religiosa do homem que a escreveu. A Escritura é a obra de homens inspirados, mas esses homens inspirados não perdiam, ao escrever, o pleno domínio de todas as suas faculdades: eles não foram reduzidos ao estado de instrumentos puramente passivos sob a ação do Espírito Santo.

Deus não deseja suprimir nem a vontade nem a liberdade do homem. Tudo que a S.E. contém (e tudo que ela contém é inspirado), é apesar de tudo, o fruto de uma experiência religiosa adquirida pelo homem.

A S.E. não é, pois, somente obra divina, nem somente obra humana, mas sim uma obra divino-humana.

O método de abordagem da S.E. será, portanto, o estudo da vertente humana e da vertente divina espelhadas ambas na S.E.. Em primeiro lugar interessa-nos o autor, a sua personalidade, o seu caráter, a sua vida, o meio em que ele viveu; em segundo lugar, o caráter divino, o ensinamento, a teologia...

 

 

Os Três Evangelhos Sinópticos.

O Evangelho Segundo São Mateus.

Segundo a Tradição, o autor do primeiro Evangelho é o publicano que, abandonando as suas ocupações, segue a Cristo (Mat. 9:9); nas narrativas paralelas de São Marcos (2:14) e de São Lucas (5:27), ele é apelidado de Levi. Ele figura, no entanto, sob o nome de Mateus nas quatro listas dos Doze (Mat. 10:3; Mc. 3:18; Luc. 6:15; At. 1:13).

O grande historiador eclesiástico do século IV, Eusébio, faz alusão a uma tradição remontando o século II, mediante a qual o Apóstolo São Mateus teria composto os "logia em língua hebraica." Supõe-se geralmente que esta língua é, na realidade, o aramaico, mas propagado no mundo semítico dessa época; quanto aos "logia" (conjunto de discursos, de sentenças, de fatos) pensa-se que não devemos deles subentender o nosso primeiro Evangelho tal qual ele nos chegou, mas sim um documento mais antigo, completado posteriormente.

Seja qual for a idéia que possamos fazer atualmente da gênese do Evangelho na sua globalidade (ver a introdução da "S.E. em Jerusalém "), freqüentemente se observou que o plano de Mateus, comparados ao dos dois outros Sinópticos, autoriza a hipótese de um documento primitivo, sob a forma de uma antologia de "logia." Tais elementos, com efeito, que em Marcos e Lucas estão disseminados, encontram-se em Mateus reunidos em vastos conjuntos. Os capítulos 5: 6 e 7 em Mateus contêm, por exemplo, a seguir as Bem–Aventuranças, todo um longo discurso que parece fazer um todo e ter sido pronunciado no mesmo dia sobre a Montanha; na realidade, os elementos desse discurso encontram-se em Marcos e Lucas colocados em momentos diferentes da vida de Nosso Senhor. Em Mateus, toda uma série de milagres de Cristo se encontra reunida nos capítulos 8 e 9; todos os discursos dos Doze no capítulo 10; uma série de parábolas no capítulo 13; as acusações lançadas contra os fariseus no capítulo 23. É possível e provável que tais conjuntos de perícopas justapostas, tais características do primeiro Evangelho, tenham sido reunidas antes da sua composição definitiva.

De acordo com uma tradição que nos vem de Santo Irineu (séc. II), o Evangelho de São Mateus contêm uma catequese primitivamente destinada aos hebreus, isto é, aos meios judeu-cristãos da Igreja primitiva. O exame do primeiro Evangelho confirma este dado Tradicional.

 

O Caráter Hebraizante Deste Evangelho:

A genealogia de Jesus, em Mateus, começa com Abraão, antepassado de Israel, ao passo que, em Lucas, ela remonta a Adão numa perspectiva mais universalista. Podemos ainda acrescentar que o Evangelho da Infância," relembra, através de numerosas alusões, as narrativas que circulavam nos meios judaicos a respeito de Moisés.

Ao longo de todo o Evangelho de São Mateus, o argumento escripturístico é utilizado muito mais freqüentemente do que nos demais Evangelhos para provar a Messianidade de Jesus Cristo e para sublinhar que a Lei e os profetas foram realizados, "cumpridos."

A noção de "Reino," tão rica no A. T. e a literatura rabínica mais tardia, encontram-se não raramente nos Sinópticos (somente duas no Evangelho de São João). Devido a uma veneração tipicamente judaica pelo nome de Deus, que estava interditado de pronunciar, São Mateus emprega regularmente o vocábulo "Reino dos Céus," enquanto que em São Marcos e São Lucas encontramos o vocábulo "Reino de Deus."

Em todo o primeiro Evangelho, e, mais precisamente, no Sermão da Montanha, o aspecto moral é sublinhado ao ensinamento de Cristo. Os princípios, os preceitos das bem-aventuranças (5:3-12), são mais numerosos do que na passagem paralela de São Lucas (6: 20-23). Não conseguimos vislumbrar, nem em São Marcos, nem em São Lucas, a crítica das antigas regras de conduta (6: 1-18).

Uma observação de detalhe é significativa: o nome de Jesus, cuja etimologia hebraica seria: "Deus salva," é interpretado em São Mateus com um sentido ético: "É Ele que salvará o Seu povo dos seus pecados" (1:21). A salvação é compreendida como uma libertação dos pecados.

Neste sentido, o Evangelho de São Mateus tem um paralelismo com a Epístola de São Tiago, irmão do Senhor, que esteve à cabeça da comunidade de Jerusalém, provavelmente desde a partida de São Pedro (At. 12:17). São Tiago insiste longamente, na sua epístola, sobre a necessidade e a prioridade da fé em Cristo.

O caráter comum de São Mateus e de São Tiago deve ser levado em linha de conta no que concerne a origem judeu-cristã dos dois livros.

 

Realização da Antiga Lei.

No mesmo Sermão da Montanha, onde Cristo proclama que nem um jota ou um til se omitirá da Lei (5:18), nós lemos, repetida várias vezes, a mesma frase: "Ouvistes o que foi dito aos antigos... Mas, Eu, porém vos digo" (5: 22.28.32.34). Este "Eu" de Cristo tem uma autoridade superior á dos preceitos da Antiga Aliança. Além do mais, a justiça dos discípulos deve ultrapassar, exceder a dos escribas e dos fariseus; é uma condição para a sua entrada no Reino dos Céus (5:20).

Quando Cristo diz que "está aqui quem é maior do que o Templo" (12: 6), ou que "não se deita vinho novo em odres velhos" (9:17), Cristo entende bem que a ordem das coisas antigas prescreveu. São Mateus utiliza os textos escripturísticos não só para mostrar que a S.E. é realizada na pessoa de Cristo, mas também para comprovar que as Escrituras estão ultrapassadas (5:20-48; 19:3-9; 16-22).

Este duplo aspecto na atitude para com o A.T. encontra-se nos discursos do princípio do livro dos Atos e no discurso de Santo Estevão, muito especialmente. Por um lado, as Escrituras são realizadas em Cristo; por outro lado, Cristo, o Messias, o Filho de Deus, instaura uma ordem nova, uma Nova Aliança que torna caduca a Antiga, como o dirá também, mais tarde, a Epístola de São Paulo aos Hebreus (8:9).

Não é, pois, de admirar que, desde logo, São Mateus refira com uma marcada acuidade o drama vivido pelos primeiros cristãos após a rejeição de Cristo pelo seu próprio povo. As investidas contra os fariseus são mais veementes; eles são "cegos que guiam outros cegos" (14:14); porque eles não reconheceram Cristo, o Reino de Deus ser-lhes-á tirado (21:43-45; cf. também 23). A responsabilidade dos chefes do povo é realçada, muito particularmente a de Caifás (26:3, 56-67; 27:1-2).

O Reino dos Céus em Seu Aspecto Terrestre.

Nos Evangelhos Sinópticos, o sinal da chegada do Reino é a manifestação da própria Pessoa de Jesus Cristo, o Messias prometido pela S.E.

O ensinamento do Reino é a Carta da nova ordem e os milagres em geral são o sinal, muito especialmente o milagre da Ressurreição. Mas a vitória definitiva realizar-se-á quando da futura vinda do Filho do Homem, que virá na glória do Pai.

De par com este aspecto escatológico e eterno do Reino, o Evangelho de São Mateus salienta a sua vertente temporal e terrestre. Assim, na parábola do trigo e do joio (13:24-30.36-43), aguardando a colheita, que é o dia do Julgamento Final, os servidores devem deixar crescer o bom grão e o joio. Dito de outra forma, antes do fim dos tempos existe o tempo histórico: no presente, "a rede que é lançada ao mar" apanha toda espécie de peixes (13:47-50). É sobretudo o final do Evangelho que chama a atenção dos exegetas: São Mateus omite a narração da Ascensão de Cristo em glória e relembra, a guisa de conclusão, o mandato de irem ensinar as nações e de as batizarem.

A Igreja.

Unicamente o Evangelho de São Mateus, fala explicitamente da "Igreja" (16:68; 18:17). Em 18:17 o termo grego "eclesia" pode traduzir-se por "comunidade," mas em 16:18 o mesmo termo designa já uma realidade mais profunda.

Para todos os sinópticos, a Igreja é constituída sobre o fundamento, que é o próprio Cristo: "A pedra que os edificadores rejeitaram, esta foi posta por cabeça do ângulo" (Sal. 118:22-23: citado por Mat. 21:42; Mc. 12:10-11; e Luc. 20:17). Em São Mateus, Simão, denominado Pedro, será assemelhado a Cristo, que é o rochedo sobre qual a Igreja foi edificada. A São Pedro são prometidas (enquanto ícone da unidade de todo o Colégio Apostólico) as chaves do Reino dos Céus (16:18-19); da mesma forma que a todos os outros Apóstolos (18:18). Já anteriormente fizemos referências aos laços estreitos que ligavam São Mateus á primeira comunidade composta por judeu-cristãos. Ora é precisamente em Jerusalém que São Pedro fora efetivamente, segundo o testemunho do livro dos Atos dos Apóstolos (1:12-22; 2:14-47), o primeiro entre os Doze Apóstolos no seio da primeira Igreja em Jerusalém. Esta é possivelmente a razão provável pela qual São Mateus atesta a ação de São Pedro enquanto ícone da unidade dos Apóstolos. Em todas as listas dos Apóstolos São Pedro ocupa o primeiro lugar e em São Mateus ele recebe o qualificativo de "Protos," o Primeiro (10:2). Toda uma seção em São Mateus (13:53 a 18:35), compostas por elementos comuns aos três sinópticos, ou somente a São Mateus e a São Marcos, é intitulada no texto da "S.E. de Jerusalém": "A Igreja, primícias do Reino dos Céus." Ela comporta uma parte narrativa e, no fim, um conjunto de perícopas reunidas num "discurso eclesiástico" (18:1-35). Nesta parte, após a rejeição de Cristo em Nazaré (13:53-58), e a morte de São João o precursor (14:3-12), a narração da primeira multiplicação dos pães (14:13-21), sublinha a ação dos Doze Apóstolos na Igreja (14-18). Os Doze numa barca, sacudida por ventos contrários, são o símbolo da Igreja que Cristo vem socorrer (14:24-25; cf. Mc. 6:47-48): segundo São Mateus, São Pedro caminha, também ele, sobre as águas e afunda-se até que o Mestre vem e o salva (14: 28-31). Uma parte desse seção (15:21-39; cf. Mc. 7:24 a 8:10), contêm uma narração do périplo que Cristo efetuara fora da Galiléia, durante o qual prepara os Doze para a última questão, á qual Pedro responde, em nome de todos os Apóstolos, pela confissão solene da Messianidade de Jesus Cristo (16:13-20; cf. Mc. 8: 27-30 e Luc. 9:18-21). Na mesma parte ainda, Cristo anuncia Sua Paixão e Sua Ressurreição (16:21; cf. Mc. 8:31; Luc. 9:22). A partir deste momento, seguir a Cristo é também, para cada um, transportar a sua própria cruz (16:24-28; cf. Mc. 8:34 a 9: 1; Luc. 9:23-27). Pertencer á Igreja é viver no amor cuja fonte é o Pai Celeste (18:1-10), que tudo abandonaria para procurar uma só ovelha tresmalhada que fosse (18: 12-14). Pertencer á Igreja é perdoar as dívidas (18:21-35), num espírito de obediência a esta Igreja (18:15-18).

O Evangelho Segundo São Marcos.

São Marcos, apelidado algumas vezes, também, João Marcos, ou simplesmente João, é, primeiramente, nos dado a conhecer através do livro conhecido por livro dos Atos. Na casa da mãe de João - Marcos reuniu-se uma grande comunidade de fiéis; Pedro saindo da prisão aí se abrigou (At. 12:12s). Pouco tempo depois, Barnabé e Saulo (chamado também Paulo, Atos 13:9) dirigiu-se à Antioquia, levando Marcos, onde uma nova comunidade acabava de ser fundada (At. 12:25). De lá São Marcos acompanha os dois Apóstolos da sua primeira missão em terra pagã, mas deixa-os em Perge para regressar a Jerusalém (At. 13:13). Por esta razão e, apesar de instado por Barnabé, São Paulo não quer mais ter por companheiro Marcos, quando da sua segunda viagem missionária. Por sua vez, São Barnabé separa-se de São Paulo, e com São Marcos parte para Chipre (At. 15: 37-39). Todos estes acontecimentos tem lugar por volta do ano 50. Vamos encontrar mais tarde, nos anos 60, São Marcos em Roma, entre os colaboradores de São Paulo no cativeiro (Filemon 24). Na mesma altura, São Paulo recomenda-o aos Colossenses (4:10), aos quais São Marcos se deve dirigir (São Marcos era primo de São Barnabé).

Mais tarde, ainda, em 64: quando São Paulo é de novo preso em Roma, sendo por todos abandonado, exceto por São Lucas, pede a Timóteo que venha a Éfeso para tomar São Marcos consigo, porque acrescenta São Paulo, ele é - lhe precioso para o ministério (2 Tim. 4:11).

Provavelmente, São Marcos terá ficado em Roma após a partida de São Paulo para o Reino dos Céus; São Pedro, na sua primeira epístola (5:13), menciona-o apelidando-o de "meu filho" (Segundo a opinião de Monsenhor Cassiano, esta epístola fora escrita depois do nascimento para os Céus de São Paulo).

A mesma tradição conservada por Santo Eusébio de Cesaréia (séc. IV), á qual nos referimos a propósito de São Mateus, narra que São Marcos, que não fora ele mesmo diretamente um discípulo de Cristo, foi um interprete de catequese de São Pedro, da qual tomou nota nos seus escritos. Esta tradição confirmada por outras fontes, mostra, em primeiro lugar, o cuidado da Antiga Igreja em provar a origem apostólica do Evangelho. Pela mesma razão, "se tivermos em linha de conta o papel apagado que São Marcos desempenhou na era apostólica, é evidente que o seu nome não surgiria à cabeça de uma das quatro vertentes do Santo Evangelho, se por uma tradição antiquíssima e perfeitamente autorizada não tivesse sido imposto" (A Santa e Sagrada Escritura," comentário exegético de L. Pirot e A.Clamer, Paris 1946: Tomo IX, p.393).

O Evangelho de São Marcos e a Catequese da Igreja Primitiva.

Admite-se geralmente que o segundo Evangelho nos conservou, sob a sua forma mais simples, a catequese, o ensinamento da Igreja primitiva.. Os Três Evangelhos Sinópticos, tais como a Igreja os conservou, escritos em grego, são uma fixação definitiva. Mas esta fixação não surgiu para cada um dos três de uma maneira absolutamente independente e a exegese moderna realizou um trabalho enorme para tentar estabelecer as sua dependências literárias mútuas. Devemos de ter em atenção que o problema das dependências literárias entre os Sinópticos não é o único que se põe para compreendermos a sua gênese (origem), porque os três tem um fonte comum que é a catequese (ensinamento) oral. Isto é particularmente verdadeiro para o Evangelho de São Marcos.

São Justino, apologista cristão do século II, qualifica o segundo Evangelho de "memórias de Pedro." Não tomando a expressão no seu sentido literal, notamos, todavia, que alguns pequenos detalhes próprios á São Marcos só puderam ser precisados por um testemunho ocular. Citemos alguns exemplos: os filhos de Zebedeu deixam o seu pai no barco (Mar. 1:20), enquanto em São Mateus deixam o barco e seu pai (4:22). Quando Cristo fala na sinagoga de Cafarnaum, altura em que lhe trazem o paralítico, somente São Marcos realça o fato de no interior não haver lugar, nem tão pouco diante da porta (2:2-4). Na narração do apaziguamento da tempestade, São Marcos é o único a salientar que Cristo estava á porta, dormindo sobre a almofada (4:38). Quando São Marcos narra a multiplicação dos pães, refere-se que Cristo ordenou á multidão que se sentasse sobre a erva verde (6:39). São Marcos precisa ainda que a mulher curada perto de Tiro e de Sidônia era uma sirofenícia de nascimento (7:26). Quando os discípulos embarcaram após a segunda multiplicação dos pães, esquecendo levar consigo o pão, unicamente São Marcos nos diz que sobrara um (8:14).

Na maioria destes casos a testemunha ocular só poderia ter sido um dos Doze. Além do mais, outros exemplos não menos significativos dizem diretamente respeito a São Pedro: o que permite supor que Pedro fora o próprio a testemunhar tais acontecimentos. O segundo Evangelho é, com efeito, o único a notificar o fato que, na altura em que Cristo deixa Cafarnaum para se retirar do povo, é São Pedro com os seus companheiros que O encontra e O previne que a multidão O busca (1:36-37); é São Pedro, também, que com três outros discípulos coloca a Cristo a questão dos muros de Jerusalém (13:3), etc.

Toda esta série de observações, que poderíamos multiplicar, confirma a Tradição mediante a qual São Marcos teria escrito a catequese (os ensinamentos) de São Pedro. Mas ela refere somente detalhes, mostrando-nos que o primeiro cuidado de São Marcos era estar em conformidade com uma tradição comum já existente.

A Verdade Histórica de São Marcos.

Se é verdade que São Marcos teve conhecimento de um Mateus aramaico, não reteve, contudo, os longos discursos do Senhor. São Marcos na catequese da qual ele é testemunha, retêm bem mais as narrativas dos fatos concernentes a Jesus Cristo nosso Deus e Salvador; todo o seu interesse se concentra sobre os aspectos da manifestação do Reino na pessoa do Filho neste mundo. É, pois, natural que o plano seja menos sistemático, no entanto, mais de acordo com a ordem cronológica dos acontecimentos. Sem ser um livro histórico, uma "vinda de Jesus," o segundo Evangelho é o testemunho de uma catequese que relata os acontecimentos principais da vida de Cristo, como etapas da Revelação do Filho de Deus. Estas grandes etapas da vida de Cristo encontram-se nos três sinópticos. É provável que Mateus grego, completando Mateus aramaico, tenha incluído os grandes discursos deste último nos quadros do plano cronológico de Marcos. Por outro lado, a comparação de São Mateus e de São Lucas, mostra que São Lucas, cujo propósito é "escrever uma exposição seguida" (Luc. 1:3), é fiel ao plano de São Marcos. É, portanto, fiando-nos de preferência em São Marcos que vamos poder precisar as principais grandes etapas da vida e do ministério de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo.

As Grandes Etapas da Revelação.

O batismo por João (Mc. 1:1-13). A narração é muito mais curta do que as de São Marcos (3:1 a 4:11) e de São Lucas (3:1 a 4:13). Nesta introdução à Boa Nova, Jesus é apresentado como Filho de Deus (Mc. 1:1). A voz do Pai dá-lhes testemunho dos céus: " Tu és Meu Filho bem amado" (Mc. 1:11), ao mesmo tempo que o espírito Santo "desce sobre Ele como uma pomba" (Mc. 1:10), Ele recebe o batismo de São João o Precursor (erroneamente apelidado de "Batista"), anunciado pelos profetas (Mc. 1:2). Numa curtíssima narrativa (Mc. 1:12-13), Cristo, movido pelo Espírito, retira-se para o deserto; como um novo Adão, encontra-se no meio das feras, servido por anjos, e luta com Satanás (cf. Mt. 4:1-11; Luc. 4: 1-13).

Ministério galileano (Mc. 1:14-17.23). O ensinamento de Cristo através da palavra é apenas mencionado para este período (Mc. 1:14-15.28); Mc. 2:1-2). Cristo manifesta-se através dos milagres; expulsa os demônios, e opera muitas curas milagrosas (Mc. 1: 23s, 29s, 32s, 40s; Mc.2:1s). As multidões de pessoas simples enchem-se de admiração e de entusiasmo (Mc. 1:22.28.35; Mc. 2:2; 3:7-12; etc.); mas as dificuldades começam: incompreensão dos familiares (Mc. 3:20s, 31s), dos escribas (2:6s), as sua calúnias (3:22s) e incredulidade (4:10-12; 6: 1-6). Cristo acolhe então, de entre os seus discípulos, doze, que passam a acompanhá-lo. As parábolas são-lhes explicadas (4:10s) e eles são enviados a pregar (6:7s). No fim deste período depois do nascimento para os Céus de São João o Precursor (6:17-29), vemos os Doze em torno de Cristo (enquanto da multiplicação dos pães 6:30-44). O milagre da caminhada de Cristo sobre as águas destina-se a fortalecê-los na fé (6:45-52). A multidão de novo se aproxima d’ Ele (6:45), ao passo que se acentua a resistência dos fariseus e dos escribas vindos de Jerusalém (7:1s).

Deslocação de Cristo para fora dos limites da Galiléia; Confissão de Pedro; Anúncio da Paixão; Transfiguração; Subida a Jerusalém (7:24 a 10:52). Os périplos fora da Galiléia explicam-se, em geral, pelo desejo de Cristo de se isolar com os Doze. Percorrem as regiões de Tiro e de Sidônia (7:24-31); o território da Decápole (Mc. 7:31). Cristo prepara os Seus discípulos para a questão decisiva que lhes irá por nas cercanias de Cesaréia de Felipe (8:27-30). São Mateus menciona este périplo (Mt. 15:21), São Lucas omite-o.

A confissão de São Pedro (Mc. 8.27-33; cf. Mt. 16:23; Luc. 9:18-22), é um momento crucial na história da Revelação; o povo, maravilhado pelos milagres e pela palavra de Cristo, via nEle um profeta, Elias, João, o Precursor, Jeremias ou um outro profeta. Pedro, em nome dos Doze, aos quais a questão de Cristo é colocada, confessa solenemente a Messianidade de Jesus Cristo, reconhecendo nEle o Messias prometido e anunciado pela Sagrada Escritura e esperado pelo povo: "Tu és o Cristo" (Mc. 8:29).

Antes da confissão de Pedro, tantos os demônios (1:25:34; 3:12), como os miraculados (1:44; 5:43; 7:36; 8:26), Jesus Cristo impõe sobre a sua identidade messiânica um silêncio quase absoluto. Cristo manifesta a sua Pessoa, primeiramente pelos seus atos, mas também por certas declarações que são já uma revelação implícita da sua Messianidade: o Filho do Homem tem o poder de perdoar os pecados (Mc. 2:10:cf. Mt. 9:6; Luc. 5:24). Ele é o Mestre do Sábado (Mc. 2:28; cf. Mt. 12:8; Luc. 6:5).

Imediatamente após a resposta de Pedro, Cristo aprofunda, diante dos Doze, o sentido do Seu Messianismo: Cristo deve (tem de) sofrer. Este anúncio será repetido por três vezes (8:31s; 9:30s e 10: 32s). O Filho do Homem encontra-se identificado com o Servidor sofrendo as profecias de Isaías (Is. 53). De momento a Revelação é reservada aos Doze, dos quais unicamente três são chamados a contemplar a transfiguração (Mc. 9:2-8; cf. Mt. 17:1-8; Luc. 9:28-36). A narração do endemoninhado epiléptico, que se segue a da Transfiguração (9:14-29), sublinha o contraste entre a visão da Montanha e a realidade deste mundo.

Os Padres Orientais exploram freqüentemente o tema da Transfiguração: para São Gregório Palamas, padre da Igreja Ortodoxa do século XIV, a Transfiguração foi "um prelúdio da aparição visível de Deus na glória que ainda está por vir" (Jean Meyendorff, Gregório Palamas, "Defesa dos Santos Hesicastas," Introdução, texto crítico, tradução e notas, na Spicilegium Sacrum lovaniense. Estudos e documentos, fascículo II, Lovaina 1959: pág 192). Desde agora, ele é já penhor da iluminação " daqueles que comungam dignamente ao raio divino do seu corpo que está em nós, iluminando a sua alma, como iluminou os corpos dos discípulos sobre o Monte Thabor" (pág. 192). Deus é com efeito Luz, a Luz que pode ser interiormente contemplada por um coração puro, porque "o espírito único em si mesmo, diz São Nilo, não contempla mais nada de sensível nem de racional, mas tão só espíritos nus e louvores divinos, dos quais decorrem a paz e a alegria" (pág. 198; cf. pp.198-204: ou outras citações dos Padres mais antigos).

A subida a Jerusalém é sobriamente descrita (Mc. 10). O ensinamento de Cristo durante este período é nos, sobretudo, dado a conhecer através do longo desenvolvimento que lhe é consagrado em São Lucas (9:51 a 19:27).

A aproximação de Jerusalém é marcada pela aclamação messiânica do cego de Jericó (Mc. 10:46-52; cf. Luc. 18:35-43); dois cegos, segundo São Mateus (20:29-34).

O Ministério em Jerusalém (Mc. 11-13; cf. Mt. 21-25; Lc.19:28 a 21). A entrada de Jesus Cristo em Jerusalém é a entrada do Messias, aclamado com filho de Davi, vindo em nome de Deus instaurar o reino. Cristo por Seu lado, sublinha o caráter humilde e pacífico do Seu Reino (Zac. 9:9).

Amaldiçoando a figueira e expulsando os vendedores do Templo, Cristo, à imagem dos antigos profetas, realiza gestos de um valor simbólico e chama a atenção das autoridades, incorrendo no descontentamento destas, que O questionam publicamente sobre a origem da Sua autoridade. A parábola dos vinhateiros (Mc. 12:1-12; cf. com a parábola das Bodas Mt. 22: 1-14), suscita uma série de três perguntas voluntariamente insidiosas a respeito da legalidade do imposto pago a César, da Ressurreição e da Lei. Cristo confunde os Seus adversários e, por Sua vez, coloca-os na impossibilidade de lhe responderem em relação ao filho de Davi.

Ao longo de todo o Seu ministério, Cristo fez inúmeras alusões a chegada escatológica do Filho do Homem, contudo é, em Jerusalém que os sinópticos situam o grande discurso escatológico (Mc. 13:1-37; cf. Mt. 24:1-44; Luc. 21:5-36), como sendo a última etapa do Seu ensinamento messiânico. São Marcos precisa que a Revelação é feita a quatro discípulos entre os Doze (Mc. 13:3; Pedro, Tiago, João e André). A queda de Jerusalém surge ai como um sinal da aproximação do acontecimento escatológico, cuja data não é precisada: A ceia e a traição de Judas precedem a narração da Paixão.

Paixão, Morte e Ressurreição. Os fatos estão presentes a todas as memórias. Vamos nos restringir a fazer duas observações:

 

O Evangelho Segundo São Lucas.

A antiga tradição confirmada pela maioria dos exegetas modernos, atribui o terceiro Evangelho e o Livro do Atos dos Apóstolos a São Lucas. O seu nome não é referido na sua obra, mas o "eu" do prólogo (Luc. 1:3) e o "nós" nas narrativas da segunda parte do livro do Atos (At. 16:10-17; 20:5-15; 21:1 a 28:15) são as marcas de um autor.

O Apóstolo Paulo menciona-o durante a sua primeira prisão em Roma, como sendo um dos seus colaboradores e seu médico bem amado (Filemon 24; Col. 4:14). As passagens que acabamos de citar noa Atos dos Apóstolos permite pensar que São Lucas já era companheiro de São Paulo, no decurso da sua Segunda viagem missionária.

São Lucas permanece fiel a São Paulo, provavelmente até a partida deste para os Céus (2 Tim. 4:11).

A antiga tradição que faz de Lucas um sírio de Antioquia é indiretamente confirmada por São Paulo, posto que não o conta no número dos seus colaboradores "vindos, oriundos da circuncisão" (Col. 4:10-11). "Louvemos o divino Lucas, anunciador da verdadeira piedade, o contemplador dos mistérios indizíveis, a estrela da Igreja, pois o Verbo, o único que conhece os corações, elegeu-te, com Paulo, o sábio, o Apóstolo dos gentios" (Hino da Igreja Ortodoxa).

Numa curta introdução ao Evangelho, o autor, nós diremos Lucas, diz-nos que se serve das fontes:

São Lucas retêm o plano de São Marcos, completando-o. Acrescenta, como São Mateus, uma narração da infância de São João o Precursor e de Cristo que extraiu de uma fonte nitidamente judeu-cristã (Luc. 1:2). Após o Batismo dá-nos, tal como São Mateus, uma narração detalhada da tentação (Luc. 4:1-13). Para o período galileano, a descrição dos fatos e milagres (4:14 a 16:11), precede as parábolas reunidas num discurso pronunciado "sobre a montanha" (6:17-49), menos extenso do que o discurso "sobre a montanha" de São Mateus.

No fim deste período, São Lucas omite o périplo de Cristo fora da Galiléia com os Doze, narra a confissão de São Pedro o anúncio da Paixão e da Transfiguração, para se quedar longamente sobre a subida a Jerusalém.

Subida a Jerusalém.

Ela começa solenemente; Cristo "toma resolutamente o caminho de Jerusalém" (9:51). No plano de São Lucas, esta resolução é tomada depois da confissão de São Pedro, da Transfiguração e de um duplo anúncio feito por Cristo da Sua Paixão, da Sua Morte e da Sua Ressurreição. Ela é tomada porque " se aproximava o tempo em que ele devia ser arrebatado deste mundo" (9:5l). Impõe-se aqui uma observação cronológica; a expressão grega correspondente poderia significar literalmente por "arrebatamento," "assunção." Acrescentamos que a mesma palavra na tradição eclesiástica e litúrgica oriental significa simplesmente "a ascensão." O objetivo final da subida a Jerusalém não seria somente a Paixão, a Morte e a ressurreição de Cristo,, mas a Sua ascensão, que é descrita por São Lucas como uma Ascensão em glória especialmente no Atos dos Apóstolos (1:9). Na concepção mais tardia da teologia joanina, o dia da Paixão de Cristo é já o dia da Sua Glorificação junto ao Pai (Jo. 13:31-32).

Ainda que a Sua decisão já tivesse sido tomada, Cristo fica por mais algum tempo na Galiléia; aqui se situa a missão dos Setenta, ou dos Setenta e dois discípulos, que não é mencionada a não ser aqui (Lc.10:1-20).

A narração dos acontecimentos durante está subida á Jerusalém é fácil de seguir no texto: o ensinamento é muito rico, muito mais rico que para a época Galileana (principalmente em parábolas). Alguns traços podem-no ilustrar: necessidade da oração (O Pai Nosso, o amigo importuno 11: 5-8 e a eficácia da oração 11:9-13); o rico e Lázaro (16:19-31); o rico notável (19:24-30); a penitência (13:1-9); a misericórdia (15:1-32); verdadeiro sentido do Messianismo (11:29-32; 18:31-34); a vigilância em vista á chegada do Filho do Homem (12:35-48; 19:11-27). A narrativa da entrada em Jerusalém e dos acontecimentos que se seguem é nas grandes linhas, a mesma nos três sinópticos, salvo para as descrições das aparições de Cristo ressuscitado.

Teologia de São Lucas: a Salvação.

O Evangelho de São Marcos acentua o contraste este mundo comprometido ao pecado, ao mal, aos demônios, e o Reino de deus manifesto por Cristo: a obra da Salvação é ai vista como uma vitória por Cristo sobre este mundo. Este tema é retomado pelo Evangelho de São Lucas, mesmo nas perícopas que lhe são próprias (Luc. 1:71; 12:13-21).

A verdade ética da Salvação acentuada por São Mateus encontra igualmente ressonância em São Lucas (comparar Mt. 1:21 e Luc. 1:77). Todavia, São Lucas fora o único a acentuar a idéia da salvação como uma libertação do sofrimento. Parece-nos que, no plano de seu Evangelho, a pregação em Nazaré (4:16-30), é intencionalmente colocada no princípio do ministério público de Cristo: Cristo lê aí solenemente a passagem messiânica bem conhecida de Isaías, onde o Ungido é enviado a "levar a Boa Nova aos pobres, a anunciar aos cativos a libertação, aos cegos a visão e aos oprimidos a liberdade" (Luc. 4:18; cf. Is. 61:1-2).

São Lucas, mais freqüentemente do que os demais sinópticos faz menção dos sofrimentos. Desde o início, ouvimos Simeão anunciar a Maria que "uma espada traspassará também a Tua alma" (2:35). São Lucas notou que, sobre a montanha da Transfiguração Moisés e Elias, falam da morte de Cristo (9:31); durante a subida á Jerusalém, falando do Dia Glorioso do Filho do Homem, Jesus Cristo acrescenta: "Mas primeiro convém que Ele padeça muito, e seja reprovado por esta geração" (17:25). Em Jericó, perante uma multidão, "ouvindo eles estas coisas, Ele prosseguiu, e contou uma parábola: porquanto estava perto de Jerusalém, e cuidavam que logo se havia de manifestar o Reino de Deus" (19:11), Cristo pronuncia a parábola das minas, onde "certo homem nobre," antes de ser investido da realeza, deve ainda dirigir-se a um país longingüo (19:12-15). No contexto a imediata aproximação de Jerusalém, é uma alusão aos acontecimentos que se vão seguir. A Salvação, a libertação dos sofrimento, é uma libertação pelo sofrimento. Nos três sinópticos são numerosas as narrações relatando as expulsões de demônios operadas por Cristo; por sua vez, os Apóstolos recebem de Cristo o mesmo poder. São Lucas insiste sobre a continuidade da luta contra Satanás. No fim da narração da Tentação em São Mateus (4:11), o "diabo deixa Cristo." Na sua descrição dos fatos, São Lucas (4:13) sublinha intencionalmente que o demônio deixa Jesus Cristo "até um momento determinado," até uma outra ocasião. Mais tarde, quando os Setenta e Dois regressam alegres porque os demônios lhe obedecem, Cristo diz-lhes: " Eu via Satanás como um raio, cair do Céu" (Luc. 10:18 – notar o imperfeito do verbo). Enfim, o fato é significativo, na véspera da Paixão, a Satanás que, segundo São Lucas, "entra em Judas" (Luc. 22:3), para lhe sugerir a idéia da traição.

Cooperação do Espírito Santo na Obra da Salvação.

Na obra da Salvação realizada por Cristo, a cooperação do Espírito Santo é salientada de uma maneira constante: " Descerá sobre Ti o Espírito Santo, diz São Gabriel a Maria, e a virtude do Altíssimo Te cobrirá com a Sua sombra" (Luc. 1:35). Toda uma série de manifestações proféticas do Espírito Santo são referidas nos dois primeiros capítulos (1:15-41: 67; 2:25-27).

A descida do Espírito Santo no batismo (3:22), a sua intervenção aquando da Tentação, são atestados por São Mateus e por São Marcos. Em São Lucas, o início do ministério na Galiléia é colocado sob o sinal do poder do Espírito Santo (4:14); a Sua pregação inaugural em Nazaré principia por uma referência ao Espírito Santo: "O Espírito do Senhor é sobre Mim, pois que Me ungiu para evangelizar os pobres" (Luc. 4:18; cf. Is. 61:1-2).

Durante a subida á Jerusalém, as referências, como (Luc. 12:10-11), tem os seus paralelos sinópticos. Somente São Lucas menciona, no âmbito de um ensinamento sobre a oração, que o rei dos Céus dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem (11:13). Se virmos que no texto paralelo de São Mateus (7:11) o Pai dá as "boas coisas," conclui-se que, em São Lucas, a coisa boa por excelência é o dom do Espírito. Particularmente importante é a promessa do Espírito Santo no fim do Evangelho, antes da Ascensão: "E eis que sobre vós envio do alto a promessa de meu Pai: ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos do poder" (Luc. 24:49). Sem dúvida alguma que se trata da descida do Espírito Santo no Pentecostes. A promessa é, com efeito, retomada nos Atos dos Apóstolos (1:4) e explicada como o cumprimento das palavras de São João o Precursor (At. 1:5). O livro dos Atos dos Apóstolos falará da ação do Espírito Santo na Igreja. No entanto é na Teologia Joanina que encontraremos desenvolvida de uma forma assaz mais profunda a teologia da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

Aspecto Universalista e Escatológico da Salvação.

A Salvação não está exclusivamente reservada ao povo eleito. Este tema é já confirmado no A.T. e N. T., mas mais especificamente por São Lucas, sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos, em que ele se faz apologista de São Paulo, Apóstolo dos gentios. Ele mesmo de origem pagã, escrevendo por intenção de Teófilo, provavelmente da mesma origem, São Lucas não menciona as palavras de Cristo á sirofenícia, que poderiam parecer duras. Um samaritano é louvado na parábola dos Dez Leprosos (17:11-19), bem como na do Bom Samaritano (10:29-37). A vinda á festa do reino, dos convidados: "Virão do Oriente e do Ocidente do Norte e do Sul" (13:29) é realçada com muito mais ênfase no texto paralelo de São Mateus (8:11), como uma resposta a uma questão expressa sobre o número dos que serão salvos (Luc. 13:23). Reconhecemos Israel no irmão mais velho do filho Pródigo, ele próprio símbolo dos pagãos (15:11-32).

Mas no discurso escatológico, a destruição de Jerusalém é dissociada do fim do mundo, mais nitidamente do que em São Mateus e São Marcos: o retorno de Israel torna-se então possível. São Lucas foi discípulo de São Paulo, mas tinha conhecimentos, podemos supô-lo, das idéias do Apóstolo exprimidas na Epístola aos Romanos (Rom. 9s.).

Mais do que para os outros dois sinópticos, a plenitude da Salvação para São Lucas está ligada á glória do outro mundo, da qual sublinha a manifestação já neste. A nuvem, símbolo da glória de Deus, acompanha, segundo São Lucas, não a Transfiguração e a ressurreição, mas também a Natividade (2:9) e principalmente a Ascensão, durante a qual os anjos resplandecentes de luz anunciam uma Segunda vinda semelhante á Ascensão. A manifestação da luz prefigura, no livro dos Atos dos Apóstolos, a glória do século futuro (At. 7:55-56; 22:6-11).

 

O Evangelho Segundo São João.

A autenticidade joanina do quarto Evangelho foi, e é ainda, freqüentemente contestada. Contudo, é preciso referir que um número cada vez maior de críticos modernos admitem o dado tradicional. À parte os testemunhos assaz numerosos dos Padres da Igreja, faz-se valer um argumento muito interessante, relevando da crítica interna, ou seja da leitura talvez do próprio Evangelho. O argumento repousa sobre uma observação preliminar: é, a prior, surpreendente que São Tiago e São João, filhos de Zebedeu, tantas vezes nomeados pelos Evangelhos sinópticos, não o sejam sequer uma só vez pelo quarto Evangelho, quando quase todos os outros Apóstolos o são em grande número de vezes.

Por outro lado, o quarto Evangelho fala amiúde do "discípulo que Jesus amava"; este último esta sentado ao lado de Cristo na última Ceia (Jo. 13:23), está presente no Calvário ao lado da Mãe de Deus (19:26), é um dos primeiros, com Pedro, a correr ao Túmulo (20:2-9), encontram-se nas margens do lago de Tiberíades (21:7-23). Não existe razão alguma para o distinguir do discípulo anônimo de São João o Precursor que, com Santo André, São Pedro e São Felipe, seguiram a Cristo nas margens do rio Jordão, nem do "outro discípulo" que faz que São Pedro entre na sala do Palácio do Sumo Sacerdote Caifaz (18:15), nem tão pouco do "discípulo" que "escreveu" o Evangelho (21:24), ainda que esta referência possa fazer parte de uma adição redacional mais tardia (cf. Jo. 21:1 e 21:24). Todas estas citações mostram que este discípulo anônimo era, entre os Doze, um dos íntimos de Cristo. Todavia os Evangelhos sinópticos distinguem, entre os Apóstolos um grupo de três que estão mais próximos do Mestre: São Pedro, São Tiago e São João. São os únicos, ao interior dos Doze, a acompanhar Jesus Cristo, aquando da Ressurreição da filha de Jairo (Mc. 5:37; Luc. 8:51), aquando da Transfiguração (Mc. 9:2; Mt. 17:1; Luc. 9:28), e no Jardim do Getsêmani (Mc. 14:33; Mt. 26: 37). Juntamente com Santo André assistem á cura milagrosa da sogra de Simão (Mc. 1:29) e recebem a revelação feita por Cristo em relação á Parusia (Segunda vinda de Cristo). De acordo com os sinópticos, o grupo de quatro é formado pelos primeiros chamados (Mc. 1:16-20; Mt. 4: 18:22; Luc. 5:1-11).

A conclusão impõe-se: o discípulo anônimo de Cristo, presumível autor do Evangelho, é um dos filhos de Zebedeu. Ora São Tiago passa pelo martírio, partindo muito cedo para o reino dos Céus (At. 12:2). Resta então, São João, filho de Zebedeu. O reverendo Padre. F. M. Braun (A S. E., comentário exegético e teológico sob a direção de L. Pirot e A. Clamer, Paris 1946: Tomo X, pag. 296), conclui, dizendo:

"A alusão é tal forma transparente que mal se pode ainda falar de anonimato. Confessamos que, distinguir-se mais claramente com tanta modéstia, seria difícil."

Nós sabemos através dos sinópticos que os filhos de Zebedeu eram pescadores do lago de Tiberíades. Alguns textos dos Evangelhos sinópticos fornecem-nos alguns dados sobre o caráter bastante fogoso dos dois irmãos (Mc. 3:17; Luc. 9:51-56; Mc. 10:35-40; Mt. 20:20-24).

Mas o quarto Evangelho fala-nos de uma forma particular dos laços de amor que união São João ao Seu Divino Mestre. Os teólogos Ortodoxos sublinham que "a primazia do amor," que distinguia São João entre os Doze, colocava-o em pé de igualdade com São Pedro, primeiro pela sua fé ardente. Os dois Apóstolos são freqüentemente associados (Luc. 22:8; At. 3:1; 8:14; Jo. 13:23-24; 18:15; 20:2s; Gal. 2:9). São Pedro é, no entanto, sempre nomeado o primeiro (cf. a nossa Introdução á I Epístola de São Pedro).

Depois da Ascensão, São João está em Jerusalém (At. 3:1; 8:14; Gal.2:9). Vários testemunhos patrísticos mais tardios (Taciano), mencionam ainda a sua presença em Antioquia, e em Éfeso (Santo Irineu de Leão), bem como a ilha de Patmos (Apoc.1:10). Todos os críticos que reconhecem a autenticidade do Evangelho admitem que fora composto por São João o Teólogo no fim do século I.

O Simbolismo de São João; O Plano.

Precisar o plano do Evangelho de São João é muito difícil. A introdução Católica Romana propõe uma divisão cômoda, mas avança algumas observações que nós queremos estabelecer.

Primeiro, desvenda-se na trama do Evangelho, no princípio, no meio e no fim, três semanas de sete dias; uma primeira semana (Jo. 1:19 a 2:13), contada quase dia por dia ("a manhã," Jo. 1.29.35.43; "o terceiro dia " Jo. 2:1) culmina com a manifestação da Glória de Jesus Cristo Nosso Deus e Salvador; uma Segunda semana (Jo. 7:1-39) é a da festa dos Tabernáculos (Jo. 7:2); "no meio da festa" (Jo. 7:14), Cristo sobe a Jerusalém, e no "’ultimo dia da festa, o grande dia" (JO. 7:37), provavelmente o sétimo, o Mestre promete solenemente o Espírito, após a Sua Glorificação (Jo. 7:37-39); uma terceira semana é a Páscoa da Ressurreição: "seis dias antes da Páscoa Jesus vem à Betânia" (Jo. 12:1); de manhã, Jesus Cristo entra solenemente em Jerusalém (Jo. 12:12). Antes da Páscoa tem lugar a última Ceia (Jo 13:15). Jesus é crucificado no dia da preparação da Páscoa. No sétimo dia, Cristo está no túmulo. Esta última semana culmina também com a Glorificação de Cristo, fim de todo o Evangelho. Todavia a Ressurreição situa-se, no " primeiro dia da semana" (Jo. 20:1) que se segue. As primeiras aparições de Cristo Ressuscitado têm lugar nesse dia (Jo. 20:19). Este dia é como um oitavo dia; a Segunda aparição aos Onze tem lugar oito dias depois (Jo. 20:26

O mesmo número de sete constitui o vigamento, a estrutura do plano do Apocalipse Joânico: sete espíritos, sete Igrejas, sete selos, sete trombetas, sete flagelos, sete taças, mas também as sete Beatitudes (Bem-Aventuranças). Sete é o número que simboliza a plenitude de um período de tempo resoluto (sete dias da Criação, os setenta anos de exílio na Babilônia, cf. Jer. 25:11; as setenta semanas de ano que precedem a libertação final, definitiva, cf. Dan 9:24s). Mediante a mesma lógica, o número três e meio designa o triunfo das forças do mal (Dan. 9:27; Apoc. 11:9). A alusão ao oitavo dia reporta-se a inauguração de um novo período na História da humanidade, uma nova era. É esse dia que se tornou para os cristãos Católicos Romanos o "Dies Domini" (os dias do Senhor), chamados pelos cristãos Ortodoxos a Dia da Ressurreição.

Não é também por simples acaso que em todo o quarto Evangelho não possamos contar senão sete milagres ou "sinais" (As Bodas de Canã, 2:1s; o filho do oficial real, 4:43s; o enfermo de Betânia, 5:1s; a multiplicação dos pães, 6:1s; a caminhada sobre as águas, 6:16s; o cego de nascença, 9:1s; o sétimo milagre é a ressurreição, a de São Lázaro,11:1s). Os sete milagres precedem o oitavo, o da Ressurreição do próprio Cristo, inaugurando uma nova humanidade.

O número três é igualmente significativo: há três Páscoas (2:13; 6:4; 11:55s), enquadrando três outras festa judaicas (5:1; 7:2; 10:22) cobrindo um período aproximadamente de três anos do ministério de Cristo.

Ao simbolismo dos dias junta-se de uma maneira peculiar o simbolismo da hora. No fim da primeira semana, "a hora" de Cristo ainda não é chegada (2:4); contudo o milagre da transformação da água em vinho é já uma prefiguração (um anúncio), (2:11-12). No início da Segunda semana, a hora tão pouco era chegada (7:6; 8:30), mas a grande promessa da vinda do Espírito é já pronunciada. Durante a última semana, Cristo diz; "Eis que é chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser glorificado" (12:23; 13:1; 17:1).

A este simbolismo da hora, ligado ao simbolismo dos dias (as semanas dos dias), junta-se o simbolismo ainda mais profundo da água: o Batismo, a água das Bodas de Canã, o nascimento da água e do Espírito (3:5), a promessa de uma água viva que jorrará mesmo na Vida Eterna (a samaritana, junto ao poço de Jacó 4:14); a promessa do Espírito sob a imagem de "rios de água viva" (7:37-39).

Monsenhor Cassiano consagrou a sua tese de Doutorado ao tema de uma passagem da primeira epístola de São João: "Este é Aquele que veio por água e por sangue, isto é, Jesus Cristo: Não só por água, mas por água e por sangue. E o Espírito é o que testifica porque o Espírito é a Verdade. Porque três são os que testificam no Céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E os três são os que testificam na terra: o Espírito, e a água e o sangue: e estes três concordam em um, (Jo. 5:6-8). Este fragmento dá, segundo Monsenhor Cassiano, a chave do simbolismo da água, ligado a imagem do vinho (Jo. 2:1-12), ao sangue (Jo. 19:34) e ao espírito (Jo, 3:5; 7:37-39).

O contraste entre a luz e as trevas é uma das características marcantes da teologia joânica. Logo no prólogo do seu Evangelho o podemos constatar (1:4-5.9-13). O tema da luz é retomado na conversa com Nicodemos (3:19-21) por oposição as trevas; na cura do Cego de nascença (9:15), por oposição á morte; a propósito da ressurreição de São Lázaro por oposição á noite e á morte (11:9-14). O próprio Cristo "é a Luz do mundo" (8:12). Antes da última Ceia precede a noite da Paixão, Cristo declara: "A luz ainda está convosco por um pouco de tempo" (12:35); quando no fim da Ceia, Judas sai, o evangelista termina, dizendo: "E já era noite" (13:30).

Desde o amanhecer do oitavo dia, Maria Madalena encontra o túmulo vazio (20:1).

Por detrás deste simbolismo muito peculiar, antevê-se a alma mística do autor. A tendência da crítica moderna para distinguir no texto uma sobreposição de extratos sucessivos, devido a um desenvolvimento progressivo da tradição joânica, poucas vezes tem em linha de conta o caráter pessoal da obra, marcada por um gênio religioso excepcional.

O Evangelho possui uma unidade interior que só se descobre numa visão de conjunto. O simbolismo não deve fazer esquecer o valor histórico subjacente, cada vez mais valorizados pelo trabalhos atuais.

A Teologia do Prólogo.

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (1:1). O termo "Logos," traduzido imperfeitamente para as nossa línguas modernas por "Verbo," ou "Palavra," é o nome de Cristo na Teologia joânica: "Seu nome é o Logos de Deus" (Apoc. 19:13). Os Padres da Igreja, São João Crisóstomo e São Cyrilo de Alexandria, retomados pelos comentadores modernos (F. M. Braun, Mons. Cassiano) sublinham o alcance do verbo "era." Enquanto que o Gênesis principia pela afirmação do ato criador: "No princípio, Deus criou..."; o prólogo afirma: "No princípio o Logos era... "; quer isto dizer que existia eternamente junto de Deus e que Ele (Logos) era Deus. Não se trata aqui de uma pré existência antes da Criação, mas de uma existência que faz com que o Logos seja co-imprincipiado com o Pai e co-eterno com o Pai. "Eu Sou Aquele que Sou," disse Deus na Antiga Aliança (Êxodo 3:14); em São João, Cristo dirá: "Em verdade, em verdade, vos digo, antes que Abraão fosse, Eu era" (8:58). Esta afirmação "Eu Sou," sem atributo é repetida através de todo o Evangelho de São João, sete vezes (Jo. 8:24.28.58; 13:19; 15:5.6.8).

Os primeiros versículos do Prólogo do Evangelho de São João forneceram aos Padres da Igreja os seus melhores argumentos para defenderem a Divindade de Cristo. Associaram facilmente a apelação Logos as outras apelações de Cristo tiradas da literatura pauliniana e interpretaram-nas á luz da teologia joânica: Cristo é "o resplendor (Heb. 1:3); o Logos (Jo.1), a Imagem (Col. 1.15) e a Sabedoria (1 Cor. 1:24), do Pai, dirá Santo Atanásio, e as criaturas estão bem abaixo da Trindade servindo o Verbo Encarnado. O Filho é, pois, duma outra origem, duma outra natureza, estranha às criaturas. Ele é da mesma natureza que o Pai" ("Contra os Arianos." "A Imagem de Deus segundo Santa Atanásio," Paris 1952: pag. 105).

Existindo desde toda a eternidade em Deus, o Logos é o Criador do mundo. O Prólogo insiste sobre esta afirmação (1:3: 10) e permite mensurar o abismo que separa a concepção Joânica do Logos da concepção dos Estóicos, por exemplo, que se serviam da mesma expressão para designar o elemento ativo e inteligente do mundo, da do judeu elenizante Fílon, para quem o Logos é uma espécie de poder emanado de Deus. Falando contra os Estóicos e contra a sua concepção dos "Logoi," Santo Atanásio dirá: "Eu não falo desse Logos que foi misturado e assimilado a cada uma das criaturas... Mas eu falo do próprio Logos, do Deus Bom do Universo, do próprio Deus vivendo e agindo; Ele difere dos seres criados e de toda a Criação; Ele é o único e próprio Logos do Pai" (Santo Atanásio de Alexandria; "Contra os pagãos"; Soucers Chrétiennes, N.º 18, Paris, 1946, pp. 190-191).

A figura do Logos joânico lembra a da sabedoria divina da literatura sapiensal do Antigo Testamento; "O Senhor me possuiu no princípio dos Seus caminhos, e antes de Suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da Terra" (Prov.8:22-23). Ele, o Logos de São João, não foi criado; é, pelo contrário, Criador. A propósito da Sabedoria, lemos: "A sua intimidade com Deus faz resplandecer a sua nobre origem, pois o Mestre do Universo amou-A" (Sab. 8:3); o Logos de São João, está junto de Deus (alguns traduzem com Deus), mas Ele "é Deus."

Possuindo a vida em Si mesmo, o Logos é a fonte da vida para os homens. Ele é a sua luz que as trevas não puderam extinguir, agarrar, nem dominar. Este tema, amplamente desenvolvido ao longo de todo o Evangelho, é apenas esboçado no Prólogo (1:4-5), para salientar as prerrogativas divinas do Logos.

Encarnado, o Logos revela-se Filho de Deus: "Deus nunca foi visto por ninguém" (1:18), mas o Filho único que está no seio do Pai, deu-O a conhecer e revelou o Seu nome que é "O Pai" (1:18; 17:6). A glória que o Filho tinha junto do Pai "antes que o mundo existisse" (17:5) é manifestada aos homens (1:14; 17:6).

Revelado Filho, o Logos dá aqueles que O receberam, aqueles que crêem no Seu Nome, o poder de se tornarem, por sua vez, filhos de Deus (1:12). Esta idéia da filiação dos homens ao Pai, que é também pauliniana, encontrará um longo e belo desenvolvimento na oração sacerdotal (Jo. 17). "A Salvação, pensava Santo Atanásio, compreendia como filiação a Deus, não podia ser realizada por homens, ainda que eles fossem criados á imagem de Deus, nem por anjos que não foram criados á imagem de Deus." Santo Atanásio dirá também que o Logos de Deus veio, Ele próprio, para que, sendo Ele a imagem do pai, pudesse recriar o homem segundo á imagem perdida devido ao pecado original.

Santo Atanásio resume o seu pensamento numa frase célebre: "O Verbo de Deus fez-se Homem, para que o homem se tornasse Deus."

Teologia Trinitária de São João: Cristo Filho de Deus.

Jesus é chamado Filho de Deus por São João o Precursor, em primeiro lugar (Jo. 1:36; 3:33-36), por Natanael (1:49),e, mais tarde, por São Pedro, em nome dos Doze, numa confissão solene (6:69) que pode ser considerada como o paralelo joânico da confissão de Pedro nos Evangelhos sinópticos (Mat. 16:13-20). Mas, mais freqüentemente ao longo de todo o Evangelho, é o próprio Cristo que proclama Deus, como Seu Pai. Encontramos uma primeira alusão quando Cristo expulsa os vendedores do templo: "Não façais da Casa de Meu Pai casa de comércio" (2:16). Dirigindo-se a Nicodemos, Cristo emprega o plural, "Nós dizemos... Nós testificamos..." (3:11). O seguimento do texto faz-nos compreender que se trata de Cristo e do Seu Pai (3:11-21). A partir do capítulo 5 o tema ocupa várias perícopas (5:17-47; 6:26-71; 8:12-59; 10:11-39). Por último, no momento da entrada em Jerusalém, antes da Paixão, é a própria voz do Pai que se faz ouvir (12:28-29). Cristo é crucificado, porque Ele é chamado "Filho de Deus" (19:7).

Cristo imensa vezes, através de todo o Evangelho, faz apelo ao testemunho do Pai: "Se Eu testifico de Mim mesmo, o Meu testemunho não é verdadeiro. Há outro que testifica de Mim..." (5:31-32). Este outro, cujo testemunho é maior que o de Cristo, é o Pai: "Ele dará testemunho de Mim" (5:37; 8:17-18.42; 12:49). As obras que Cristo pratica não são as Suas, mas sim as de Seu Pai (5:36; 10:25). Elas são realizadas não segundo a vontade do Filho, mas segundo a vontade d’Aquele que O enviou (6:38; 8:28; 10:18). Porque "Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a Vida Eterna" (3:16-17). É por esta razão que o Pai ama o Filho, "entregou todos as coisas nas Suas mãos (3:35). Entregou-Lhe todo o julgamento (5:22) e "marcou-O com Seu selo" (6:27) e finalmente, glorifica - O (8:54) para ser n’ Ele glorificado (13:31; 17:5).

Unidade do Pai e do Filho.

Esta unidade é realçada, desde o Prólogo, pela afirmação da Divindade do Filho único (1:14-18; 3:16-18) conforme a expressão de São Paulo o "Primeiro nascido" (Col. 1:15s) e a nossa introdução às Epístolas paulinianas. Como Santo Atanásio diz, o Filho "é igual ao Pai enquanto engendrado e igual enquanto Deus... Eles são Um, e uma só e mesma Divindade; dizemos do Filho tudo o que dizemos do Pai; não só O tratamos por Pai" ("Contra os Arianos," III P. G. Migne XXVI, 328c-529 a). Estas palavras de Santo Atanásio encontram o seu apoio em São João: "Porque como o Pai tem a vida em Si mesmo assim deu também ao Filho Ter a vida em Si mesmo" (5:26), o que não impede que seja dito mas adiante que Cristo vive "pelo Pai" (6:57). O que é dito do Pai é dito do Filho a propósito da Ressurreição; com efeito, tal como o Pai ressuscita os mortos e dá a vida, da mesma forma também o Filho dá a vida a quem Ele quer (5:26). Ninguém pode ir a Cristo se o Pai, que O enviou, não o chamar (6:44) mas é Cristo que promete, Ele próprio, e por duas vezes, a ressurreição e a vida àquele que crer n'Ele (6:40.47). A idéia desenrola-se como sempre em São João, através de todo o Evangelho; no momento da Ressurreição de São Lázaro, Cristo declara solenemente: "Eu Sou a Ressurreição e a Vida" (11:25-26). A repetição, ao longo de todo o Evangelho, da afirmação "Eu Sou," está na mesma linha. A unidade do pai e do filho exprime-se pela Palavra de Cristo ""O Pai e Eu, Somos Um" (10:30).

O Filho: Revelação do Pai.

"Ninguém jamais viu Deus; o unigênito que está no seio do Pai, este O fez conhecer" (1:18; cf. variante do texto crítico grego e nota explicativa sobre este versículo; Jo. 5:37; 6:46). Aos judeus que se opunham a Cristo, é dito: "Vós não Me conheceis, nem a Meu Pai" (14:7), repete Cristo no Seu discurso de despedida, mas acrescenta: "Já desde agora O conheceis e O tendes visto (14:7). E Cristo repete-o imediatamente depois a Filipe: "Quem Me vê a Mim, vê o Pai... Não crês tu que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim?... O Pai que está em Mim é quem faz as obras. Crede-Me que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim" (14:9-20, e na Oração sacerdotal 17:21).

Esta revelação do Pai na Pessoa do Filho Encarnado é já nela mesma a Salvação dos Homens: o Pai enviou Seu Filho único, para que todo homem que crê n’Ele tenha a vida eterna. É a idéia mestra que encontramos com insistência, sobretudo nos primeiros capítulos (3:16-36; 4:14.34-37; 5:39; 6:40.47.57). O Pai deu o julgamento ao Filho (5:22), da mesma forma que tudo quanto o Pai tem pertence também ao Filho (16:15); mas aquele que escuta a Palavra de Cristo e crê n’Aquele que enviou o Verbo, tem "A Vida Eterna e não estará em condenação, mas, passou da morte à vida" (5:24). É a vontade do Pai que assim seja (6:40). Quem comer o Pão da Vida viverá eternamente (6:58); ora esse Pão descido do Céu é a Carne do Filho do Homem (6: 53-59).

O Pai amou tanto os homens que enviou Seu Filho ao mundo (3:16). Por sua vez, "Cristo que havia amado os Seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim" (13:1). "Até o fim " que dizer de uma maneira total." O amor do Filho pelos "Seus " é, pois, à imagem do amor do Pai pelo Filho: "Como o Pai Me amou, também Eu vos amei a vós; permanecei no meu amor" (15:9). Por seu turno, os "Seus" recebem um mandamento: "amai-vos uns aos outros" (13:34; 15:17). Por que é que Cristo chama este mandamento de um "mandamento novo" (13:34)? O contexto dá a razão:..". Como Eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis." O amor entre os fiéis está aqui à imagem do Amos de Cristo pelos Seus, ao passo que, no contexto do capítulo 15: o mandamento refere-se à imagem do amor que une o Pai ao Filho. "Como o Pai me amou, também Eu vos amei a vós; permanecei no meu amor" (15:9). O amor recebe o seu acabamento final no conhecimento: doravante Cristo não chama mais os Seus discípulos servidores, mas amigos, porque eles sabem tudo que Cristo aprendera de Seu Pai (15:15). Ora, conhecer, consiste em conhecer em definitivo o único Deus Verdadeiro, o Pai e Aquele que o Pai enviou (17:3) "Manifestei o teu Nome aos homens" (17:6). Este Nome é o de Pai: "...eles Têm verdadeiramente conhecido que sai de Ti; e creram que Me enviaste" (17:8).

A unidade dos fiéis, que Cristo em seguida pede na mesma oração encontra o seu modelo, também ela, sobre a unidade do Pai e do Filho:..".Como Tu ó Pai, o És em Mim e Eu em Ti; que também eles sejam em Nós" (17:21). Esta é uma das idéias mestras do Prólogo e mesmo de todo o Novo testamento (cf. introdução às Epístolas Paulinas), a idéia da filiação humana em relação ao Pai, graças ao Filho do Homem.

Glorificação do Filho e a Promessa do Espírito Santo.

A Glorificação de Cristo é também ela um dos grandes temas de São João o Teólogo. Cristo é a "Luz Verdadeira" que vem a este mundo (1:9); este mundo prefere as trevas mas aquele que segue Cristo possui a "Luz da Vida" (8:12; 12:46). À medida que a hora de Cristo se aproxima, as trevas tornam-se cada vez maiores, porque Cristo veio a este mundo a fim daqueles que não vêem, vejam, e aqueles que vêem sejam cegos (9:39-41). No momento em que Judas abandona a refeição, é de noite (13:30); mas a hora de Cristo é a hora da Glorificação do Filho do Homem. Imediatamente após a saída de Judas, sem transição Cristo anuncia solenemente: "Agora é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glorificado n’Ele (13:31).

A "hora" da Glorificação é a hora da vitória sobre as trevas, a hora em que o príncipe deste mundo é expulso (12:31; 16:11). Mas é igualmente a hora em que o Filho do Homem deve subir aos Céus (3:13) para ir para junto d‘Aquele que O enviou (7:33). Também a questão da Elevação do filho do Homem foi retomada várias vezes. De que Elevação se trata justamente, da Elevação da Cruz, como é indiciado pela imagem da serpente elevada no deserto (3:14), ou da Elevação para junto do Pai? O texto 8:28 não é explícito; o texto 12:32 é o um pouco mais: "E Eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a Mim." Trata-se da morte de Cristo (12:33), mas ao mesmo tempo da Elevação do Filho para junto do Pai, como aquando da Sua Glorificação última.

Nos últimos capítulos o tema da partida do Filho para junto do pai é constantemente abordado (13:33; 14:12.28; 16:5.17.28; 17:11). Esta partida de Cristo para junto do Pai é, por sua vez, a Glorificação do Pai e do Filho. Mas todos aqueles que Cristo atrai a Si (12:32) participarão também eles mesmos Glória.

A última promessa de Cristo aos Seus discípulos, feita durante o discurso de despedida, é a do envio do espírito Santo (cf. Luc. 24:49); At. 1:5-8).

É "curioso" que o Prólogo não faça menção do Espírito Santo. Os primeiros capítulos contêm apenas algumas alusões ao Espírito Santo, freqüentemente associadas à imagem da água vivificante: "Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus" (3:5). O Espírito Santo que "sopra onde quer" (3:8) é dado sem medida (3:34). O próprio Deus, sendo Espírito, deve ser adorado "em espírito e em Verdade" (4:24). A vinculação entre o Espírito Santo e a Verdade é uma outra característica da Teologia joanina (1Jo.5:6), da mesma forma que a ligação entre o espírito Santo e a Vida (6:63).

Todas estas menções esparsas, impregnadas de simbolismo, preparando-nos para uma primeira promessa do Espírito Santo pronunciada no fim da Segunda semana, durante o "grande dia "da festa dos Tabernáculos no Templo..." Se alguém tem sede, venha a Mim e beba. Quem crê em Mim como diz a Sagrada Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre" (7:37-38).

São João, o teólogo, o discípulo bem-amado, precisa que Cristo falava do Espírito Santo, mas deixa entender que a promessa é para o futuro: "Porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus Cristo não Ter sido glorificado" (7:39).

A grande promessa feita quando do discurso da despedida. Cristo promete interceder junto do Pai para que Ele envie "um outro Consolador" que é "o Espírito de Verdade," o qual permanecerá para sempre junto dos Seus discípulos (14:16-17). "O Espírito de Verdade que o mundo não pode receber, porque não O vê nem O conhece: mas vós O conheceis, porque habita convosco, e estará em vós" (14:17). "Naquele dia" (14:20) cumprir-se-á a Revelação do Pai pelo Filho, na unidade: "Naquele dia conhecereis que estou em Meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós." "Naquele dia," significa a nova era da Vida da Igreja, vivendo dos Dons do espírito Santo, que recordará aos fiéis tudo que Cristo disse ou ensinou (14:26; 16:12-13).

Todavia, o envio do Espírito Santo é condicionado pela subida de Cristo aos Céus em Glória (16:4-15). O Espírito santo provém do Pai, mas Cristo envia - O da parte do Pai (15:26). Este texto constitui o apoio escripturístico da Teologia Ortodoxa, que nega e refuta a processão do Espírito Santo "a Patre Filioque."

Após a Ressurreição e durante a Sua Segunda Aparição aos Onze, Cristo sopra sobre os Seus discípulos e diz-lhes: "receberei o espírito Santo" (20:22). Começa, então, a partir desta altura, uma nova era religiosa.

 

 

Introdução ao Livro dos Atos dos Apóstolos.

 

 

O Autor, o Texto, a Composição.

A antiga Tradição da Igreja, confirmada desde o século II, atribui a composição do Livro dos Atos dos Apóstolos a São Lucas, presumível autor do terceiro Evangelho. A exegese moderna, por sua vez, é praticamente unânime em aceitar o que a Tradição da Igreja afirma.

Tal como o terceiro Evangelho, também o livro dos Atos dos Apóstolos não menciona o nome do autor. Contudo, algumas seções do livro (16:10-17; 20:5-15; 21:1-8; 27:1s), escritas na primeira pessoa do plural, permitem supor que São Lucas se juntou a São Paulo durante a Segunda viagem missionária deste último, quando o Apóstolo dos gentios se preparava para se dirigir de troas à Europa. São Lucas acompanha São Paulo até Filipe (16:11-15). Encontramos de novo a narração da primeira pessoa do plural no fim da terceira viagem de São Paulo, quando o Apóstolo se dirige uma última vez à Jerusalém (21:1-18) e, por fim, depois da prisão de São Paulo, quando da sua transferência por mar para Roma (27 a 28:15).

Durante os dois anos de cativeiro de São Paulo em Roma, São Lucas é o seu colaborador (Filemon 24), o seu médico bem-amado, (Col.4:14). Ele permanece fiel a São Paulo durante a Segunda estada na prisão em Roma deste último (2 Tim. 4:11).

O terceiro Evangelho e o livro dos Atos dos Apóstolos são dedicados a um certo Teófilo, provavelmente um alto funcionário honrado com o título de "ilustre," talvez cristão (Luc. 1:3-4).

O texto do livro dos Atos dos Apóstolos, como acontece quase sempre com os autores antigos, foi-nos conservado num grande número de manuscritos de origens e datas diferentes. Estes manuscritos puderam ser classificados em dois grandes grupos denominados, impropriamente, "texto oriental" e "texto ocidental ‘. O primeiro é representado pelos grandes unciários do século IV (Aleph. B, C, A) e confirmado pelos papiros mais antigos o segundo por D e por algumas citações patrísticas. É um fato que os dois grupos de textos apresentam divergências muitíssimo mais notáveis do que nos é prodigalizado encontrar no resto do Novo Testamento; a tradução da "Sagrada Escritura de Jerusalém,"dá muito freqüentemente a sua leitura paralela em nota.

A existências destas divergências coloca diante dos especialistas modernos de crítica textual um problema difícil. Alguns sábios (Blass, seguido de Zahn e outros) chegaram a supor que certas discrepâncias podiam remontar ao próprio Apóstolo São Lucas, que teria, por uma razão desconhecida, recopiado o texto e nele introduzido correções. Esta hipótese, interessante nela própria, não recebera, no entanto, a aprovação geral. Os modernos tradutores dão a sua preferência ao texto dito de "oriental."

Sem voltarmos aqui às antigas posições da escola de Tübingen; que via no livro do Atos dos Apóstolos uma síntese de composição tardia (século II), é interessante relembrar a obra do grande sábio alemão Adolf Harnack. Ele teve, o primeiro entre os sábios de tendência liberal, o mérito de demonstrar, mediante critérios lingüísticos e estilísticos precisos, a unidade do autor do terceiro Evangelho e do livro dos Atos dos Apóstolos.

Além do mais, Harnack tentou também através do método de análise literária do texto, delimitar as seções do livro dos Atos dos Apóstolos em que São Lucas seria tributário de fontes escritas. O seu desejo era legítimo na medida em que, é o próprio Apóstolo São Lucas a deixar subtender, no prólogo do Evangelho, que utilizou algumas fontes para a composição da sua obra (Lc.1:1-3). Mas a delimitação exata destas fontes do texto, revelou-se assaz difícil. Desde 1930, que os métodos de investigação histórica se tornaram muito mais flexíveis. Abandonou-se a idéia de fontes extensas e prefere-se da hipótese da utilização por São Lucas de narrativas isoladas, mais ou menos breves, combinadas com outras narrativas recebidas de viva voz. A utilização por parte de São Lucas dos Evangelhos de São Mateus e sobretudo de São Marcos, permite-nos Ter a certeza que São Lucas não se limitou a recopiar as fontes das quais se servia, mas que ele próprio as arranjava e articulava de acordo com uma nomenclatura própria.

Do capítulo 1 ao 5 serviu-se de fontes que diziam diretamente respeito à comunidade primitiva de Jerusalém. Em seguida serviu-se daquelas que relatam a atividade de personagens particulares como São Pedro (9:32 a 11:18; 12) e São Filipe (8:4-40), tendo tido estas últimas fornecidas pelo interessado, que São Lucas encontrou em Cesaréia (21:8). A comunidade de Antioquia está sem dúvida, na origem das narrativas que contam a sua preparação e a sua fundação pelo movimento de judeus helenistas (6:1 a 8:3; 11: 19-30; 13:1-3). O próprio Apóstolo São Paulo informara São Lucas sobre a sua conversão e sobre as suas viagens missionárias (9:1-30; 13:4 a 14:28; 15:36). No que concerne ao resto do livro, de São Lucas, tendo sido freqüentemente testemunha direta da atividade de São Paulo, pôde utilizar e completar as suas próprias notas e recordações da viagem.

Do ponto de vista histórico, revelaram-se alguns pontos fracos na narrativa dos Atos dos Apóstolos, por exemplo a advertência de Gamaliel face a sublevação messiânica que temos fortes razões para acreditar estar mal datada (At. 5:37), ou a enumeração de visitas de São Paulo à Jerusalém (9:26; 11:30; 12:25; 15:1), dificilmente conciliáveis com as informações dadas pelo próprio Apóstolo São Paulo (Gál.1:15s; 2:1). Mas isto tudo não são mais do simples questões de detalhes.

A crítica moderna vê igualmente na descrição do Concílio de Jerusalém (At. 15) uma narração de dois acontecimentos distintos que teriam tido lugar em momentos diferentes.

Perguntamo-nos também por que razão é que São Lucas interrompe a sua narrativa no momento em que São Paulo chega a Roma, mencionando apenas e muito rapidamente que o Apóstolo, usufruindo de uma liberdade relativa, permaneceu ainda durante dois anos na prisão (At. 28:30-31). Se admite – se a autenticidade paulina das epístolas pastorais, somos forçados a admitir que São Paulo fora libertado uma primeira vez (1Tim.1:3; Tt.1:5). Ele teria então empreendido uma última viagem à Roma e encontrou-se de novo na prisão (em Roma), pressentindo já uma morte próxima (2 Tim. 4: 6-8), abandonado por todos (2 Tim.4:16); só São Lucas o não abandonara. Por que é que São Lucas omitiu a descrição do martírio de São Paulo que a tradição da Igreja coloca em Roma? A exposição que se segue permite vislumbrar algumas respostas a estas questões.

 

Pela comodidade da sua análise podemos dividir o livro em três partes principais:

 

 

A Primeira Comunidade de Jerusalém.

Os cinco primeiros capítulos abrangem um período de aproximadamente cinco anos. São Lucas esboça um quadro da vida da primeira comunidade em Jerusalém; os fiéis em número de cento e vinte, primeiramente (At.1:15), de três e de cinco mil em seguida (At.2:41; 4:4), agrupam-se em torno dos Doze, no meio dos quais São Pedro, durante este primeiro período, é incontestavelmente o primeiro, enquanto ícone de unidade do Colégio Apostólico (Mat. 10:1-2). É ele, com efeito, que, antes do Pentecostes, toma a iniciativa da eleição de um décimo segundo Apóstolo, São Matias, para ocupar o lugar deixado vago por Judas (At. 1: 15s); é ele que, no meio dos Onze e em seu nome, pronuncia a pregação inaugural após o Pentecostes (2: 14-41); é ele que, acompanhado por João o Teólogo, realiza um milagre no Templo (3: 1-10), proferindo nesta ocasião um importante discurso sob o pórtico de Salomão (3:11-22); é ainda ele que deve responder perante o Sinédrio (4: 8-12; 5:29-32).

A comunidade é composta de judeu-cristãos, isto é, de cristãos que permaneceram fiéis à Lei de Moisés e, pelo menos parcialmente, ao culto do Templo (2:46; 3:11; 5:20). Em curtos quadros (2:42-47; 4:32-37; 5:1-16), São Lucas descreve-nos a vida dos fiéis; sublinha a abundância dos Dons do espírito Santo conferidos aos fiéis, a perseverança destes últimos no ensinamento dos Apóstolos, as suas orações freqüentes, as suas refeições eucarísticas, a sua alegria e a sua simplicidade.

 

O Kerigma da Igreja Primitiva.

A série de discursos de São Pedro, que ocupam o lugar central no contexto dos cinco primeiros capítulos, constitui um preciosíssimo documento do Kerigma da Igreja primitiva. Os temas maiores são o testemunho da Paixão de cristo, da Sua Ressurreição e da Sua Exaltação em Glória; a efusão do Espírito Santo na Igreja e a chegada dos tempos messiânicos na expectativa da Gloriosa Vinda do Senhor. Estes temas, constituem o cerne primitivo da pregação apostólica, essencialmente baseada sobre a exegese do Antigo Testamento, exprimindo num estilo todo ele impregnado de aspectos aramaizantes. Assim, a menção do "Nome de Jesus" denota uma forma judaica de expressão. Respondendo diante do Sinédrio, após a cura do coxo no templo, São Pedro dirá: "Seja conhecido de vós todos, e de todo o povo de Israel, que em Nome de Jesus Cristo, o Nazareno, Aquele a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou dos mortos, e em nome desse é que este está são diante de vós... E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do Céu nenhum outro nome há, dado entre os homens pelo qual devamos ser salvos" (4:10-12). O Sinédrio interdita aos Apóstolos que O invoquem (4:17-18). Os fiéis podem perguntar-se qual é esse Nome; a conclusão do primeiro discurso permite-nos escutá-lo: "Que toda a casa de Israel o saiba pois com exatidão e certeza: Deus fê-lo Senhor e Cristo, a esse Jesus que vós crucificastes" (2:36). "Cristo," quer dizer o Messias prometido pelos profetas. O nome "Senhor" era o de Yhavé no Antigo Testamento (2:21). Doravante o Cristo morto, ressuscitado e exaltado foi feito Senhor. A condição para o acesso ao batismo é o arrependimento (o desejo de uma vida nova); este batismo opera-se pela invocação do Nome de Jesus Senhor (2:38). Mais tarde, São Paulo, alicerçado na mesma tradição, dirá de Cristo, num hino bem conhecido: "Pelo que também Deus O exaltou soberanamente e Lhe deu um Nome que sobre todo nome.

Para que ao Nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos Céus, e na terra, e debaixo da terra.

E que toda língua confesse que Jesus cristo, é o Senhor, para a Glória de Deus Pai" (Filip. 2:9-11).

 

Promessa do Espírito Santo.

Um dos temas maiores do Kerigma da Igreja primitiva é a promessa da efusão dos Dons do Espírito Santo. "De sorte que exaltado pela destra de deus, e tendo recebido do Pai a promessa do espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis." (At. 2:33). No fim do terceiro Evangelho, lemos já que Cristo, antes de subir aos Céus, promete enviar sobre os Seus discípulos "o que o Pai prometeu" (Luc. 24:49). No livro dos Atos dos Apóstolos, esta promessa é explicada a propósito da narração da Ascensão: "Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-Me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra" (At. 1:8). A descida do Espírito Santo no Pentecostes é a realização desta promessa (2:33) e todo o livro dos Atos dos Apóstolos é a ilustração do testemunho dos Apóstolos até aos confins da terra.

São João Crisóstomo dirá que o Evangelho contou o que Cristo disse e fez, ao passo que o livro dos Atos dos Apóstolos narra o que disse e fez o outro Consolador, ou seja o Espírito Santo. O livro dos Atos dos Apóstolos é com efeito a história da obra do Espírito Santo na Igreja em marcha para o Reino. Demonstrá-lo fora um dos desejos de São Lucas.

 

Pentecostes, O Dom Do Espírito Santo.

"E cumprindo-se o dia do pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar" (At. 2:1), assim começa a narração do Pentecostes. Alguns exegetas, e em particular Monsenhor Cassiano, traduzem: O dia de Pentecostes chegava ao seu fim. Se esta tradução é exata, a descida do Espírito Santo teve lugar ao anoitecer do dia de Pentecostes. Seria, então, somente na manhã seguinte, quando o acontecimento fora conhecido (At.2:6); (os termos "barulho" ou "som" em 2:2 e 2:6 não correspondem ao mesmo vocábulo grego), que uma grande multidão se juntara no Templo, altura em que São Pedro pronunciara o seu discurso inaugural.

As vezes surge a pergunta: Sobre quem, precisamente, desceu o Espírito Santo? Sobre Maria, Mãe de Deus, sobre os Doze Apóstolos somente (cujo número acabara de ser completado pela eleição de São Matias), sobre um círculo mais alargado, compreendendo os irmãos do Senhor, algumas mulheres, entre as quais estaria a Virgem Maria, mencionadas em 1:14, ou ainda sobre os cento e vinte discípulos reunidos para a eleição de São Matias (1:15)? A Tradição da Igreja diz-nos que o Espírito Santo desceu primeiramente sobre Maria Mãe de Deus, depois sobre os Apóstolos e segundo as palavras de São João Crisóstomo descera também sobre toda comunidade.

A descida do Espírito Santo foi acompanhada de manifestações sensíveis; "E de repente veio do Céu um som, como de um vento veemente impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados e foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles" (2:2-3). Esta descrição lembra a narração das Teofanias (manifestações de Deus) do Antigo Testamento: Olhei e eis que um vento tempestuoso vinha do Norte, e uma grande nuvem com um fogo a revolver-se; e um resplendor ao redor dela, e no meio uma coisa como de cor de âmbar, que saia dentre o fogo, isto lemos nós no princípio da visão do santo profeta Ezequiel (1:4). Quando da Teofania no monte Sinai: E aconteceu ao terceiro dia, ao amanhecer, que houve trovões e relâmpagos sobre o monte, e uma espessa nuvem, e um sonido de buzina mui forte, de maneira que estremeceu todo o povo que estava no arraia (Êx. 19:16).

Todavia a descrição de São Lucas é bem mais sóbria, assemelhando-se mais ao estilo dos Salmos: Virá o nosso Deus e não se calará: adiante d’ Ele um fogo irá consumindo, e haverá grande tormenta ao redor d’Ele, (Sal. 50:3). São Lucas tinha plena consciência de estar descrevendo uma Teofania.

"E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem" (2:4). Todos os que vinham à Jerusalém pasmavam-se e maravilhavam-se (2:7) ao ouvirem aquele "Galileus" falarem todas as línguas. São Lucas compraz-se em descrever a Teofania sublinhando o seu alcance universal. A mesma encontra-se na hinografia da Igreja Ortodoxa:

Outrora as línguas foram confundidas em sinal de punição pela presunção posta na construção de uma torre; agora as línguas encheram-se de Sabedoria, para a Glória do conhecimento divino.

Outrora Deus condenou os ímpios pelo seu pecado; agora, Cristo ilumina os pecadores através do Espírito Santo. Então, como punição, eles nunca mais se entenderam; agora a harmonia renova-se pela Salvação das nossas almas (Vésperas de Pentecostes).

A festa de Pentecostes era para os judeus o dia da renovação anual da Antiga Aliança. A descida do Espírito Santo neste mesmo dia é o sinal da chegada da Nova Aliança, selada pelo sangue de Cristo. Enquanto que a Antiga Aliança era unicamente reservada ao povo eleito, a Nova Aliança é destinada a todos.

 

A Teologia Do Espírito Santo.

Alguns críticos admiravam-se que São Lucas jamais tivesse citado as Epístolas Paulinas no livro dos Atos dos Apóstolos. Contudo nos é permitido supor que, vivendo em contato direto com São Paulo, São Lucas se tenha embebido da experiência mística e espiritual de seu mestre. Podemos apesar de tudo, constatar que nas obras de São Lucas a terminologia concernente ao Espírito Santo é mais precisa do que em São Paulo.

Ao longo das Epístolas Paulinas, encontramos com efeito o termo "espírito," freqüentemente empregado num sentido muito lato, em expressões como "espírito de serviço" (Rom. 8:15), "espírito de timidez" (2 Tim. 1:7); algumas vezes, é feita menção do "espírito do homem" (1 Cor. 2:11) ou do espírito duma comunidade. Outras vezes, a distinção entre o espírito humano e o Espírito Santo não é fácil; no capítulo 8 da epístola aos Romanos, por exemplo, o tradutor da "Sagrada Escritura de Jerusalém" teve o cuidado de usar uma letra maiúscula, quando se trata do Espírito Santo: "Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se é que o espírito de Deus habita em vós. Mas se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é d‘Ele" (Rom. 8:9). Outros tradutores não hesitam em por maiúsculas nos dois casos.

Não é menos verdade que São Paulo possuía uma real experiência da vida espiritual. Os dons concedidos aos fiéis, acerca dos quais ele enumera uma extensa lista, são para ele a manifestação do mesmo Espírito Santo (1 Cor. 12:4-11). Os batizados são chamados a uma vida nova em Cristo (Rom. 6:3), mas é pelo Espírito Santo, graças aos Seus Dons, que eles constituem o Corpo de Cristo" (1 Cor. 12:4-13). Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo (1 Cor. 12:3). "O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Rom. 8:16). Freqüentemente São Paulo refere-se ao Espírito Santo em fórmulas tributárias geologicamente riquíssimas; (2 Cor. 1:18-22), Deus consolida os fiéis em Cristo, e marca-os com um selo, metendo nos seus corações o sinal do Espírito Santo (cf. também Ef. 1:3-14). Na epístola aos Efésios, os fiéis tem acesso "ao Pai em um mesmo Espírito" (2:18; 3:16) para constituírem um só corpo (4:4) revestirem-se "do homem perfeito" (4:23-24) e serem selados pelo Espírito Santo "para o dia da Salvação" (4:30).

São Lucas, fala do Espírito Santo de uma forma muito mais sóbria, mais como historiador do que como profeta ou teólogo, como o faz São Paulo. São Lucas diz-nos que o Dom do Espírito Santo é conferido pela imposição das mãos dos Apóstolos a todos os batizados. É lá que está o selo do Espírito Santo do qual São Paulo fala enquanto teólogo. "E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão dos pecados; e recebereis o Dom do Espírito Santo" (2:38). Na Samaria (8) onde prega São Filipe, um dos Sete (diáconos), os Apóstolos, nas pessoas de São Pedro e de São João (o Teólogo), impõe as mãos aos batizados que recebem os Dons do Espírito Santo, como mais tarde o fará São Paulo em Éfeso (19:6).

Esta prática devia, nesta época, estar generalizada. Em alguns casos particulares, o Espírito Santo desce sobre os fiéis antes do batismo, como aconteceu com a casa do pagão Cornélio que São Pedro decide batizar (10:44-46). Estes dons são os mesmos que Maria Mãe de Deus e os Apóstolos, receberam no Pentecostes. Respondeu então São Pedro: "Pode alguém porventura recusar a água para que não sejam batizados estes, que também recebera como nós o Espírito Santo?" (10:47; 11:15; 15:8).

Os frutos destes Dons são descritos: os fiéis perseveraram na doutrina dos Apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações (2:42). O termo Espírito é associado por São Lucas aos termos fé, sabedoria e alegria (6:3.5.10; 11:24; 13:52). O Espírito Santo acompanha aqueles que pregam a palavra (4:8; 4:31; 6:10; 9:17-22). Mais nitidamente talvez do que qualquer dos escritos de São Paulo, o Espírito Santo é descrito como uma Pessoa agindo na Igreja. Quando São Pedro anuncia solenemente diante do Sinédrio que Cristo ressuscitou e subiu aos Céus, ele acrescenta: "Mais importa obedecer a Deus do que aos homens... E nós (os Apóstolos) somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo" (At. 5:29-32). O Espírito Santo conduz a Igreja; mentir ao interior da Igreja não é mentir diante dos homens, é mentir ao próprio Espírito Santo (At. 5:3-9). Estevão acusa o Sinédrio de se opor ao Espírito Santo (7:51).

"Estar cheio do Espírito Santo" (esta expressão encontra-se amiúde sob a pluma de São Lucas nos Atos: 2:4; 4:8.31; 6:3-5; 7:55; etc). não quer dizer simplesmente que se tenha recebido os Dons espirituais (línguas de fogo, sabedoria, fé), mas viver uma vida nova sob a conduta direta do Espírito Santo. O Espírito fala a São Filipe (8:29), ao profeta Ágabo (11:28), aos profetas e aos doutores de Antioquia (13:2). O Espírito Santo impede São Paulo e seus companheiros de se dirigirem à Ásia e a Bitínia, para os "obrigar" a passar à Europa (16:6-10; cf. 20:22-23; 21:4-11).

No momento em que é necessário tomar graves decisões, a Assembléia de Jerusalém exprime-se usando solenes palavras: "Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós" (15:28). A voz da Igreja é a voz do próprio Espírito Santo. Os Dons do Espírito Santo são dados aos Apóstolos no dia de Pentecostes são comunicados a todos. São Pedro atesta-o no seu primeiro discurso: "Porque a promessa (de receber o espírito Santo) vos diz respeito a vós, e a vossos filhos e a todos os que estão longe: a tantos quanto Deus nosso Senhor chamar" (2:39).

 

O Hino Da Igreja Ortodoxa Ao Espírito Santo.

"Nós festejamos o Pentecostes e a vinda do Espírito Santo; a realização da promessa e a realização da esperança. Que mistério! Quão grande e venerável! Por isso nós cantamos: Criador do Universo, Glória a Ti!

Após a Tua Ressurreição do túmulo, ó Cristo, e a Tua Ascensão aos Céus, Tu enviaste do alto a Tua Glória sobre as testemunhas da Tua Divindade, ó Cristo Compassivo! Tu renovaste em teus discípulos um espírito de retidão; por isso, tal uma harpa melodiosa, eles fizeram, ó Salvador, nos Seus discursos e pregações, eco às Tuas Palavras e à Tua Economia."

 

Expansão Da Boa-Nova No Mundo Pagão.

Companheiro do Apóstolo dos Gentios, São Lucas fora testemunha das numerosas dificuldades que São Paulo tivera de vencer face a inflexibilidade dos Judeus. Logo desde a sua primeira viagem, o Apóstolo não hesita em batizar os Gentios sem os obrigar a circuncisão, nem à submissão antecipada a Lei de Moisés. Por isso, de volta à Antioquia (14:26-28) ele é imediatamente posto de parte pelos judeu - cristãos, vindo de Jerusalém (15:1-2). A discussão tem lugar aquando da reunião de uma Assembléia em Jerusalém (15). Durante a sua Segunda viagem, os judeus não cessam a sua perseguição, em Tessalônica (17:5), em Beréia (17:13), em Corinto (18:6). Urdiram ainda complôs durante a sua terceira viagem (20:3-19). Quando São Paulo regressa pela última vez à Jerusalém, um certo profeta Ágabo anuncia que os judeus o prenderão e o entregarão aos pagãos (21:11). Em Jerusalém São Tiago previne São Paulo em relação aos judeus: "E já acerca de ti foram informados de que ensinas todos os judeus que estão entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo que não devem circuncidar seus filhos, nem andar segundo o costume da Lei" (21:21). Vieram judeus, com efeito, da província da Ásia de onde São Paulo havia pregado e suscitaram que prendessem o Apóstolo. As sua s acusações abateram-se sobre São Paulo (22:30; 23:2; 24:5-9; 25:15). Nesse tempo, na maioria das cidades onde São Paulo pregara, existiam importantes colônias de judeus. Muitíssimo fiéis à Lei de Moisés, `a sua religião, os seus costumes, usufruindo além do mais de alguns privilégios concedidos pelos imperadores romanos, os judeus formavam agrupamentos nitidamente à parte no seio do mundo helenizado.

Alguns historiadores da época tratam os judeus com desprezo, como formando uma seita contrária à natureza. As leis judaicas eram bastante estritas em relação ao contato com os pagãos: estava por exemplo, vedado ao judeu tomar qualquer refeição com os não circuncidados.

Os rabinos entregavam-se, contudo, a um proselitismo muito ativo e tinham grande sucesso. Em torno da sinagogas, reuniam-se não só os circuncisos, mas um enorme número de "tementes à Deus" (10:2; 13:16), que recebiam um ensinamento freqüentemente assaz longo, preparando-os para a circuncisão.

Jerusalém e a Judéia sofriam desde a dois séculos uma fortíssima pressão por parte dos monarcas helenizados circundantes, dos seus reis, como Heródes: os aristocratas, as famílias do sumo-sacerdotes e os Saduceus aceitaram a helenização. Pelo contrário os homens piedosos, os fariseus, os Essênios e em geral o povo humilde dos campos e da própria cidade de Jerusalém opuseram-se a esta helenização por devoção, por respeito pelas antigas tradições e por fidelidade para com a Lei de Moisés.

O Templo, centro de peregrinação de toda diáspora judaica, torna-se o bastião da resistência à helenização. Quando Pilatos, segundo nos narra o historiador Flavius Josefus, quis introduzir em Jerusalém os estandartes com a efígie do imperador, uma multidão de judeus dirigiu-se à Cesaréia, suplicando a Pilatos, durante vários dias, que tal não permitisse, preferindo a morte, a desonrar a sua santa cidade.

Quando Calígula ordena que se coloque a sua estátua no Templo, os protestos tornam-se tão violentos que os membros do governo encarregados da execução da ordem imperial decidem não dar provimento ao desejo do Imperador, arriscando as suas próprias vidas.

A primeira comunidade cristã de Jerusalém, composta por judeus que se tornaram cristãos, permanecia fiel à Lei de Moisés e ao culto do templo. Os judeu-cristãos reclamavam que todos os pagãos fossem circuncidados antes do batismo. Compreende-se bem as violentas reações que suscitaram as missões de São Paulo. Um dos objetivos do Livro dos Atos dos Apóstolos é o de mostrar como é que o Evangelho se propagou progressivamente a partir da primeira comunidade judeu-cristã de Jerusalém até Roma, capital do mundo pagão.

Nos capítulos 6-12: São Lucas escolhe descrever os fatos pelo preparam a passagem do Evangelho pelo mundo pagão. Um novo grupo aparece em Jerusalém, distinto dos Hebreus, os helenizados (6:1), entre os quais sete são eleitos para ajudar os Doze (6:5); Santo Estevão, um dos Sete, pretende que "Deus não habita no que é feito pela mão dos homens" (7:48), isto é, exclusivamente no Templo de Jerusalém; morre martirizado (7:54-60); outros são dispersados e vão "até a Fenícia, Chipre e Antioquia." Todavia, eles não anunciaram "a palavra a ninguém, que não fosse judeu" (11:19). Exceção feita em Antioquia donde, mais tarde, partirá São Paulo, onde eles "pregaram o Evangelho aos pagãos" (11:20).

Entretanto, São Lucas conta detalhadamente alguns acontecimentos que ele seleciona como sendo particularmente significativos: a boa-nova é anunciada em Samaria, cuja religião era considerada como herética pelos judeus (8:5-25). Um eunuco etíope, provavelmente prosélito, é batizado por São Pedro (8:26-40). O mesmo Apóstolo batiza, após uma revelação especial de Cristo, o primeiro pagão (10:1-48). Enfim, São Paulo converte-se ao cristianismo (9:1-30) e vai finalmente para Antioquia (11:19-30).

O capítulo 12 é marcado pelo martírio de São Tiago filho de Zebedeu, a prisão de São Pedro e a sua partida para Jerusalém. São Tiago, irmão do Senhor, fica à cabeça da comunidade de Jerusalém. A partir deste momento, o livro dos Atos dos Apóstolos é consagrado à atividade de São Paulo entre os pagãos.

Nas cidades as quais se dirige, São Paulo fala primeiramente aos judeus, que o rejeitam e em seguida aos pagãos, que acolhem a sua palavra com mais entusiasmo. O livro termina com uma palavra amarga relativamente aos judeus (At. 28:23-28).

São Lucas quis ilustrar, e fê-lo com grande perícia, a continuidade do Espírito Santo que, conduzindo a Igreja, levou São Paulo, depois de São Pedro, a pregar o Evangelho em todo o mundo pagão.

 

 

Introdução Às Epístolas de São Paulo.

O Apóstolo São Paulo é, de todos os Apóstolos do N. T., aquele que melhor se conhece, seja através das suas Epístolas, seja através do livro dos Atos dos Apóstolos; duas fontes independentes que se confirmam e se completam, apesar de existirem algumas divergências de detalhes. Sincronismos com os acontecimentos conhecidos da História, sobretudo o pro consulado de Galião em Corinto (At. 18:12), e a substituição de Félix por Festus (At. 24:27 a 25:1) permitem, além do mais, fixar certas datas e assim estabelecer uma cronologia relativamente precisa da vida do Santo Apóstolo.

Nascendo em Tarso de Cilícia (At. 9:11; 21:39; 22:3) por volta do ano 10º da nossa era, oriundo de uma família judaica da tribo de Benjamim (Rom. 11:1; Filip. 3:5) era ao mesmo tempo, um cidadão romano (At. 16:37s; 22:25-28; 23:27). Ele recebera desde a sua juventude em Jerusalém, uma profunda educação religiosa, ministrada por Gamaliel, segundo as doutrinas farisaicas (At. 22:3; 26:4s; Gál. 1:14; Filip. 3:5). Inicialmente perseguidor feroz da jovem Igreja Cristã (At. 22:4s; 26:9-12; Gál. 1:13; Filip. 3:6), fora bruscamente transformado, no caminho de Damasco, pela aparição de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo (após a Sua Ressurreição) que lhe revelara a sua missão especial de Apóstolo dos Gentios (At. 9:3-19; Gál. 1:12-15s; Ef. 3:2s). A partir desse momento, por volta do ano 36: São Paulo dedicara toda a sua vida exclusivamente ao serviço de Cristo, (Filip. 3:12). Depois de Ter estado algum tempo na Arábia e ter regressado a Damasco (Gál. 1:17) onde prega (At. 9:20), sobe a Jerusalém por volta do ano 39 (Gál.1:18); (At. 9:26-29) retirando-se depois para a Síria – Cilícia (Gal. 1:21; At. 9:30), donde é levado por São Barnabé para Antioquia, com o qual ele ensina (At. 11: 25s; cf. 9:27). Uma primeira missão Apostólica, entre os anos 45 e 49: permite-lhe anunciar o Evangelho em Chipre, Panfília, Pisídia e Licaónia (At. 13-14); é então que, segundo São Lucas, o Apóstolo dos Gentios começa a usar o seu nome grego Paulo preterindo o seu nome judaico de Saulo (At. 13:9).

Catorze anos após a sua conversão (Gál. 2:1 e 49) sobe a Jerusalém para participar do Concílio Apostólico, o qual decide, mercê da sua influência, que a Lei judaica não obriga os cristãos convertidos do paganismo (At. 15; Gál. 2:3-6); a sua missão de Apóstolo dos Gentios é oficialmente reconhecida (Gál. 2:7-9) e ele parte para novas viagens apostólicas. A segunda (At. 15:36 a 18:22) e a terceira (At. 18:23 a 21:17) missões ocupam respectivamente os anos de 50 a 52 e de 55 a 58. No ano de 58 é preso em Jerusalém (At. 21:27 a 23:22) e encarcerado em Cesaréia da Palestina até o ano de 60 (At. 23:23 a 26:32). Quando chega o Outono do ano 60 o Procurador Festus envia-o para Roma sob escolta (At. 27:1 a 28:16) onde São Paulo permanecerá dois anos (At. 28:30) de 61 a 63. Tudo indica que, logo que o seu processo ficou concluído e ele foi libertado, se dirigiu às Espanhas, segundo seu desejo (Rom. 15:24-28).

As posições tomadas pela Igreja Católica Romana sobre a vida do Santo Apóstolo, a sua personalidade e os seus escritos, são na sua grande maioria adotadas pelos exegetas ortodoxos. Aquelas que Monsenhor Cassiano, Bispo ortodoxo e eminente exegeta, perfila e que aqui apresentamos coadunam-se com as da Igreja acima referenciada, distinguindo - se somente em dois pontos:

 

 

Agruparemos então as Epístolas Paulinas da seguinte maneira:

Primeiras Epístolas: 1 e 2 aos Tessalonicenses, durante a segunda viagem missionária de São Paulo;

Grandes Epístolas: Gálatas, Romanos, 1 e 2 Coríntios, durante a terceira viagem missionária;

Epístolas do Cativeiro: Filipenses, Efésios, Colocenses e a Filemon, durante os dois nos de cativeiro da primeira vez em que fora preso em Roma;

Epístolas Pastorais: 1 a Timóteo e a Tito escritas após a libertação de São Paulo e a 2 a Timóteo escrita durante a sua Segunda estada na prisão em Roma, que culminou no martírio do Santo Apóstolo por volta do ano de 64

À parte temos: A Epístola aos Hebreus escrita nos anos 60.

 

O Ensinamento de São Paulo Sobre a Igreja Através da Etapas da Sua Vida.

O ensinamento neotestamentário sobre a Igreja desenvolveu-se muito particularmente nas Epístolas Paulinas. É verdade que durante as diferentes épocas da vida do Santo Apóstolo dos Gentios, este ensinamento tomou aspectos diversos. É contudo necessário observar que São Paulo viveu ao longo de todas as etapas de sua existência, na mesma realidade eclesial, mas "a sua teologia desenvolveu-se de acordo com uma linha contínua," sob o impulso do Espírito Santo.

 

A Igreja Nas Epístolas aos Tessalonicenses e as Quatro Grandes Epístolas (1 E 2 Cor., Gál., Rom):

Nestas Epístolas, o termo grego eclesia designa freqüentemente uma comunidade local (1 Tes. 1:1; 2 Tes. 1:1; 1 Cor. 1:1). A aplicação amiúde do termo no plural (1 tes. 2:14; 1 Cor. 7:17; 11:16; 14:33; 2 Cor. 11:28) indica que o número destas comunidades aumentava. Algumas vezes, num sentido mais restrito, é traduzido por "assembléia" (1 Cor. 14:4.5.12); uma assembléia reunida em vista a uma refeição eucarística (1 Cor. 11:17-34) ou marcada por uma manifestação dos dons diversos do Espírito Santo (1 Cor. 12:14).

Na primeira Epístola aos Coríntios, os capítulos 11 e 12 formam um todo, ao qual se poderiam juntar os capítulos 13 e 14. São Paulo dá ai primeiramente conselhos práticos sobre o comportamento dos homens e das mulheres nas assembléias religiosas (1 Cor. 11:1-16), especialmente sobre a maneira de se celebrar a Refeição Eucarística (11:17-34), o que o leva a falar na diversidade dos ministérios na Igreja considerados como carismas do Espírito Santo. São Paulo enumera estes Dons: o Dom da Palavra, da , das Curas Milagrosas, dos Milagres, da Profecia, do Discernimento dos Espíritos, enfim, o Dom das Línguas (12:4-11).

Todos estes Dons são a manifestação do Espírito Santo; São Paulo sublinha-o por diversas vezes (12:4.8-9); eles são conferidos a cada um em vista a um bem comum (12-7), a fim de que, num mesmo Espírito, todos os membros, tendo obrigações mútuas, possam formar um só corpo, que é o Corpo de Cristo (12: 14-27). Sem se poder falar ainda duma Hierarquia constituída, segundo as formas que mais tarde serão confirmadas, podemos, todavia, constatar a existência de uma certa hierarquia de Carismas já estabelecida nessa época: "Primeiramente Apóstolos, em segundo lugar os Profetas, em terceiro os Doutores" (12:28).

A Epístola aos Romanos resume a mesma doutrina num contexto diferente. São Paulo exorta os seus fiéis a oferecerem os seus corpos "como um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus," o que será da sua parte "um culto espiritual" (Rom. 12-1), ele acrescenta:..". porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros tem a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros um dos outros" (Rom. 12:4-5). A mesma doutrina está subjacente numa passagem conhecida da Epístola aos Gálatas (3:25-29).

No conjunto das epístolas escritas por São Paulo durante as suas três viagens missionárias, a doutrina concernente à Igreja é simples. A Igreja é uma comunidade local, um organismo carismático e eucarístico, um lugar de efusões múltiplas do Espírito Santo, um corpo compreendendo, abrangendo, os membros de origem judaica e pagã, um corpo que é o Corpo de Cristo.

 

 

Diversas "Imagens" da Igreja no Novo Testamento.

Antes de abordarmos a teologia eclesial, muito mais aprofundada, das Epístolas do Cativeiro, é necessário passar em revista algumas imagens utilizadas no Novo Testamento para designar a Igreja, imagens que na sua maioria, se encontram nas Epístolas aos Efésios e aos Colossenses. Elas são freqüentemente atribuídas ao Antigo Testamento, outras vezes são confirmadas pela tradição sinóptica.

A Igreja é primeiramente designada como povo de Deus. São João o Precursor serve-se desta imagem quando declara:..". Que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão" (Mat. 3:9). Os primeiros cristãos estavam perfeitamente conscientes de regressar o novo "Israel de Deus." E se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa" (Gál. 3:29).

Para designar o Povo de Deus, os antigos profetas de Israel, Oséias, Jeremias e Ezequiel, utilizaram a imagem da esposa, do esposo que era Yhavé; talvez pretendessem demonstrar através destas imagens que os laços que uniam os filhos de Israel à Deus não eram somente laços de obediência, numa estrita observância da Lei, mas também laços de amor. A mesma imagem é retomada no Novo Testamento, mas aí o esposo é Cristo, tendo o próprio Filho de Deus atribuído a si mesmo esta apelação (Mat. 9:15; Mc. 2:19-20; Luc. 5:34-35; Jo. 3:29). São Paulo na sua Segunda Epístola aos Coríntios faz uma curta alusão: "Porque vos tenho preparado para vos apresentar como uma virgem pura a um marido, a saber, Cristo" (2 Cor. 11:2) e desenvolve o tema na Epístola aos Efésios (5:21-23). A passagem apresenta-se como uma exortação as famílias humanas, mas na realidade estabelece-se desde os primeiros versículos, "entre o casamento humano e a união de Cristo à Sua Igreja num paralelo cujos dois termos comparados se clarificam mutuamente" (cf. Ef. 5:23). Cristo entregou-se pela Igreja,..". Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra" (Ef. 5:25-26). No Oriente como é referido (em Ef. 5:27) a noiva é banhada e preparada para o casamento: aqui é o próprio Cristo, Filho de Deus, que a purifica. Há também neste texto uma alusão, segundo pensam alguns exegetas, ao Batismo.

Duas outras alusões são utilizadas no Novo Testamento, a da Igreja como o edifício ou a construção, e a da Igreja como o templo de Deus. Estas duas imagens, muito próximas, substituem-se amiúde uma a outra. O antigo Templo de Jerusalém estava construído sobre um rochedo que se torna um símbolo: "Eis que assentei em Sião uma pedra, uma pedra já provada, pedra preciosa de esquina, que está bem firme e fundada: aquele que crer não se apresse" (Is. 28:16). E também..". Uma pedra de tropeço, e rocha de escândalo.." (Is. 8:14).

Depois do exílio, a pedra que os construtores haviam rejeitado tornou-se "cabeça da esquina" (Sal. 118:22). Cristo, num discurso solene pronunciado no templo na véspera da Sua Paixão, identifica-se a Si mesmo com esta pedra (Mt. 21:42; Mc. 12:10; Lc.20:17). Antes, tinha comparado aquele que escuta as Suas Palavras a um "homem sábio que tinha construído a sua casa sobre o rochedo" (Mat.7:24; Luc. 6:47-48). Por sua vez, Simão recebeu de Cristo o nome de Pedra, tradução do aramaico Cefaz que significa expressamente o rochedo. Este nome era simbólico: "Sobre este rochedo, construirei a minha Igreja" (Mat. 16:18).

A imagem reaparece em 1 Cor. 3:10-12: onde São Paulo se diz: "o bom arquiteto" que pôs o fundamento, ao passo que outros construíram em cima dele. Todavia, ele lembra que "ninguém pode pôr outro fundamento além d ‘Aquele que aí se encontra, a saber, Jesus Cristo" (1 Cor. 3:11). Outras imagens estão associadas à da construção: a da planta que São Paulo pôs na terra e que Apolos regou (1 Cor. 3:5s), bem como aquela do templo em que habita o Espírito de Deus (1 Cor. 3:16).

A imagem do Templo está ligada, nas palavras do próprio Verbo Encarnado, ao Seu próprio Corpo: quando Ele expulsou os vendedores do Templo, Ele declarou: "Destruí este Templo..." Os judeus não compreenderam, acrescenta o evangelista, que Ele falava do Templo do Seu Corpo (Jo. 2:13-22).

É talvez significativo que a primeira menção da Igreja como Corpo de Cristo no Novo Testamento siga de perto a referência ao Corpo e ao Sangue Eucarísticos, como para sublinhar a natureza eucarística da própria Igreja.

Um certo número de outras imagens evocadas no Evangelho poderiam ainda ser citadas, como a imagem do campo (Mat.13:1-23), da figueira (Luc. 13:6), da vinha (Jo. 15:1-8), do rebanho (Luc. 12:32), da rede (Mat. 13:47-50). Mas estas imagens são pouco utilizadas nas Epístolas de São Paulo.

 

A Igreja Nas Epístolas do Cativeiro.

As Epístolas do Cativeiro, isto é, aquelas que são dirigidas aos Efésios, aos Colossenses e ao Filemon, as quais juntamos a Epístola aos Filipenses, contêm um ensinamento muito mais rico sobre a Igreja.

As imagens principais acerca das quais falamos, encontram-se num texto, que é central da Epístola dos Efésios: "Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra de esquina; na qual todo edifício bem ajustado, cresce para templo santo do Senhor. No qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito" (Ef.2:19-22). Encontramos aqui a imagem de uma construção bem ordenada, de uma morada ou templo de Deus. A estas duas imagens, que são comuns a todo o Novo Testamento junta-se na Epístola aos Efésios uma terceira, a do Corpo que recebe uma significação muito mais rica do que em 1 Cor. E Rom., onde São Paulo sublinhou principalmente a unidade dos batizados em Cristo. A primeira referência à Igreja como Corpo de Cristo figura aí na conclusão do primeiro capítulo: "E sujeitou todas as coisas a Seus pés, e sobre todas as coisas O constituiu como cabeça da Igreja, que é o Seu Corpo, a plenitude d ‘Aquele que cumpre tudo em todos" (Ef. 1:22-23). Este texto está a seguir à oração do princípio da Epístola (Ef. 1:3-14), que é um dos mais belos, mas simultaneamente um dos mais difíceis de todo o Novo Testamento. A salvação é compreendida numa perspectiva trinitária, nitidamente teocêntrica. "Bendito Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, O qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo. Como também nos elegeu n ‘Ele antes da fundação do mundo, para que fossemos santos e irrepreensíveis diante d ‘Ele em caridade; e nos predestinou para filhos de adoção em Jesus Cristo, para Si mesmo, segundo o beneplácito da Sua vontade, para louvor e glória da Sua graça, pela qual nos fez agradáveis a Si no Amado" (Ef. 1:3-6). A obra do Pai é realizada pelo Filho, em que temos o perdão dos pecados a revelação da vontade do Pai em nos reunir sob um só chefe, Cristo (Ef. 1:7-10), primeiramente os judeus (Ef. 1:11-12), e em segundo os pagãos (Ef. 1:13), para serem marcados com o Selo do Espírito Santo, em vista a uma salvação do povo..". o qual é o penhor da nossa herança, para salvação da possessão de Deus, para louvor da Sua Glória" (Ef. 1:13-14).

Continuando a oração, São Paulo pede para nós, um espírito de sabedoria e de conhecimento (de revelação) (Ef. 1:17), para que possamos ver com os olhos iluminados, cheios de esperança, os tesouros de glória que são a nossa herança no Céu (Ef.1:18). Ora Deus, continua São Paulo, já ressuscitou Cristo e O fez sentar-se à Sua direita nos Céus, acima dos Anjos e, tendo tudo posto sob Seus pés,..". Constitui-O como cabeça da Igreja, que é o Seu Corpo, a plenitude d ‘Aquele que cumpre tudo em todos" (Ef. 1:20-23).

Assim a Igreja, Corpo de Cristo, não é unicamente uma união de em Cristo, como nas grandes Epístolas: Ela é uma realidade divina, preestabelecida na presciência do Pai, realizada pela obra salvadora do Filho, marcada com o Selo do Espírito Santo, a todos albergando no seu círculo; os homens e os poderes celestes, plenitude de todos e de tudo, para Glória de Deus Pai. Na mesma perspectiva teológica um outro texto belíssimo da Epístola aos Efésios (4:1-13), fala da Unidade da Igreja, concebida a imagem da unidade das Pessoas da Santíssima Trindade: "Há um só Corpo e um só Espírito... um só Senhor... um só Deus e Pai de todos O qual é sobre todos e por todos e em tudo" (Ef. 4:6), unidade concebida como uma Graça Divina de Cristo que desceu até o reino da morte, para ressurgir "acima de todos os Céus" (Ef. 4:10), que distribuiu os carismas, organizando os santos para a obra do ministério, em vista à construção do Corpo de Cristo, onde devemos "chegar à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, atingir o varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo (Ef. 4:13).

Na Epístola aos Colossenses, que apresenta com a Epístola aos Efésios afinidades evidentes, reencontramos a imagem da Igreja Corpo, cuja cabeça é Cristo (Col. 115-20), Cristo é, inicialmente, chamado nesta passagem "Imagem do Deus Invisível "e, em seguida, por duas vezes, "é o Princípio e o Primogênito" (Prototocos). A expressão "Imagem do Deus Invisível " é uma das que melhores argumentos forneceram aos Padres da Igreja do século IV, para defenderem contra os arianos a Divindade do Filho. Para Santo Atanásio, por exemplo, ela significava acima de tudo a identidade de natureza do Filho com "Aquele de quem Ele é Ícone." Para os Arianos, a apelação "Primogênito de toda criatura" significava que Cristo não era senão uma criatura, a primeira de todas,. Santo Atanásio respondia-lhes que Cristo (segundo São João 1:14-18s) era também "Filho único" (Monogeno) e não podia em conseqüência disso ser chamado de "Primogênito" senão por condescendência divina para com o mundo que Ele havia criado.

Todavia, segundo o contexto (Col.1:15-17) destes versículos, parece que São Paulo quis exprimir sobretudo que Cristo manifesta Deus no Cosmos. Lemos com efeito no versículo 16 que todas as coisas foram criadas em Cristo, por Cristo e para Cristo. É neste sentido que Ele é o "Primogênito de toda a Criatura" (Col. 1:15) enquanto Criador e ao mesmo tempo fim de toda a Criação. O versículo 17 mostra que Cristo preexiste a todas as coisas e que todas as coisas existem por Ele.

Entre os Padres da Igreja, São Máximo, o Confessor, foi particularmente sensível à dimensão cósmica do mistério da Encarnação ao mesmo tempo que a idéia da Transcendência divina: "É o mistério, diz São Máximo, o Confessor, que circunscreve os éons (o termo grego éon podia ser traduzido por "século," contudo o tradutor de São Máximo, o Confessor, preferiu conservar o vocábulo grego "éon," devido ao alcance cósmico deste termo), manifestando a imensa vontade de Deus, inconcebível e infinitamente preexistente a todos os éons... Porque para Cristo, para o mistério de Cristo, todos os éons existem bem como tudo aquilo que eles contêm; em Cristo, eles receberam o seu princípio e o seu fim, esta síntese do limitado com o infinito, do mensurável com o incomensurável, do Criador com a criatura, do repouso com o movimento. Na plenitude dos tempos esta síntese foi visível em Cristo, trazendo a realização dos projetos de Deus" (Questiones ad thalassium 60; citado por Hans Urs von Balthasar, Liturgia Cósmica, São Máximo, o Confessor).

Na Segunda parte do hino cristológico (Col. 1:18-20), Cristo, Primogênito dentre os mortos "possui a primazia, na Ordem da Salvação, da Salvação de todos é nesta qualidade que Ele é também Cabeça do Corpo, ou seja, Cabeça da Igreja," uma vez que, "era preciso que Ele obtivesse a primazia em tudo" tanto na ordem da Criação como na ordem da Salvação, porque a Deus "aprouve fazer habitar n ‘Ele toda a plenitude." Na perspectiva da primeira parte do livro, a Igreja assim apresentada adquire, tal como na Epístola aos Efésios, uma dimensão cósmica; isto é confirmado em Col. 1:20 sendo a Salvação compreendida como uma reconciliação de "todos os seres por meio d ‘Ele (Cristo), tanto sobre a Terra como nos Céus," pelo Sangue da Cruz,. "Cristo, afirma São Máximo, o Confessor, tendo acabado para nós a Sua ação salvadora..., opera n ‘Ele a união do Céu e da Terra, dos seres sensíveis e dos seres espirituais, demonstrando desta forma a unidade da Criação na pluralidade das suas partes" (In Orationem Dominican Previs Expositio, segundo Hans Urs von Balthasar).

Tal como São Paulo, São Máximo, o Confessor, viu na Encarnação o sentido, a justificação e o fim de todas as coisas: "O mistério da Encarnação do Verbo contêm em si todo sentido dos enigmas e dos símbolos da Sagrada Escritura, toda significação das criaturas visíveis e inteligíveis. Aquele que conhece o mistério da cruz e do túmulo, conhece a razão (Logos) das coisas; aquele que é iniciado no conhecimento e significado escondidos da ressurreição, conhece o fim para o qual Deus, desde o princípio, tudo criara" (São Máximo o Confessor, citado por Hans Urs von Balthasar).

A Kenose (Filipenses 2:6-11).

A doutrina cristológica da Epístolas aos Efésios e aos Colossenses é completada no hino contido em (Filip.2:6-11). Tal como o princípio do hino que encontramos em (Col. 1:15-20), também aquele que descobrimos em (Filipenses 2:6-11) é um texto clássico do qual se serviram os Padres da Igreja do século IV para afirmar a Natureza Divina do Filho "Monogeno." "Ele, Cristo, de condição divina, não teve por usurpação ser igual a Deus (Filip. 2:6).

O texto grego é difícil de se traduzir para as nossas línguas modernas. Ele contém, provavelmente, uma alusão a tentação do primeiro Adão no paraíso: "Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal" (Gên. 3:5). Para Cristo, de condição "divina," ser igual a Deus não era uma presa a arrebatar, como para Adão. "Mas Ele aniquilou- Se a Si mesmo, tomando a forma de Servo, fazendo-se semelhante aos homens" (Filip. 2:7).

Os Padres da Igreja, ao mesmo tempo que afirmavam que Cristo possuía a natureza divina, afirmavam igualmente e com a mesma força, que Ele possuía a natureza humana (Concílio de Caledônia 451). As duas naturezas, mediante a confissão do Concílio, sem estarem confundidas, estavam reunidas, na mesma Pessoa (Ripostasse) do Filho, de uma forma inseparável. Aprofundando este mistério da união das naturezas em Cristo, a Teologia oriental falou também da "Kenose" da natureza divina unida à natureza humana.

O termo "Kenose "é atribuído ao hino (Filip. 2:7). Na tradução Portuguesa, lemos, "aniquilou - Se a Si mesmo" (S.E. traduzida por João Ferreira de Almeida): poder-se-ia traduzir "despojou- Se de Si mesmo." A expressão grega correspondente "eauton" e "Kenosen," da qual deriva o termo "Kenose" significa literalmente, "esvaziou - Se." Mas os Padres da Igreja não compreenderam este vocábulo, de tradução difícil, no sentido de uma negação da natureza divina, mas sim no sentido de um despojamento voluntário da natureza divina unida à natureza humana.

No hino (Filip. 2:6-11) Cristo de condição divina, sem cessar de ser igual a Deus, toma a condição de escravo, tornando-se semelhante aos homens, humilha-se; Ele é obediente "até a morte e morte de cruz" (Filip. 2:7-8).

Um teólogo ortodoxo moderno, o Padre Sérgio Bulgakov,(+ 1943); achou por bem salientar, ao estudar os textos do Evangelho, que a natureza divina de Cristo se manifestava cada vez menos à medida que se aproximava o termo da Paixão, e ele viu o último momento desta "Kenose" no grito de cristo crucificado: "Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? (Mc. 15:34).

A Adoção; Igreja Como a Família de Deus.

O tema da adoção é fundamental para toda a Teologia pauliniana. Na perspectiva da teologia Trinitária, esboçada na oração liminar (Ef. 1:3-14), é expressamente dito que Deus Pai determinou antecipadamente que seremos "para Si mesmos, filhos de adoção por Jesus Cristo" (Ef. 1:5). Este tema não é novo em São Paulo, ele já se encontra desenvolvido nas Grandes Epístolas; os batizados justificados por Cristo, libertados da escravidão do pecado, não receberam "um espírito de servidão," para permanecerem ainda no temor, mas receberam um "espírito de adoção" (Rom.8:15). Esta adoção por Deus, esta filiação, realiza-se na unidade com o Filho: "O mesmo espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com Ele padecemos, também com Ele seremos glorificados (Rom. 8:16-17).

É a vontade de Deus que "colabora em tudo para o bem daqueles que O amam" (Rom. 8:28), o que significa que aqueles que Deus, antes os conheceu e também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho; a fim de que Ele seja o Primogênito entre muitos irmãos (Rom. 8:29), em vista à Sua glorificação final (Rom. 8:30). "Porque todos os que são guiados pelo espírito de Deus esses são filhos de Deus" (Rom.8:14). O mesmo assunto é desenvolvido na Epístola aos Gálatas (3:1 a 4:12: principalmente 4:1-7).

Segundo os Padres da Igreja (Santo Irineu, Santo Atanásio, e outros.), Cristo, Imagem do Pai, é Filho pela Sua natureza divina e pela Sua filiação, ao passo que os homens são filhos de Deus, à imagem de Cristo, por adoção.

Na oração inicial da Epístola aos Efésios, São Paulo aflorou o tema retomando-o mais longe num contexto eclesiológico (Ef.2:19-22). É enquanto membros da Igreja e filhos adotivos de Deus que os fiéis não são mais "estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da família de Deus" (Ef.2:19).

Na oração que encerra a parte doutrinal da mesma Epístola, São Paulo flecte os joelhos em presença "do Pai... do qual toda família nos Céus e na Terra toma o Seu nome" (Ef. 3:14-15). A palavra grega Pátria, traduzida por "paternidade" sugere a idéia de família.

A mesma idéia encontra-se no âmbito do ensinamento de São Paulo sobre a oração:..". Mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Abba, Pai (Rom.8:15; Gál. 4:6). Monsenhor Cassiano fez notar que Cristo provavelmente pronunciou Ele próprio, em companhia de Seus discípulos, a Oração dominical começando pelas palavras "Pai Nosso." O adjetivo "Nosso " mostra que Deus é o Pai de Cristo e ao mesmo tempo dos Seus discípulos. A imagem Pauliniana da Igreja, Família de Deus adquire então todo o Seu sentido.

Mais tarde, a teologia Joanina, retomará e ampliará o tema da filiação; na última oração de Cristo antes da Sua Paixão, a oração que São João, o Teólogo, nos dá a conhecer, lemos:..". Como Tu ó Pai, estas em Mim e Eu em Ti; que também eles sejam um em Nós.." (Jo.17:21; cf. 17:11).

A Igreja nas Epístolas Pastorais.

Após a sua primeira prisão em Roma, São Paulo fora provavelmente libertado, efetuando ainda um périplo. As duas primeiras Epístolas Pastorais, a primeira a Timóteo e a Epístola a Tito, parecem ter sido escritas em liberdade. A Segunda a Timóteo é novamente escrita no cárcere em Roma (2 Tim. 1:17), quando São Paulo presente que a sua partida para os Céus se avizinha (2 Tim. 4:5-8).

Os grandes temas da Teologia Pauliniana, a saber, a justificação pela fé em Cristo, a cristologia, a eclesiologia, o tema da Parusia... reencontram-se nestas Epístolas, no entanto São Paulo tem outras preocupações: a da sucessão do seu ministério, que ele confia a Timóteo e a Tito, e a da organização das igrejas que ele evangelizara.

Nas Epístolas Pastorais, percebemos que as comunidades primitivas tinham recebido um princípio de organização hierárquica. Veremos em seguida que a estrutura "definitiva" das Igrejas, com um bispo "monárquico" à cabeça de cada uma delas rodeado de presbíteros (anciãos) e ajudado por diáconos, não será atestada senão no início do século II (Epístolas de Santo Inácio de Antioquia, por exemplo, por volta do ano 115).

No Novo Testamento, os termos bispo, presbíteros e diáconos existem; mas observamos ao lermos 1 Tim. 1:5-9: que o termo grego "episcopos" traduzido em português por bispo, ou algumas vezes por "episcopo," é aí empregado como um qualificativo de "presbítero " e não como a designação de um ministério particular. Pode significar "vigilante" ou "intendente, administrador." Em 1 Tim. 3:1-7: o termo "episcopos" deve pois, provavelmente, ser entendido no sentido de presbítero, ainda que num outro contexto (1 Tim. 5:17) este vocábulo também se encontre empregado. Além do mais, sabemos que a instituição dos presbíteros remonta à primeira comunidade de Jerusalém (At. 11:30; 15:2.4.6.22.23; 16:4; 21:18). O livro dos Atos dos Apóstolos diz-nos que São Paulo já tinha instituído presbíteros, aquando da sua primeira viagem missionária (14:23). Todavia, sob a própria pluma de São Paulo, os presbíteros só aparecem pela primeira vez nas Epístolas Pastorais.

O termo "diácono" é freqüentemente usado no N. T. num sentido lato de servidor, mas nas Epístolas Pastorais ele designa nitidamente um ministério subordinado ao "presbiterado" (1 Tim. 3:8-13). A referência aos diáconos ao lado dos "epíscopos" na Epístola aos Filipenses deve ser entendida no mesmo sentido.

Para Tito e Timóteo coloca-se uma outra questão. Que papel, nas suas Igrejas, deveriam eles desempenhar depois da partida para os Céus de São Paulo? O de bispos, ou de apóstolos continuadores da obra do Apóstolo Paulo? A última hipótese parece ser atualmente aquela que granjeia maior número de defensores. Pretendem ver-se nos "anjos das Igrejas" do Apocalipse, os bispos monárquicos. Esta hipótese não é, contudo, demonstrável.

Conclusão.

Nós procuramos soltar as idéias mestras de São Paulo no que concerne à Igreja nos três grupos principais das Epístolas Paulinas. No primeiro grupo de Epístolas, o Apóstolo dos Gentios nos fala da Igreja como sendo uma comunidade de fiéis vivendo dos inumeráveis dons concedidos pelo Espírito Santo, mas constituída em Corpo de Cristo pelos Sacramentos.

Num segundo grupo de Epístolas, as do cativeiro, descobrimos toda uma eclesiologia enriquecida, unida a uma cristologia muito mais aprofundada.

Enfim, um último grupo de Epístolas mostra-nos São Paulo preocupado com a organização hierárquica da Igreja, e com a continuidade das suas estruturas.

Durante os séculos que se seguiram ao dos primeiros cristãos, a Igreja reconheceu-se quer nas Epístolas Pastorais quer nas outras. A consciências dos Padres da igreja não dava nenhuma preferência a nenhum dos aspectos eclesiológicos desta ou daquela Epístola; ela recebeu em bloco toda a experiência dos cristãos do primeiro século num espírito de continuidade duma tradição viva. Cabe-nos a nós, cristãos do século XX, redescobrir continuamente o pensamento e a experiência da Igreja primitiva para que possamos prosseguir na continuidade da antiga Tradição.

Epístola aos Hebreus.

O problema da autenticidade Paulina da Epístola, debatido desde os primeiros séculos do cristianismo é aqui exposto. Diferentemente de todas as precedentes, a Epístola aos Hebreus viu a sua autenticidade ser posta em questão desde a Antigüidade. A sua canonicidade raramente fora contestada, mas a Igreja do Ocidente recusou, até o século IV, atribuí-la à São Paulo; e se a Igreja do Oriente aceitou esta atribuição, não foi no entanto, sem fazer algumas reservas no que respeita à sua forma literária (Clemente de Alexandria, Orígenes). É que a língua e o estilo desta Epístola São de uma pureza de elegância que não pertence a São Paulo. A maneira de citar e de utilizar o A.T. não é sua. A mensagem e o preâmbulo por onde ele tem costume de iniciar as suas Epístolas estão aqui ausentes. Quanto à doutrina, se ela ressonâncias incontestavelmente Paulinas, apresenta por outro lado bastante originalidade para lhe ser dificilmente atribuída de forma imediata. Com efeito muitos críticos, católico-romanos e não só, estão hoje de acordo para se reconhecer que São Paulo não fora o autor desta Epístola ao mesmo título que das demais, ainda que a sua influência se tenha exercido nela por inspiração indireta ou mesmo direta, de uma maneira suficiente para legitimar a sua incorporação tradicional no cômputo da Epístolas Paulinas.

Mas o acordo acaba quando se trata de identificar o autor anônimo. Toda a espécie de nomes foi proposta, tal como o de Barnabé, Silas, Aristion, etc. Aquele que merece a nossa atenção é sem dúvida o de Apolo, que era grego alexandrino, do qual São Lucas salienta a eloqüência, o zelo apostólico e o conhecimento da Sagrada Escritura (At. 18:24-28). As suas qualidades refletem-se de forma admirável na Epístola aos Hebreus com a sua língua e os seus pensamentos de cultura alexandrina (Filoniana), a sua apologética dum belíssimo poder oratório e a sua argumentação, toda ela fundada sobre a interpretação do A.T. O lugar e a data da composição, bem como os destinatários não são certos. Parece que o autor se encontrava na Itália (13:24) e que escreveu antes da ruína de Jerusalém. Ele fala com efeito da Liturgia do Templo como uma realidade sempre atual (8:4s) alertando os seus leitores quanto a tentação de voltarem à antiga prática; e quando fala e insiste sobre o caráter provisório do culto mosaico, não diz nada do desastre do ano 70 que teria sido para ele um argumento decisivo. Como por outro lado ele utiliza certamente as Epístolas do cativeiro, colocamos a sua Epístola aos Hebreus, depois do ano 63; e mais precisamente por volta do ano 67: se reconhecessem os "prodomos" (preâmbulos) da guerra civil judaica na crise iminente que deixam antever os seus contínuos apelos a uma fé inabalável, (10:25). Não se poderá com justeza datar a Epístola aos Hebreus do século II, como alguns ousaram fazer.

A Epístola aos Hebreus supõe leitores não só muito bem informados acerca da Antiga Aliança, mas ainda convertidos do Judaísmo. A sua insistência sobre o culto e a liturgia faz pensar mesmo em sacerdotes (cf. At.6:7). Logo que se tornaram cristãos tiveram que abandonar a Cidade Santa e refugiar-se algures, talvez em alguma vila do litoral como Cesaréia ou Antioquia. Todavia, este exílio pesa-lhes; é com nostalgia que eles se lembram do esplendor do culto Levítico do qual foram outrora os Sacerdotes; e desiludidos pela sua nova fé ainda pouco consolidada e mal esclarecida, perturbados também pelas perseguições que esta sua nova fé lhes prodigaliza, sentem-se tentados a retornar ao seu antigo culto.

É precisamente para os admoestar contra uma tal apostasia que se destina a Epístola aos Hebreus (10:19-39). Ao seu desencorajamento de exilados ela (Ep.Aos Heb). oferece magníficas perspectivas sobre a vida cristã concebida como uma peregrinação, como um caminho que conduz ao Repouso prometido, para uma caminhada que leva à Pátria Celeste, com Cristo como guia superior a Moisés (3:1-6), tendo como luz aquela fé e esperança que já guiara os patriarcas da sua raça, os Judeus do Êxodo e todos os Santos do A.T. (3:7 a 4:11; 11). A sua nostalgia do antigo sacerdócio e do antigo culto Levítico ela opõe (Ep. Aos Heb). a Pessoa de Cristo Sumo-Sacerdote segundo a Ordem de Melquisedeque, superior a Aarão (4:14 a 5: 10; 7), e o Seu sacrifício único, só ele válido e capaz de substituir todas as oferendas ineficazes da Antiga Aliança (8:1 a 10:18). E para fundamentar tudo isto ela (Ep. Aos Heb). demonstra a dignidade supereminente deste Chefe e deste Sumo-Sacerdote: Jesus Cristo Filho de Deus Encarnado, Rei do Universo e superior mesmo aos Anjos (1-2). As exposições teológicas alimentadas pela exegese são entrecortadas por exortações ardentes. O fio condutor dos temas principais entrelaça-se com uma sutileza que aniquila a nossa lógica ocidental e a maneira de utilizar os textos escriturísticos por vezes é desconcertantes. Mas, precisamente, existe lá uma lição de tipologia que aclara singularmente a forma da qual se serviram os primeiros cristãos para conceber a harmonia dos dois Testamentos, aí compreendida a obra de Cristo em função de toda a Economia da Salvação. Isto, de par com um resumo de valor inexcedível sobre os artigos maiores da fé, faz deste escrito anônimo, onde ainda perpassa o sopro de São Paulo, um dos documentos essenciais da Revelação do Novo Testamento.

A opinião de Orígenes mediante a qual a língua da Epístola não é de São Paulo, mas o pensamento bem pauliniano, foi parcialmente verificada até os nossos dias. Contudo o tema de Cristo, Sumo-Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, ainda que perfeitamente central na Epístola não é pauliniano.

Cristologia da Epístola.

O Filho, segundo a Epístola aos Hebreus, é o "resplendor da Glória de Deus, o Ícone da Sua Natureza," por Ele, o mundo foi criado; Ele sustem-no através da Sua Palavra poderosa. O Filho realizou a purificação dos pecados, sentou -SE à direita do Pai acima dos Anjos (1:1-4).

No mundo Ele é introduzido como Primogênito (1:6; cf. 1:15.18); Ele é Rei para toda eternidade (1:8).

Toda esta linguagem é bem pauliniana; pauliniano também é o magnífico desenvolvimento do tema da adoção: para conduzir um grande número de filhos à glória (2:10), o Filho "não se envergonha de lhes chamar irmãos" (2:11). Ele liberta da escravidão aqueles que estão sujeitos à morte (2:14).

Mas desde o primeiro capítulo um assunto novo é introduzido: O Filho mostra-se "em tudo semelhante a seus irmãos, a fim de ser misericordioso e fiel Sumo-Sacerdote naquilo que é de Deus para expiar os pecados do povo" (2:17).

Cristo Sumo-Sacerdote.

O ofício de Sumo-Sacerdote é superior ao de Moisés, porque ele permite-nos alcançar o Repouso de Deus (4:7-16). Na Sua qualidade de Filho (5:1-10), o Sumo-Sacerdote é superior a Abraão (7:4-10), a Aarão (7:11-14), a toda a linhagem dos Sumo-sacerdotes da Antiga Aliança, uma vez que a Sua instituição lhe vem de Deus, "segundo a ordem de Melquisedeque " e é estabelecida para toda a eternidade (7:20-25). Ele oferece-se a Si mesmo como vítima de uma vez por todas (7:26-28).

É assim que Ele se torna o mediador de uma Aliança Nova (8) ao penetrar Ele próprio no Santuário Celeste não mais com o sangue dos bodes e dos bezerros, mas com o Seu próprio Sangue, que nos adquiriu uma Salvação eterna (9: em particular 9:12).

Com o Seu próprio Sangue Ele atravessou os Céus (4: 14; 7:26). Ele sentou- Se à direita do trono da Majestade, como Sumo-Sacerdote do culto celeste no Santo dos Santos (8:1-2).

Reconhecemos em toda a terminologia da Epístola alusões bastante claras às imagens da Igreja, tal como as nos apresentam as Epístolas do cativeiro, com esta cambiante que faz com que as imagens da Igreja correspondam aqui a realidade celestes.

Os Fiéis.

Quanto aos cristãos, é lhes dada uma grande esperança como uma âncora "tão segura quanto sólida," uma esperança "que penetra até o interior do véu, onde Jesus Cristo nosso precursor entrou por nós, feito eternamente Sumo-Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque"(6:18-20).

Mas se Cristo é nosso precursor, é suposto da nossa parte segui- Lo. Se Cristo é o Sumo-Sacerdote do culto celeste, os fiéis por sua vez, serão elevados à dignidade de concelebrantes no culto, porque, diz a Epístola: "Tendo pois irmãos, ousadia para entrar no Santuário, pelo Sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela Sua carne, e tendo um grande Sumo-Sacerdote sobre a Casa de Deus" (10:19-21). Ainda aqui a Epístola retoma uma imagem paulina da Igreja, ainda aqui ela corresponde a uma realidade celeste.

No fim da Epístola, num contexto de recomendações práticas, o mesmo tema prossegue. "E por isso também Jesus para santificar o povo pelo Seu próprio Sangue, padeceu fora da porta (13:12) (fora de Jerusalém). Também nós, para seguir Cristo, devemos sair "fora do arraial," levando o Seu vitupério" (13:13). Nós vemos que, se o acesso à "Casa de Deus "está doravante aberto pelo Sacrifício de Cristo, realizado uma vez por todas, todavia a nossa entrada no Reino pertence ainda ao futuro. O caráter escatológico da nossa Salvação é sublinhado pela Epístola aos Hebreus, sem que por isso seja excluído o caráter definitivo da vitória de Cristo.

Introdução Às Epístolas Católicas;

Denominação e Lugar do Canon:

Tanto no Oriente como no Ocidente, prevaleceu o uso de qualificar de "Católicas "todas as Epístolas não Paulinas do Novo Testamento, possivelmente porque elas não se destinavam a uma Igreja particular, mas ao conjunto de todas as Igrejas. Esta hipótese seria parcialmente justificada pela 1a Epístola de São Pedro e pela 1a de, São Tiago, contudo para a 3 ª Epístola de São João esta possibilidade não se verifica, uma vez que a Epístola se dirige a um homem de nome Gaius. Todavia, esta apelação de "Católicas " é cômoda e por tal razão freqüentemente utilizada.

Nas edições gregas da S. E., à semelhança de alguns documentos antigos (Alef, B), as Epístolas Católicas estão colocadas a seguir ao livro dos Atos dos Apóstolos, antes das Epístolas Paulinas. A ordem da Vulgata adotada no Ocidente é mais lógica, uma vez que as Epístolas Paulinas são de composição mais antiga.

 

Epistola de São Tiago.

A Antiga Tradição, confirmada pela maioria dos exegetas modernos, atribui a Epístola de São Tiago, um dos "irmãos do Senhor, que não se pode confundir com São Tiago de Zebedeu nem com São Tiago de Alfeu. A pessoa e a vida de São Tiago, irmão do Senhor, chamou a atenção dos exegetas ortodoxos e merece da nossa parte um interesse particular.

São Tiago era o mais velho dos quatro "irmãos do Senhor" (Mat. 13: 55; Mc. 6:3), todos eles filhos de São José, como nos ensina a Tradição. Durante o ministério público de Cristo, mostraram algum ceticismo a Seu respeito (Jo. 7:3-9). Segundo, uma tradição referida por São Paulo, Cristo após a Ressurreição, apareceu a São Tiago (1 Cor. 15:7). Depois da Ascensão, os "Irmãos do Senhor "não mencionados por São Lucas, como estando no meio dos discípulos (At. 1:14).

O livro dos Atos dos Apóstolos não menciona o nome de São Tiago, irmão do Senhor, na História da Igreja Primitiva de Jerusalém, enquanto São Pedro aí é referenciado como estando no meio dos Doze (At.1:12-17); no entanto, podemos supor que São Tiago é já um membro influente, de acordo com o testemunho de São Paulo (Gál. 1:19).

Mais adiante, o livro dos Atos dos Apóstolos nos informa que São Pedro deixa Jerusalém indo para outra cidade, notificando São Tiago da sua partida (At. 12:17). A partir deste momento, é regularmente mencionado, rodeado de presbíteros e de diáconos à cabeça da comunidade de Jerusalém (15:13; 21:18; Gál.2:9). A Tradição Oriental identificou sempre este São Tiago com o Irmão do Senhor.

Historiadores antigos como Flavius Josefus (século I) e Hegésipo (século II?) descreveram o seu martírio como tendo tido lugar em Jerusalém nos anos 60 ou um pouco mais tarde. A Tradição Oriental fez de São Tiago o primeiro Bispo de Jerusalém. É verdade que o termo grego "episcopos" fora ainda na época neo-testamentária um termo equivalente ou um qualitativo de "presbítero" (ver a20:17e 20: 28; intendente na "S.E. de Jerusalém"; e Tt. 1:5-7). Todavia a situação de São Tiago na comunidade de Jerusalém era perfeitamente idêntica àquela que terão os bispos monárquicos rodeados por presbíteros e por diáconos nas Igrejas locais do princípio do século II (ver Epístolas de Santo Inácio de Antioquia).

Também a antiga Eclesiologia, conservada pela Tradição da Santa Igreja Ortodoxa, confere uma importância peculiar a esta noção de Igreja local. Durante os primeiros séculos da História eclesiástica, o próprio termo "Igreja," visava exclusivamente uma comunidade local hierarquizada, e não o conjunto das Igrejas no sentido de uma Igreja Universal.

A sua situação, enquanto chefe de uma comunidade de judeu-cristãos que haviam permanecido fiéis à Lei de Moisés, muito especialmente à circuncisão (At. 21:21) e ao culto do Templo (At. 21:22-26), era particularmente delicada. São Paulo batizava os pagãos sem os obrigar à circuncisão (At. 15:1-2). Ora os judeus estavam interditados de ter contatos, quaisquer que eles fossem, com os pagãos, principalmente de tomar as refeições em comum (At. 11:3). Os confrontos eram inevitáveis e foram violentos (At. 15).

O Concílio de Jerusalém é chamado para resolver o diferendo (At. 15). Os exegetas ortodoxos sublinham o papel preponderante de São Tiago, chefe da comunidade local, desempenhou durante a realização do Concílio. Eles fazem referência ao testemunho de São Paulo, o qual, falando no Proto-Concílio de Jerusalém, enumera as colunas da Igreja, na seguinte ordem: "São Tiago, São Pedro e São João" (Gál. 2:9). Certo é que São Tiago sempre se mostrara o defensor de uma solução de compromisso, e seu discurso mencionado por São Lucas (At. 15:13-21) demonstra uma grande tolerância e uma ampla visão das conseqüências previsíveis decorrentes dos acontecimentos em questão. Segundo parece, São Tiago permanecerá fiel ao seu ponto de vista até o fim (At. 21:25). Por seu lado São Paulo, por respeito para com São Tiago e para com a sua comunidade, após cada uma das suas viagens missionárias, regressava à Jerusalém e organizou no decorrer da sua terceira viagem um peditório a favor dos pobres de Israel (Gál. 2:10; 1 Cor. 16:2; 2 Cor. 8:9; Rom. 15:31).

São Tiago irmão do Senhor, permanecerá para sempre uma enorme figura de todo o N.T., honrado praticamente num grau de igualdade com os Doze Apóstolos de Cristo.

Por humildade, São Tiago guarda-se, na sua Epístola, de se dizer irmão do Senhor, usando o qualificativo de "servidor de Deus e do Senhor Jesus Cristo" (Tiago 1:1).

A Epístola é dirigida às "Doze tribos da dispersão." Não se nos afigura como irrefutavelmente certo que os destinatários da sua Epístola fossem somente os cristãos de origem judaica. O termo "Doze tribos da dispersão" poderia também pretender designar cristãos de qualquer origem, considerados como fazendo parte do novo Israel de Deus.

A Epístola contém muitas recomendações de ordem prática e está nitidamente marcada por um caráter judaizante incontestável (citações implícitas da S.E., afinidades com São Mateus, moral, humildade, cuidado pelos pobres, etc.).

As Obras e a Fé.

A Epístola segundo Monsenhor Cassiano, foi escrita perto do fim da vida de São Tiago, logo por volta dos anos 60, quando São Paulo já tinha terminado pelo menos as suas três viagens missionárias, tendo pregado em toda Diáspora judaica a idéia da primazia da Fé, garantia da nossa justificação por Cristo. Em duas Epístolas (aos Gálatas e aos Romanos) onde ele desenvolve este tema, São Paulo repete e comenta o mesmo versículo do Gênesis: "Abraão creu no Senhor, e foi-lhe imputado isto por justiça" (Gên. 15:6; Rom.4:3; Gál.3:6). São Paulo chocou mais do que uma vez o sentimento religioso dos judeus ao declarar a inutilidade da observância da Lei mosaica para os cristãos. São Tiago, por sua vez, temendo provavelmente o perigo de uma falsa interpretação da teologia de São Paulo, pretende com veemência afirmar que a Fé engendra as obras e que, sem as obras, a Fé é uma Fé estéril, citando em apoio disto o mesmo versículo do Gênesis (Tiago 2:11-26).

Muitos exegetas viram aqui um diálogo entre São Tiago e São Paulo. Na realidade, não existe contradição entre as duas posições, mas sim duas opiniões diferentes; as duas, aliás, encontram lugar no canon inspirado da Sagrada Escritura.

A passagem 5:13-15 esta na base da prática da unção dos doentes com o óleo. Contada na Igreja Ortodoxa entre os Sete Sacramentos, é bom lembrar uma vez mais que quando na Igreja Ortodoxa se fala de Sete Sacramentos é simplesmente por pura comodidade e sobretudo devido a uma infeliz influência ocidental do princípio do século XVII; não existe na Igreja Ortodoxa nenhum cânone que determine um número específico de Sacramentos; os número de Sacramentos varia consoante os Padres da Igreja que eles se referiram, a Santa Unção é praticada também quando algum fiel está prestes a partir para o Reino dos Céus. Contudo, a Igreja Ortodoxa não faz dela um Sacramento apenas administrado àqueles que estão a beira da morte. Na Igreja Ortodoxa a administração da Santa Unção faz-se durante a semana que precede a Páscoa a todos os fiéis que sofram de algum mal físico ou espiritual e ainda sempre que em qualquer outra altura tal seja solicitado por qualquer fiel ao bispo.

Primeira Epístola de São Pedro.

Na Introdução ao Livro dos Atos dos Apóstolos, seguimos a vida de São Pedro até o momento da sua partida de Jerusalém (At. 12:17). Encontramo-lo de novo em Jerusalém no momento do Concílio (At. 15 e Gál. 2:1-10), e pouco tempo antes do Concílio, em Antioquia (Gál. 2:11-14), altura em que momentaneamente se encontra em desacordo com São Paulo. A morte do Apóstolo em Roma é um fato comprovado pela tradição local (Romana), mas o momento da chegada de São Pedro a Roma é - nos desconhecido; o livro dos Atos dos Apóstolos é complemente mudo a este respeito. Sob a pluma de São Paulo não encontramos nenhuma menção da permanência de São Pedro em Roma, nem na Epístola aos Romanos, nem nas Epístolas do Cativeiro escritas em Roma, nem na Segunda Epístola a Timóteo também ela escrita em Roma aquando da última prisão de São Paulo. O único indício neotestamentário da presença de São Pedro em Roma é a sua Primeira Epístola escrita da "Babilônia" que os exegetas, mais ou menos unicamente identificam com Eroma (1 Ped. 5:13).

Monsenhor Cassiano pensa que a Primeira Epístola de São Pedro fora escrita depois do martírio de São Paulo, que ele coloca por volta do ano de 64. Com efeito, quando São Paulo, durante a sua última permanência na prisão em Roma, presente que a sua partida para os Céus se avizinha (2 Tim. 4:6-8), pede a Timóteo que vá para junto dele levando Marcos consigo. Ora, segundo a Primeira Epístola (5:13), São Marcos já estava em Roma usufruindo da intimidade de São Pedro. Um lapso de tempo separou as duas Epístolas. Monsenhor Cassiano deduziu que São Pedro nasceu para os Céus muito provavelmente depois do martírio de São Paulo, talvez nos anos de 66-67. Isto é tanto mais verossímel quando se sabe que os destinatários da I Epístola Ped. são as Igrejas que na sua maioria, haviam sido evangelizadas por São Paulo. É, pois, natural pensar que São Pedro não achou necessário dirigir-se a estas Igrejas, senão depois do martírio de São Paulo.

As pesquisas modernas (Selwyn) demonstraram as numerosas afinidades da I Epíst. Ped. com os escritos neotestamentários que a precederam e que podiam ser conhecidos em Roma nos anos 60 (Rom., Ef.,Thiago,1 e 2 Tim.,Heb.). A existência de imitações literárias diretas não foi ainda demonstrada. Tem-se, todavia, atualmente, a tendência de ver na I Epíst. Ped. não tanto uma obra marcada pelas idéias pessoais do seu autor, mas sim uma espécie de síntese da catequese batismal da Igreja Romana nessa época.

Além disso, a diferença de estilo, de linguagem e de pensamento entre a I e II Epíst. Ped. é gritante. Já na Antigüidade São Jerônimo (século IV) constatando esta diferença, pensou que São Pedro pudesse Ter sido ajudado por um secretário. Na própria Epístola, o nome de Silvano é mencionado, como portador da Epístola – 1 Ped. 12. Ele pode muito bem Ter sido o secretário de São Pedro para a sua composição.

São Silvano (Silas) adquire a confiança de São Paulo que o toma como companheiro para a sua Segunda viagem (At. 15:40; 16:19.25.29; 17:4.10.14; 18:5). Este fato é amplamente confirmado por São Paulo (1 Tim. 1:1; 2 Tim. 1:1; 2 Cor. 1:19). Além do mais as Epístolas aos Tessalonicenses não são, segundo parece, escritas pela mão de São Paulo (2 Tim. 3:17); São Silvano pode também Ter sido secretário do Apóstolo dos Gentios.

Nós o perdemos de vista até a menção (1 Ped. 5:12). Aí ele é visivelmente o homem de confiança de São Pedro.

De origem judeu-cristã, sucessivamente homem de confiança de São Tiago e de São Paulo, São Silvano (Silas) surge como uma pessoa de qualidade que podia ter prestado um grande auxílio a São Pedro. A tradição ligada ao Evangelho de São Marcos diz-nos que, para a sua pregação oral em grego, São Pedro tivera necessidade de um intérprete que encontrara na pessoa de São Marcos. Para a composição da sua Epístola, São Pedro pode Ter tido necessidade de um secretário; São Silvano (Silas) parece haver sido o mais indicado.

O princípio da Epístola, a mensagem, a forma trinitária (1 Ped. 1:1-2), assim como a benção sob a forma de oração, é tipicamente paulina.

O plano da Epístola é difícil de precisar. "Encontramos aí, do princípio ao fim, uma série de exortações morais estreitamente associadas a considerações doutrinais que as justificam" (J. Cantinat, dnas Introduction à la Bible, par A. Robert et A. Feuillet. T.II, Desclée et C, 1959: p. 577).

 

A Doutrina da Salvação.

Ela é resumida na passagem 1:3-12. A doutrina da Salvação pressupõe a doutrina paulina, mas reconhecem-se aí semelhanças com os discursos do próprio Apóstolo São Pedro no livro dos Atos (At. 2:14-36 e outros). Esta doutrina é caracterizada por um teocentrismo assaz pronunciado (1 Ped. 1:3) e pela menção freqüente do Espírito Santo (1:2; 2:5).A Salvação vem pela Fé através dos sofrimentos da Ressurreição de Cristo (4:1) e ainda graças a Sua (d ‘Ele) vitória sobre o Inferno (At. 2:24-31; e Ped. 3:19).

Na I Epístola a Salvação trazida por Cristo é vista por uma perspectiva escatológica. Nós recebemos uma herança que nos esta reservada nos Céus, herança "que o Poder Divino guarda para a Salvação pronta a revelar-se no último momento," ou seja, no fim dos tempos (1 Ped. 1:5). Esta teologia tem grandes semelhanças com a da Epístola aos Romanos (Rom. 5:1-11).

Provações e Sofrimentos.

São Pedro acentua o papel das provações e dos sofrimentos. Talvez esta nota, embora típica da I Epístola de São Pedro, seja devida as circunstâncias em que a Epístola foi composta. Alguns indícios permitem, com efeito, supor que novas provações se abateram sobre as Igrejas (1:6; 2:20-21; 3:18; 4:1). Mediante o que nos diz a I Epístola de São Pedro, estes sofrimentos não são só provações em relação à fé (1:7); eles devem ser suportados como Cristo os suportou, O qual nos deixara um modelo a fim de que pudéssemos seguir o Seu exemplo (2:21).

Naturalmente, uma tal idéia encontra-se em São Paulo e toma as suas raízes nas palavras de Cristo; Ë chamando a Si a multidão, com os Seus discípulos, disse-lhes: "se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me" (Mc. 8:34). Mas no contexto da I Epístola, ela lembra a Teologia da Epístola aos Hebreus onde "Jesus Cristo é o mediador de uma Nova Aliança e o Sangue da aspersão" (Heb. 12:24; purificação em vez de aspersão na S. E. de Jerusalém; comparar-se com Heb. 9:19-22) e enquanto tal, nosso precursor no Santo dos Santos (Heb 6: 19-20).

 

O Espírito Santo.

Na fórmula trinitária (1 Ped. 1:2), a teologia inspira-se nos escritos de São Paulo; no entanto, é notável que a referência ao espírito Santo preceda a do Filho. Em primeiro lugar, a própria expressão "Santificação pelo Espírito" não se encontra senão uma única vez no N. T. sob a pena de São Paulo, ou de São Silvano (Silas–2 Tim. 2: 13), num contexto igualmente trinitário onde "a Santificação do Espírito Santo" precede o acesso a glória do Filho. Na I Epístola de São Pedro, a perspectiva é a mesma; o Espírito Santo fala por intermédio dos Profetas para anunciar Cristo (1:10-12) e é Ele também que inspira os pregadores do Evangelho.

A Primeira Epístola de São Pedro usa algumas imagens Paulinas para designar a Igreja: é um edifício espiritual (2:5) do qual Cristo é a pedra de ângulo (2:6; cf. Ef. 2:20-22).

É interessante salientar que São Pedro diz que também nós somos "pedras vivas "do edifício. Os cristãos são pedras vivas para oferecerem sacrifícios espirituais (2:5) e, como tal, eles são "uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo eleito" (2:9). É uma citação do ÊXODO (19:5), uma alusão à Antiga Aliança realizada na Nova Aliança, uma imagem para designar a Igreja como o verdadeiro Israel de Deus. A noção de "Sacerdócio Real" chama a atenção de uma maneira muito especial. Ainda aqui a Primeira Epístola de São Pedro está em sintonia com a teologia da Epístola aos Hebreus, onde Cristo entra como nosso precursor no Santo dos Santos, enquanto Rei e Sumo-Sacerdote. Daí se interfere que também nós, por sua vez, somos chamados a seguir Cristo.

Não obstante a situação difícil dos cristãos, São Pedro, como anteriormente São Paulo, prega à submissão as autoridades civis (2:13-18); mais tarde, quando as perseguições recrudescerem de intensidade, São João no Apocalipse empregara uma outra linguagem.

A Primeira Epístola de São Pedro, escrita possivelmente com a ajuda de um secretário qualificado, reflete a teologia dos escritos que eram conhecidos em Roma nos anos 60, a saber, a teologia de São Paulo na Epístola aos Hebreus. Ela é uma das últimas etapas que nos preparam para a teologia de São João o Teólogo.

Segunda Epístola de São Pedro.

Esta Epístola levanta, do ponto de vista da sua autenticidade, dúvidas de vários exegetas, mesmo os mais conservadores, são obrigados a levar a sério.

Na sua Segunda Epístola, São Pedro nomeia-se logo no início (1:1), refere o anúncio de Cristo em relação à Sua partida para os Céus e diz Ter sido testemunha da Transfiguração (1:16-18). Enfim, faz alusão a uma primeira Epístola (3:1) que deve ser, certamente a sua Primeira Epístola.

Se São Pedro escreve uma Segunda vez aos mesmos leitores, é sem dúvida com um duplo desejo: adverti-los contra os falsos doutores (2), e responder à inquietude causada pela demora da Parusia, Segunda vinda de Cristo (3).Estes falsos doutores e esta inquietude podem com rigor conceber-se desde o fim da vida de São Pedro. Contudo, a outras considerações que põe em causa a sua autenticidade e sugerem uma data mais tardia. A língua apresenta notáveis diferenças quando comparada com a usada na sua Primeira Epístola. Todo a capítulo 2 é uma reposição, livre mas evidente, da Epístola de São Judas (Tadeu). A antologia das Epístolas de São Paulo parece estar então já formada (3:15s). O "grupo "apostólico é posto em paralelo com o "grupo" profético e o autor fala como se ele próprio não fizesse parte desse mesmo "grupo "apostólico (3:2).

Estas dificuldades autorizam dúvidas que surgiram já desde da Antigüidade.

Não só o uso da Epístola não é comprovado com absoluta certeza antes do século III, como ainda ‘e rejeitada por alguns Padres da Igreja, entre eles Orígenes, Santo Eusébio e São Jerônimo. Também alguns críticos modernos recusam, por sua vez, atribuí-la a São Pedro e é difícil não lhes dar razão. Mas se um discípulo posterior se cobriu com autenticidade de São Pedro, é muito provável que tivesse algum direito de o fazer, quer pertencesse aos círculos familiares ao Apóstolo, que utilizasse um escrito provavelmente dele (Apóstolo), adaptando-o e completando-o com a ajuda da Epístola de São Judas (Tadeu).

Isto não implica forjar um "falso "documento, uma vez que os homens da Antigüidade tinham outras idéias no tocante à propriedade literária e a legitimidade do pseudonimato.

Ainda assim a hipótese dum texto primitivo escrito por São Pedro arranjado em vista a completar a Epístola de São Judas (Tadeu), é uma hipótese verossímel de aceitar, mas que não elimina todavia, todas as dificuldades.

A Epístola de São Judas (Tadeu) fala muito amplamente das punições reservadas aos pecadores, mas muito sobriamente da "misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo," no que concerne a Vida Eterna (Jud. 21: comparar 24 e 25).

A Segunda Epístola de São Pedro, pelo contrário, começa por um magnífico apelo à santidade para nossa "entrada no Reino Eterno de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2 Ped. 1:3-21).

A Epístola retoma as investidas da Epístola de São Judas (Tadeu) (2 Ped. 2:1 a 3:3; Jud. 4-18) e completa-as descrevendo o dia do Senhor. Aqueles que troçarem dos últimos tempos (Jud. 18) serão os que duvidarão da Sua vinda (2 Ped. 3:3). "O Senhor não retarda a Sua promessa ainda que alguns a tenham por tardia; mas é longânimo para conosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se."

Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite; no qual os Céus passarão com grande estrondo e os elementos, ardendo se desfarão, e a Terra e as obras que nela há, se queimarão" (2 Ped. 3:9-10).

Depois do abrasamento, da efervescência e da conflagração geral..." virão uns novos Céus e uma nova Terra em que habita a Justiça e que nós esperamos como promessa..." (2 Ped. 3:13).

A Epístola de São Judas (Tadeu) reflete indiretamente os acontecimentos trágicos da guerra assaz longa que conduzirá à destruição de Jerusalém pelos Romanos. A Segunda Epístola de São Pedro reflete antes uma época em que os espíritos voltarão ao apaziguamento, à calma e à Paz. Ora a queda de Jerusalém era, segundo as concepções judaicas, o acabamento definitivo de toda a infelicidade que precederiam o fim. Na Segunda Epístola de São Pedro todos os castigos, aí compreendida a destruição de Jerusalém, não são senão uma imagem do dia do Senhor. O aspecto da renovação escatológica, uma Nova Terra e uns Novos Céus, encontram-se por isso mesmo, melhor sublinhados, esperando a magnífica descrição da futura Jerusalém no Apocalipse

 

 

As Epístolas de São João o Teólogo.

A primeira Epístola de São João, mais longas que as duas seguintes, apresenta com o Evangelho de São João o Teólogo afinidades estilísticas e doutrinais. Os quatro primeiros versículos que constituem uma espécie de Prólogo a Epístola tem já pontos de contato bem delineados, com o Prólogo do Evangelho: Cristo é aí apelidado de "Logos da Vida" (1:1), ou ainda "Vida Eterna que estava com o Pai" (1:2). O fato indesmentível da Encarnação é realçado (1:1); o Apóstolo dele dá testemunho e pede aos destinatários da Epístola para estarem em comunhão consigo (João) e por seu intermédio com o Pai e com o Filho Jesus Cristo.

Reencontram-se alguns temas joaninos como por exemplo: o tema da Luz (1:5-7; 2:8-11), o tema da caridade (2:3-8; 3:15s; 4:7s), ligado a uma teologia trinitária (2:20-27; 5:5-12). Mais acentuado do que no Evangelho encontra-se o tema relativo à vinda escatológica (futura, do fim dos tempos) de Cristo. A Epístola menciona em particular o Anticristo e mesmo um grande número de anticristos; a vinda deles é o sinal da aproximação da última hora (2:18-19). Na Epístola a " hora " é a hora da Segunda vinda de Cristo (2:18-29).

A Segunda e Terceira Epístolas retomam certos assuntos da Primeira. A caridade é o tema principal das três Epístolas. Santo Atanásio, referiu-se, por diversas vezes, ao versículo 13 do quarto capítulo da Primeira Epístola para defender a Divindade do Espírito Santo: "Agora que somos participantes em Cristo e participantes em Deus, surgem como indelével evidência que a Unção e o Selo, que está em nós, não é da natureza das coisas criadas, mas da Natureza do Filho que, pelo Espírito que está n ‘Ele, nos une ao Pai" (Atanásio de Alexandria, cartas a Serapião sobre a Divindade do Espírito Santo: I Ser. 24 P. G. Migne XXVI 585 C).

 

 

Epístola de São Judas Tadeu.

São Judas que se diz "irmão de São Tiago" (Jud. 1), é muito provavelmente um dos irmãos do Senhor. Nenhum dado particular nos é fornecido pelo Novo Testamento sobre a sua pessoa. A composição da sua Epístola pode situar-se nos anos 70-80.

A Epístola escrita com o intuito de admoestar os seus leitores contra "certos homens" (4) que se introduziram entre os fiéis e que propagaram doutrinas falsas, contrárias ao ensinamento apostólico. Trata-se possivelmente de representantes de uma gnose judaizante contra os quais São Paulo se erguera nas suas Epístolas do Cativeiro (Colossenses) e nas suas Epístolas Pastorais. São Paulo parece mesmo ser citado no versículo 18 (cf. 1 Tim. 4:1s).

A Epístola descreve as perversidades desses homens, perversidades de toda espécie, numa linguagem provavelmente simbólica, e os castigos que se abateram sobre os blasfemadores de todos os tempos. A Epístola serve-se de exemplo de literatura apocalíptica apócrifa. O Livro de Henoque é citado explicitamente e recebe mesmo o qualificativo de profecia (14).

Para uma melhor compreensão e assimilação da Epístola de São Judas e na Segunda Epístola de São Pedro, consideradas como um todo, recomendamos a leitura da introdução à Segunda Epístola de São Pedro que, de acordo com a opinião dos modernos exegetas, completa a Epístola de São Judas.

 

 

O Livro do Apocalipse.

O autor do Apocalipse é referido no próprio Livro: é João. "Servidor" de Deus (1:1) ... "o qual testificou da Palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, e de tudo o que tem visto" (1:2); é também um profeta e do Livro é qualificado de profecia (22:9-10). As sete Epístolas às "Sete Igrejas" (1:4), que constituem a primeira parte do Livro (1:4 a 3:22), são dirigidas às Igrejas situadas na Província da Ásia, cuja cidade principal era Éfeso. Desde o tempo em que São Paulo aí fundara as primeiras comunidades, o número dessas Igrejas aumentou consideravelmente. O autor do Apocalipse diz que é "... irmão, e companheiro na aflição, e no Reino, e paciência de Jesus Cristo..." (1:9) dos fiéis aos quais escreve. Torna-se então plausível, como aliás o comprova a Tradição, que São João viveu em Éfeso, antes de haver sido relegado para a ilha de Patmos (1:10), onde beneficiou das visões que narrou.

Algumas Igrejas antigas não tinham inserido o Apocalipse no canone das Sagradas Escrituras, todavia os testemunhos patrísticos mais recuados e dignos de fé, atestam que obra é indubitavelmente de São João, filho de Zebedeu, um dos Doze.

A língua, o estilo, o vocabulário e principalmente a teologia do Livro, aparentam-no com os outros escritos joaninos. É possível que o Apocalipse tenha sido composto antes do Evangelho e certamente a sua composição fora feita em varias etapas.

Vamos examinar o Livro na sua redação definitiva, nele distingui-se duas partes cruciais:

 

1 – as Epístolas às Sete Igrejas (1:4 a 3:22);

2 – a parte propriamente apocalíptica.

O Gênero Apocalíptico.

No Antigo Testamento, certos capítulos de Isaias (24-27), de Zacarias e quase todo o Livro de Ezequiel constituem-se já obras escritas num estilo que inspirará os apocalipses futuros. Muitos virão os dias nos dois séculos que precederam a Encarnação do Verbo. Entre todos esses apocalipses, o primeiro cronologicamente, e o único que entrou no canone das Sagradas Escrituras, fora a Segunda parte do Livro do Santo Profeta Daniel (Dan. 7:12), escrito por volta do ano 165 antes de Cristo. Praticamente todos os demais apocalipses judaicos o imitam. Esses livros servem-se de pseudônimos; eles são todos considerados como tendo sido escritos por uma qualquer grande personagem do passado; por Henoque, o sétimo da lista dos Patriarcas antes do Dilúvio, por um dos Doze Patriarcas, filhos de Jacob, por Moisés, Elias ou Esdras, para não citar senão alguns nomes. Eles contem as narrativas das revelações que estas pessoas receberam por intermédio dos Anjos enviados por Deus, no tocante ao desenrolar da História sob a conduta de Deus.

Na época em que estes apocalipses foram escritos, já o povo judeu tinha uma longa experiência dos infortúnios que sobre ele se abatiam. Após a primeira destruição de Jerusalém e o exílio na Babilônia, que exerceram uma profundíssima influência sobre o pensamento religioso judaico, depois do período relativamente calmo da dominação persa, Israel encontra-se aprisionado entre os Ptolomeus (Egito) e os Selêucidas (Síria) os quais se ergueram em todo o Oriente após as conquistas de Alexandria. A realeza selêucida fora particularmente hostil aos judeus. Os Livros dos Macabeus narram a história das perseguições movidas aos judeus por Antíoco Epifânio, o qual interditara o culto, os Sabbat, as festas, destruiu os rolos da Tora e introduziu mesmo no Templo a estátua de Vênus. Este último ato permanecerá na memória dos piedosos Israelitas como o auge da "abominação da desolação" (Dan. 12:11; Mat. 24:15). A esperança do povo volta-se cada vez mais para o cumprimento escatológico do Reino.

O Apocalipse de Daniel resume, sob a forma simbólica da sucessão de quatro bestas, toda a antiga história das conquistas babilônicas, medas, persas e gregas (Dan. 7:3 a 8:17). Estas bestas são finalmente julgadas diante do Trono dos Anciãos de dias depois da aparição do Filho do Homem que vinha sobre as nuvens (Da. 7:9-14). O triunfo final de Deus depois da História da Humanidade permanecerá o traço característico de todos os apocalipses, neles incluído o de São João.

Os Apocalipses judaicos sublinham a transcendência divina e desenvolvem a Angelologia, no entanto o tema messiânico é freqüentemente relegado para um segundo plano; em alguns apocalipses a vinda do Messias não é sequer mencionada. Outras vezes é referida, mas somente como um acontecimento secundário precedendo o fim. Cristo, pelo contrário, fala da Sua Segunda Vinda como a realização da profecia do Profeta Daniel. Os capítulos dos Evangelhos Sinópticos, nos quais é aflorada a questão do fim do mundo, são escritos num estilo apocalíptico (Mat. 24; Mc. 13; Luc. 21; cf. 1 Tim. 4:13s; 2 Tim. 2:1s).

O Apocalipse de São João, o Teólogo, pelo número das visões que referencia e pelo seu estilo voluntariamente simbólico assemelha-se com os apocalipses judaicos.

Todavia, a perspectiva escatológica é aí totalmente nova: ao mesmo tempo em que é o anúncio do fim próximo, o Apocalipse de São João é o testemunho de Cristo que já veio a este mundo.

O Simbolismo Joanino do Apocalipse.

O simbolismo da Luz, tão característico do quarto Evangelho, reencontra-se no Apocalipse de São João: Cristo aparece como o cavaleiro sentado sobre um cavalo branco (19:11 talvez 6:2); o Filho do Homem surge "sobre as nuvens " supostamente brancas (1:7); o Seu rosto é como o Sol (1:16); "a Sua cabeça e os Seus cabelos são brancos como a neve" (1:14); Ele tem na Sua mão direita "Sete estrelas" (1:16). A Jerusalém futura é resplandecente de luz, e "a cidade não necessita de Sol nem de Lua para que nela resplandeçam, porque a Glória de Deus a tem alumiado, e o Cordeiro é a sua lâmpada. E as nações andarão à Sua luz, e os reis da terra trarão para ela a Sua Glória e honra. E as suas portas não se fecharão de dia, porque ali não haverá noite" (21:23-25).

Ainda mais típico da forma joanina é o símbolo da vida, ligado ao símbolo da água: "O rio puro da água da Vida, límpido como o cristal "sai na Jerusalém futura" do Trono de Deus e do Cordeiro" (21:1) e rega "a Árvore da Vida" (22:2; comparar 7:17). Completamente segundo o estilo do quarto Evangelho encontramos a declaração: "A quem quer que tiver sede, de graça lhe darei da fonte da água da vida," gratuitamente, de graça (21:6; comparar com Jo. 7:37s). Estes exemplos podem ser facilmente multiplicados. Como no quarto Evangelho, Cristo é o Logos de Deus (19:13), mas com maior assiduidade (29 vezes) Ele é designado como o Cordeiro. O quarto Evangelho fala simbolicamente de Cristo como o Cordeiro Pascal (Jo. 19:31.37; cf. 1:29); no Apocalipse Ele é "o Cordeiro imolado" (5:6) que, ressuscitado, transporta ainda as marcas do Seu suplício (cf. 5:6),cf. as palavras de Cristo ressuscitado a São Tomé (Jo. 20:27).

A imagem do Cordeiro é associada à do Pastor que conduzirá os resgatados das fontes das águas da Vida (7:17), imagem esta com aquela do quarto Evangelho, onde Cristo é, "o Bom Pastor " que dá a Sua vida pelas Suas ovelhas (Jo.10:11s).

Próprio do estilo apocalíptico é o simbolismo do Nome Divino. Nas Epístolas às Sete Igrejas, Deus é designado pela fórmula "Ele é, era, e há de vir" (Apoc.1:4-8), que é um desenvolvimento do Nome Yhavé revelado à Moisés (Ex. 3:14), (cf. 1:4). O emprego deste termo deve ser posto em paralelo com a fórmula "Eu Sou" do quarto Evangelho (cf. a nossa introdução a São João). Deus, no Apocalipse é também designado por Alfa e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim (1:8; 21:6; 22:13).

Simbolismo Do Número "Sete".

O número simbólico "sete," que está escrito na trama do quarto Evangelho: as semanas, os sete milagres, as sete menções de " Eu Sou," etc., é usado uma quarentena de vezes no Apocalipse. Designa sobretudo a plenitude das Graças conferidas pelo Espírito Santo à Igreja, completando-se as duas significações mutuamente.

Como vimos, a sucessão das três semanas do quarto Evangelho culmina no oitavo dia da Ressurreição que é "O Dia do Senhor." É nesse mesmo "Dia do Senhor "que São João tem a sua primeira visão em Patmos (1:9-11). A partir do capítulo 5 sucedem-se, através do plano complexo do Apocalipse, três septanários, o dos selos (5:8), o das trombetas (8:2 a 11:19), e o das taças (15:1 a 16:21). Estes septanários ocupam extensas perícopas e delimitam o plano de todo o livro como para preparar o leitor, duma maneira progressiva, para a grandiosa e sublime visão final da futura Jerusalém Celeste. Pretendeu-se ver em cada um destes septanários apocalipses acabados e independentes. Parece-nos, contudo mais provável que o apocalipse, no seu conjunto, tenha um plano " muitíssimo consciente."

O primeiro septanário é dos sete selos. Não se esta de acordo quanto à interpretação acerca do primeiro cavaleiro (6:1-2); o segundo traz a guerra (6:4); o terceiro, a fome (6:5-6); o quarto, a morte (6:7-8); a abertura do quinto selo anuncia a perseguição (6:9); a do sexto selo, o combate final (6:12). A abertura do sétimo selo, esperar-se-ia a narração duma vitória final; lê-se que "houve no Céu silêncio que durou quase meia hora." É verdade que este silêncio é ordinariamente na Sagrada Escritura o sinal anunciador de uma Teofania. Mas a realização definitiva dos tempos ainda não chegara e, sem transição, aparecem sete Anjos portadores de sete trombetas, para anunciar um Segunda septanário de catástrofes (8:2 a 11:19). No princípio do terceiro e último septanário, o "vidente," precisa que as pragas, que se seguem, são as derradeiras (15:1).

A sucessão dos três septanários entrecortados por outras visões, que se imbricam no seu plano, prepara as visões finais da queda da Babilônia (17:18), das Bodas do Cordeiro (19:1-10), da vinda de Cristo (19:11-21), do Reino de Mil Anos (20:1-10), do julgamento final (20:11-15) e em definitivo, a grande e última visão da futura Jerusalém Celeste (21:1 a 22:5).

A Futura Jerusalém Celeste.

Esta última visão celeste e escatológica é descrita por meio de imagens comuns à eclesiologia neo-testamentária. É uma cidade (21:10-14) com doze portas (21:12), segundo o número das doze tribos de Israel; Ela repousa sobre doze fundamentos, mediante o número dos Doze Apóstolos do Cordeiro (21:12-14). As suas dimensões são exprimidas através do mesmo número eclesial: doze mil estádios, cento e quarenta e quatro (12 vezes 12), côvacos (21:16-17).

A Jerusalém futura é a "Esposa do Cordeiro" (21:9), "a tenda (o tabernáculo) de Deus com os homens." Deus habitará aí com os homens que serão o Seu povo (21:3). São numerosas em todo o Apocalipse, as alusões a uma Liturgia Celeste (1:12-17; 4; 7:10-12; 8:3-5); mas não há Templo na futura Jerusalém Celeste, pois o próprio Deus, Todo Poderoso e o Cordeiro serão o Templo. É claro, que a futura Jerusalém é uma realidade celeste, descida do Céu (21:2), uma nova criação (21:1), mas a maneira como ela nos é descrita em termos eclesiais ensina-nos que a Igreja possui e é detentora das primícias do Reino futuro.

Teologia Trinitária.

Muito freqüentemente, a imagem do Cordeiro é voluntariamente associada à de Deus sentado sobre o Seu Trono (7:9-10; 21:22; 22:3). A unidade das duas primeiras Pessoas da Santíssima Trindade é sublinhada desta forma. Neste sentido, o ensinamento do quarto Evangelho é bem mais rico. Tão pouco a teologia do Espírito Santo alcança a nitidez da terminologia do quarto Evangelho. A Pessoa do Espírito Santo esconde-se atrás de símbolos. Neste sentido é admirável a fórmula trinitária do envio das Epístolas às Sete Igrejas: "Graça e Paz sejam convosco da parte d’ Aquele que É, e que Era, e que há de vir, e da dos Sete Espíritos que estão diante do Seu trono e da parte de Jesus Cristo" (1:4). Na maioria das vezes a referência aos "Sete Espíritos" é aqui compreendida como símbolo da Pessoa do próprio Espírito Santo. O número "Sete" adquire então o sentido da plenitude dos Dons concedidos pelo Espírito Santo à Igreja (comparar: as Sete estrelas e os Anjos das Sete Igrejas; os Sete candelabros e as sete Igrejas; 1:20). Por intermédio desta simbologia, descobre-se o Espírito Santo agindo na Igreja.

O simbologismo de São João o Teólogo é muito complexo, demasiado complexo para poder ser compreendido, abarcado e penetrado na totalidade das suas verdadeiras dimensões, e simultaneamente muitíssimo variado, interditando uma interpretação mecânica. A interpretação simbólica não exclui em nada uma pesquisa histórica que procure descobrir através dos símbolos, a realidade dos acontecimentos em relação aos quais São João fora testemunha e a eles faz alusão.

 

 

Folheto Missionário número P27c

Copyright © 2001Holy Trinity Orthodox Mission

466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011

Editor: Bishop Alexander (Mileant)

 

(novo_testamento.doc, 01-03-2002)

 

 

 

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